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Agrícola Tradicional do Rio Negro, AM

No documento Sistemas Agrícolas Tradicionais no Brasil (páginas 31-35)

Natália Guerra Brayner

Introdução

Na perspectiva do patrimônio cultural, entender “sistema agrícola”

significa dar conta de como se imbricam na agricultura as dinâmi-cas de produção e reprodução dos vários domínios da vida social, incluindo-se aí os múltiplos significados que vão se constituindo ao longo das vivências e experiências históricas, orientadoras dos pro-cessos de construção de identidades. Os saberes constitutivos dos sistemas agrícolas e as atividades que os caracterizam resultam de processos, constantemente re-elaborados, sendo o tempo presente apenas um momento em sua trajetória (Emperaire, 2010, p. 19).

No ano de 2010, o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro (SAT-RN) foi inscrito no Livro dos Saberes do Instituto do Patri-mônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e recebeu o título de Patrimônio Cultural do Brasil. A região do Médio e Alto Rio Negro é o território onde acontece o saber referente a esse sistema agrícola. Nessa área vivem povos indígenas pertencentes a três famílias linguísticas (Aruak, Maku e Tukano). Ao todo são mais de 22 etnias que, apesar do mul-tilinguismo e especificações culturais, apresentam formas comuns de transmissão e circulação de saberes, práticas e produtos (Emperaire, 2010).

O processo de caracterização das práticas agrícolas dos povos indígenas dessa região e a descrição da correlação dessas

práticas com o seu universo sociocultural implicaram a assimila-ção de conceitos do campo das denominadas “ciências da natureza”

(botânica, biologia, ecologia, etc.) e da conservação ambiental na construção da narrativa patrimonial. Tal narrativa fundamentou a decisão do Conselho Consultivo do órgão federal brasileiro de preser-vação do patrimônio cultural1.

Após o registro do bem, o Iphan promoveu e apoiou ações de mobi-lização social com a reamobi-lização de reuniões periódicas do Grupo de Trabalho para a Salvaguarda do SAT-RN, naqueles primeiros anos conformado pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Associação das Comunidades Indígenas de Barcelos (Asiba), Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro (Acimrn), Iphan, pesquisadores do Programa Populações, Agrobiodiversidade e Conhecimentos Tradicionais na Amazônia (Pacta) e pela organização não governamental Instituto Socioambiental (ISA). Essas instituições participaram diretamente das ações de pesquisa e mobilização que resultaram no dossiê descritivo do bem cultural, tendo em vista o seu reconhecimento como patrimônio cultural do Brasil.

Entre os anos de 2013 e 2016, a estratégia foi a de consolidar um coletivo deliberativo para a salvaguarda desse patrimônio cultural, propiciando a participação dos agricultores indígenas na formula-ção e execuformula-ção de ações de salvaguarda e maior articulaformula-ção entre as instituições responsáveis por desenvolver políticas com impacto nos modos tradicionais de manejo e cultivo de plantas e de produção de alimentos na região. Os esforços de articulação interinstitucional, realizados pelo Iphan em parceria com a Foirn, Acimrn, Asiba e pes-quisadores vinculados ao Pacta e ao ISA, geraram a incorporação, até o momento, dos seguintes órgãos do Comitê Gestor da Salvaguarda do

1 Conforme o sistema político federalista brasileiro, a União, os estados e os municípios possuem autonomia na formulação e implementação de suas políticas públicas. No âmbito do poder executivo federal, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) é a autarquia federal, vinculada ao Ministério da Cultura, que responde pela preservação do patrimônio cultural brasileiro. O Conselho Consultivo do Iphan é o órgão colegiado de decisão máxima responsável pelo exame, apreciação e decisões relacionadas ao tombamento de bens culturais de natureza material, ao registro de bens culturais imateriais, à chancela de paisagens culturais e à autorização para a saída temporária do País de obras de arte ou bens culturais protegidos, “além de opinar sobre outras questões relevantes” (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2018).

SAT-RN: Secretaria de Estado para os Povos Indígenas do Amazonas (Seind), Secretaria de Produção Rural do Estado do Amazonas (Sepror), Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e Instituto do Desenvolvimento Agropecuário e Florestal Sustentável do Estado do Amazonas (Idam) e Empresa Brasileira de Agropecuária (Embrapa)2. Além desse comitê gestor, foi conformado o Conselho Regional da Roça com representantes de agricultores e agricultoras dos três municípios da região de ocorrência do bem cultural: São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos. Cada município possui um Con-selho da Roça, cujos representantes são, em sua maioria, as “donas das roças” e jovens indígenas de diferentes etnias.

