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saberes e práticas em transformação

No documento Sistemas Agrícolas Tradicionais no Brasil (páginas 59-65)

O SATQ é um conjunto de saberes e práticas, aplicados no cultivo de uma diversidade de plantas, com mais de 240 variedades (quali-dades), utilizadas para a alimentação, fins medicinais, na cultura material e imaterial. Esse sistema abrange também os espaços onde se desenvolvem as atividades religiosas, as danças, os arranjos locais de organização do trabalho (mutirões, puxirões, reunidas), os modos de processar os alimentos, os artefatos confeccionados para esse fim e os contextos sociais de consumo (Andrade; Tatto, 2013).

O SATQ articula áreas de roças individuais e coletivas, quintais e manejo de áreas florestadas e agroflorestadas. O principal elemento desse sistema são as roças de coivara, que são feitas em clareiras aber-tas na floresta ou na capoeira por meio de derrubada da vegetação e o posterior uso do fogo, e, após 3 a 5 anos de cultivo, são deixadas em pousio. O cultivo só volta a ser realizado na mesma área quando a vegetação estiver lenhosa, com diferentes estratos florestais (Ribeiro Filho, 2015).

Todos os anos, em geral, o trabalho de abertura de uma área de roça é realizado no inverno, entre junho e setembro. A queima ocorre antes das chuvas torrenciais do verão. As variedades de milho (Zea mays) são semeadas entre agosto e dezembro. O feijão (Phaseolus vulgaris) é seme-ado, em geral, entre agosto e novembro e em fevereiro e março. Seu ciclo é rápido e as vagens são sensíveis à chuva. A mandioca (Manihot esculenta) possui dois períodos de plantio da maniva, entre agosto e dezembro e nos meses de maio e junho. O arroz (Oryza sativa) é a cultura que possui o período mais amplo de semeadura, de agosto a janeiro e de março a abril. A sua colheita varia conforme o ciclo de cada variedade, que estende de 3 a 6 meses.

A partir da década de 1950, a grilagem de terras e a implantação de empreendimentos de alto impacto, como mineração, monoculturas e projetos de construção de hidrelétricas, trouxeram problemas aos quilombos. Além disso, a criação de UCs atrelada à consequente gestão verticalizada, sem a participação social, configuraram-se (e configu-ram-se) como principais dificuldades enfrentadas pelos quilombolas, que, por sua vez, foram penalizados com multas por fazerem roças, estas realizadas há séculos.

Por causa dessa situação, muitas famílias se obrigaram a ir morar na cidade, em condições precárias, ou permanecer e viver da extração do palmito-juçara (Euterpe edulis) para a comercialização. Proíbe-se a roça, mas não se apresentam alternativas para as comunidades. Assim, além do êxodo rural, outros pontos negativos ligados à ausência das roças emergem: danças diversas que eram realizadas nos bailes de

puxirão1 são deixadas de praticar, bem como sementes e mudas ficam escassas, sendo algumas até perdidas; da mesma forma que as histó-rias e ensinamentos orais passados nos momentos da colheita.

Assim, sem a roça não há alimento, não há sementes e mudas, não há colheita, nem festas e muito menos as danças e relações entre as famílias. Nesse sentido, a agricultura tradicional é o que configura e ao mesmo tempo está ligado a tudo o que envolve a comunidade quilombola. Ela é a base do conhecimento ancestral transmitido de geração em geração.

Vale explicar brevemente que, desde a criação das UCs na região, das legislações posteriores específicas para o bioma Mata Atlântica e de outras mais restritivas criadas pela Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo, as comunidades tradicionais precisam solicitar ao Estado autorização de supressão para vegetação nativa com fins de roça. Esse processo é burocrático e depende de órgãos de assistên-cia técnica para ser realizado. Fato que faz com que as autorizações sempre chegam após o período de preparo da roça, levando os agricul-tores a perderem o ciclo de plantio e consequentemente variedades alimentares importantes, dentre outras consequências.

Alternativas foram encontradas pelas comunidades, uma vez que as roças só passaram a ser permitidas por meio de licenças ambientais, que nem sempre saem nas datas necessárias para o preparo das roças.

Assim, com o acesso a direitos essenciais, como a construção de escolas nos bairros rurais, a abertura de estradas, o acesso à aposentadoria, as políticas assistenciais do governo e o crédito bancário para produ-ção rural, inicia-se um processo de alteraprodu-ção do contexto no qual se insere a prática da coivara. Nesse sentido, a coivara tendeu a perder centralidade como prática agrícola e passou a disputar espaço com as monoculturas de pupunha (Bactris gasipaes) e banana (Musa spp.).

1 O termo “puxirão” refere-se ao encontro das famílias que reúne quilombolas do próprio território e dos quilombos vizinhos para a realização do trabalho coletivo de plantação e colheita da lavoura (de milho e arroz). Após o trabalho, ocorria o baile de puxirão em que eram praticadas danças tradicionais interligadas à prática coletiva do trabalho.