[...] as atividades agrícolas respondem a uma complementaridade marcada entre os trabalhos e saberes masculinos e femininos, mobilizados em fases diferen-tes. É do trabalho do casal que emerge a roça. Todas as etapas preliminares ao plantio, as que envolvem o espaço florestal, são da responsabilidade do homem, enquanto as etapas de plantio, cuidados às plantas, colheita, são da esfera femi-nina, cabendo uma disjunção nítida, e uma complementaridade, entre suas respectivas competências. A mulher, futura dona da roça, terá acesso a seu novo espaço de trabalho, pelo menos em teoria, somente após a queimada, repetindo nisso o mito de Baaribo.

À mulher cabem os cuidados das plantas, principalmente da mandioca. Casar--se implica ter sua autonomia alimentar e seu próprio conjunto de roças. Uma mulher recém-casada tem suas roças na aldeia ou comunidade de sua sogra.

Dificilmente uma roça será isolada, sua posição revela laços de parentesco ou de proximidade afetiva (Emperaire, 2010, p. 53).

Os Conselhos da Roça em cada um desses municípios conformam-se enquanto espaços de intercâmbio de saberes entre detentores dos conhecimentos tradicionais sobre o sistema agrícola e desses deten-tores com pesquisadores e técnicos das instituições e organizações envolvidas na salvaguarda desse bem cultural. Nas reuniões, além da difusão dos conhecimentos produzidos pelas pesquisas promovidas e fomentadas pelo Iphan e pelas instituições parceiras, há também

2 A Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, que administra o banco de sementes da Empresa, fez parte do Comitê Gestor Provisório da Salvaguarda do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro. A partir de 2016, a Embrapa Amazônia Ocidental, localizada em Manaus, passou a integrar o referido comitê.

muito aprendizado sobre políticas públicas, bem com são debatidas e identificadas as demandas locais relativas a ameaças e dificuldades enfrentadas por esses agricultores e agricultoras para manter seus modos tradicionais de produzir alimentos. Além disso, sugestões de ações também costumam ser formuladas e estas são levadas ao comitê gestor para aprofundamento do debate e aperfeiçoamento das ações e estratégias para a promoção e valorização do SAT-RN) em suas múltiplas dimensões.

Tem-se assim uma ampla rede de agentes locais diretamente envol-vidos na gestão do seu patrimônio em articulação com agentes e instituições externas que apoiam as iniciativas de valoração e promo-ção do patrimônio cultural imaterial desses grupos e cujas políticas geram impactos na manutenção das práticas tradicionais desse sis-tema agrícola.

Esse modelo de governança, por causa da complexidade de coorde-nação das várias agendas dos representantes envolvidos (lideranças indígenas, agricultores e agricultoras, técnicos e dirigentes de insti-tuições públicas, pesquisadores e ativistas), tem conseguido realizar no máximo duas reuniões anuais de suas instâncias de deliberação e decisão. Apesar do desafio de coordenação dessa rede de agentes, uma agenda estratégica de ações de salvaguarda – que abrangem questões relacionadas ao fortalecimento da transmissão de saberes intergera-cional, à sensibilização e capacitação de órgãos e agentes de políticas de extensão rural na região, à difusão de informações sobre o bem cultural, dentre outras –, tem sido implementada e periodicamente revista e ampliada com o comprometimento das instituições partíci-pes que se apoiam mutuamente na realização das ações.

O protagonismo dos grupos indígenas e de suas organizações locais nesse coletivo tem sido apoiado e fomentado pelo Iphan, pois são os saberes dessas populações locais que asseguram a manutenção do SAT--RN, e é para esses grupos que o sistema possui um valor referencial enquanto patrimônio cultural. O diálogo entre diferentes campos do saber para a construção de um olhar patrimonial sobre o SAT-RN agre-gou a percepção de que esse sistema produtivo tem contribuído com a manutenção e ampliação da agrobiodiversidade na região e, ao mesmo

tempo, implicou o reconhecimento de regimes locais de produção de conhecimentos desenvolvidos pelos povos indígenas amazônicos.

Assim, em uma breve retrospectiva sobre todo esse processo, a qual será apresentada a seguir, é possível identificar interfaces significa-tivas entre a narrativa patrimonial produzida e a ordem discursiva de outros campos do saber, notadamente, do campo da conservação ambiental, especialmente no que se refere à elaboração de um regime de proteção, no mundo e no Brasil, para os conhecimentos tradicio-nais de povos indígenas e comunidades locais.

Encontro de saberes: a valoração patrimonial

No documento Sistemas Agrícolas Tradicionais no Brasil (páginas 31-35)