No bojo dessas transformações e oportunidades, o turismo também surgiu como alternativa econômica em alguns quilombos. Tanto a ativi-dade turística como as atuais políticas de compras públicas (Programa de Aquisição de Alimentos – PAA e Programa Nacional de Alimentação Escolar – Pnae) colaboram com as práticas agrícolas tradicionais na medida em que demandam alimentos de agricultores locais.

A perpetuação de saberes e as práticas do SATQ ocorrem por meio da transmissão desse repertório entre as gerações. A transmissão de conhecimentos tradicionais dessa natureza ocorre no fluxo da vida cotidiana, na convivência entre adultos e crianças, em momentos de trabalho em que crianças observam e imitam, ou nas ocasiões em que uma pessoa mais velha abre narrativas que contêm explicações para determinadas práticas, inter-relacionando os aspectos do ambiente (como características e potencialidades de seres do mundo animal e vegetal, condições climáticas, astros) com os modos de fazer (Andrade;

Tatto, 2013).

Há, na construção desses sistemas de conhecimento, a experiência acumulada de muitas gerações de pesquisa e observação de resultados de manejo.

O envolvimento dos jovens é o desafio da transição geracional nas comunidades quilombolas e, segundo relatos, está ligado direta-mente à capacidade de transmissão de conhecimentos e possibilidade de geração de renda a partir do sistema. As duas questões têm sido melhoradas graças a políticas públicas como Pnae e PAA, que comer-cializam, principalmente, alimentos do SATQ, com o envolvimento dos jovens em diversas etapas, desde a produção até a comercialização.

A unidade de produção e consumo do trabalho agrícola é a família.

Os núcleos familiares são formados pelo pai, mãe e filhos que residem na mesma casa. Eventualmente, pode haver famílias com parentes agregados (avós viúvos, tios solteiros, sobrinhos pequenos), mas não constituem a regra. Os idosos, dependendo de sua saúde e vitalidade, não desempenham tarefas pesadas na roça, mas continuam partici-pando de algumas atividades mais leves ligadas tanto a agricultura nas proximidades da residência quanto ao espaço doméstico. Filhos

pequenos vão junto, mas não desenvolvem atividades pesadas, se restringindo ao plantio de sementes e mudas como forma de aprendi-zagem, enquanto também brincam no espaço da roça, se familiarizam com a dinâmica do trabalho dos adultos.

A prática da coivara, definida como os conhecimentos acumulados para escolhas de áreas para o corte de vegetação e posterior queima para fins de agricultura aliado ao manejo da floresta, é tida como fun-damental para o sistema (Ribeiro Filho, 2015). Essa técnica veio como conhecimento com os negros africanos escravizados trazidos para a América. É uma técnica versátil que foi sendo adaptada e melhorada pelas comunidades no Vale do Ribeira, dando a ela a conformidade que possui hoje como sistema.

Os principais alimentos agrícolas da agrobiodiversidade (Figuras 2 e 3) manejados no SATQ e catalogados são as 12 variedades de milho, as 22 de mandioca, as 23 de arroz e as 21 de feijão, além de uma diversidade de cultivos com importância, mas sem levantamento sistematizado, por exemplo, cana-de-açúcar (Saccharum officinarum), cará (Dioscorea alata L.), inhame (Dioscorea spp.) e batata-doce (Ipomoea batatas).

Figura 2. Sementes de milho, feijão e arroz.

Foto: Claudio Tavares

Os alimentos do SATQ são a base da cultura alimentar e sempre foram trocados internamente entre os membros de um mesmo quilombo e/ou vizinhos em quantidades significativas. As comuni-dades quilombolas detentoras do SATQ historicamente participaram de circuitos comerciais na região do Vale do Ribeira; as mesmas são reconhecidas na região como grandes detentoras do cultivo de vários alimentos agrícolas. Atualmente a maior parte dos excedentes dessa produção é comercializada pela Cooperativa dos Agricultores Quilom-bolas do Vale do Ribeira (Cooperquivale), formada exclusivamente por quilombolas, via programas institucionais como o Pnae e PAA.

A criação da Cooperquivale em 2012 foi um passo importante para a construção da autonomia na comercialização dos alimentos dessas comunidades. Com ela foi possível a valorização dos alimentos do SATQ por meio da organização e coordenação de várias comunida-des para aumento do volume vendido, melhora do preço pago e maior regularidade na venda e pagamento. As consequências desse processo de valorização da agrobiodiversidade dessas comunidades foram o

Figura 3. Diversidade de alimentos produzidos no Sistema Agrícola Tradicional Quilombola do Vale do Ribeira.

Foto: Claudio Tavares

reconhecimento de cultivos diversos, fazendo frente à monocultura, e o respeito às sazonalidades dos alimentos, gerando recursos finan-ceiros fundamentais para a composição da renda dos quilombolas.

Dessa forma, apesar das transformações existentes nos contextos sociais e econômicos da região e das comunidades tradicionais qui-lombolas, o SATQ tem continuidade como o alicerce da segurança alimentar.

No documento Sistemas Agrícolas Tradicionais no Brasil (páginas 59-65)