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Comunidade tradicional

No documento Sistemas Agrícolas Tradicionais no Brasil (páginas 161-169)

principalmente de ervas produzidas em hortas ao redor dos quintais familiares, que se soma ao uso de plantas extraídas das matas e de animais caçados, que são utilizados tanto para o tratamento de doen-ças em humanos como para as criações de porco, galinha e gado.

Desfazendo o mito de uma produção apenas para subsistência, os vazan-teiros sempre se inseriram nos circuitos do comércio realizado ao longo do rio. Antigamente, além da produção diversificada que abastecia o comércio local, o algodão e a mamona eram comercializados com as lanchas e os barqueiros do Rio São Francisco que vinham da Bahia e de Pernambuco. Vendiam também para alguns depósitos em Manga, MG.

Com a mamona, faziam óleo que mantinha o fogo no pavio de algodão do candeeiro aceso a noite toda. Com algodão, as mulheres faziam a tecelagem. Comercializavam também o peixe que salgavam e embala-vam para venda. Alguns comerciantes que viajaembala-vam por terra com suas mulas compravam fardos de peixe seco que eram colocados nas bruacas para viagem. Com a perda das condições de navegabilidade e a degra-dação do rio, esse comércio foi fenecendo. Atualmente, os plantios são destinados ao consumo próprio, direto ou indireto, sendo o excedente vendido no mercado local, assim como a pesca artesanal. Comumente parte dos moradores complementa a renda familiar com empregos tem-porários em Matias Cardoso e Manga, MG.

Uma tradição mantida na Comunidade de Pau Preto e nas comunida-des vazanteiras em geral são os batuques e sambas (Figura 4). Essas manifestações ocorrem tanto em eventos religiosos, principalmente durante as semanas de folias de santos, como as folias de Reis (janeiro), a folia de Bom Jesus (agosto), entre outras, quanto em momentos de ação política dos grupos, quando realizam encontros para a defi-nição de ações das associações na defesa de seus direitos étnicos e territoriais. Durante as folias e encontros, a culinária e os saberes ali-mentares são partilhados pelos grupos, desde a coleta e colheita até a preparação e o cozimento dos alimentos. Na culinária, destaca-se a diversidade de peixes que são preparados cozidos acompanhados de pirão, assados na brasa ou fritos. Além disso, é característico o feijão tropeiro de catador, a pamonha, o mingau, o angu, a polenta, o cuscuz de milho, o beiju, o biscoito escaldado de tapioca ou massa (farinha de mandioca molhada) e o doce de abóbora.

O território é onde se materializa as condições de existência da comunidade e é onde os conhecimentos, os valores e as crenças que conformam a etnicidade vazanteira são desenvolvidos e repassa-dos de geração em geração pela oralidade, seja no âmbito do grupo familiar, seja no âmbito do grupo maior que compõe a comunidade.

A identidade vazanteira está associada aos modos de fazer o plantio nas vazantes, à dinâmica da vida na beira rio, com os seus quintais e criações, à circulação pelo rio e pelas lagoas ao se fazer a pesca, à retirada para a Caatinga quando ocorrem as grandes cheias. É nesse processo que os valores e saberes associados à pesca, aos cultivos, à coleta, à culinária, à medicina tradicional, às formas de alimentar e curar os animais são renovados e transmitidos.

A boa prática premiada

A autodemarcação e gestão do território tradicional dos vazanteiros de Pau Preto refere-se a uma ação empreendida pelos Vazanteiros

Figura 4. Roda de batuque na Comunidade Vazanteira do Quilombo da Lapinha e do Pau Preto, Matias Cardoso, MG.

Foto: Jo Roberto Ripper

em Movimento com o objetivo de pressionar o governo de Minas e a União a reconhecerem as comunidades vazanteiras como detentoras de um modo de vida de convivência com o rio São Francisco. Objeti-vou também a recuperação, na prática, do território da comunidade e a elaboração de um plano de gestão de uso e ocupação dos etnoam-bientes que foi a base para uma proposta inicial de recategorização de uma parcela do Parque Estadual Verde Grande como uma reserva de desenvolvimento sustentável (RDS)2. A autodemarcação teve iní-cio no dia 25 de julho de 2011, quando os Vazanteiros em Movimento apresentaram suas propostas de regularização dos territórios vazan-teiros. A área autodemarcada do território vazanteiro de Pau Preto foi denominada de Arraial do Meio, para simbolizar a refundação da comunidade que ali existia há pelo menos 400 anos e foi varrida para a implantação da Fazenda Catelda.

Tanto a Comunidade de Pau Preto como outras comunidades vazanteiras foram expropriadas entre as décadas de 1960 e 1970, com os moradores sendo expulsos de suas terras por meio da política de regularização fundiária da extinta Fundação Rural Mineira (Ruralminas), cujo obje-tivo era viabilizar a implantação de grandes projetos agroindustriais e agropecuários financiados pela Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), promovendo o desmatamento de extensas áreas de várzea e mata seca. Com o esbulho das terras tradicionalmente ocu-padas, os vazanteiros ficaram limitados às pequenas áreas nas margens e ilhas do rio, estando submetidos à legislação ambiental impeditiva do cultivo tradicional das vazantes e ilhas e restritiva das atividades de pesca nas lagoas e no rio. A partir de 1998, inicia a implantação dos parques estaduais em Matias Cardoso e Manga, MG, como áreas de com-pensação ambiental do projeto Jaíba, em sobreposição aos territórios das comunidades vazanteiras quilombolas.

Entre os anos de 2006 e 2007, é realizado o primeiro encontro dos vazanteiros de Minas e Bahia na Ilha da Ingazeira, e inicia-se a

2 Posteriormente, a proposta da comunidade foi de transformar a área autodemarcada em um Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE), a ser implantada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)-MG, em acordo envolvendo também a Secretaria de Patrimônio do União (SPU), Secretaria de Desenvolvimento Agrário de MG (Seda-MG) e Ministério Público Federal (MPF).

movimentação das comunidades, com apoio da CPT, CAA e Unimon-tes, para impedir a desintrusão dos vazanteiros da Ilha do Pau Preto pelo parque e negociar uma proposta de recategorização da parcela ocupada pelos vazanteiros como uma RDS.

A articulação “Vazanteiros em Movimento” inicia um trabalho de mobilização envolvendo 663 famílias nos municípios de Manga, Matias Cardoso e Itacarambi, MG (Figura 5). As negociações com os poderes públicos continuaram, nos anos de 2008 a 2010, com o apoio também da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), e foi elaborada, pela comuni-dade e por organizações parceiras, uma proposta de uso e ocupação do território. Diante da não efetivação das propostas negociadas, a comunidade organizou, em 2011, a retomada do seu território com a ocupação da Fazenda Catelda. Dando sequência ao processo, foi feita a autodemarcação do território baseada na proposta coletiva de uso e

Figura 5. Assembleia de autodeclaração como Comunidade Tradicional Vazanteira de Pau Preto, Matias Cardoso, MG.

Foto: Carlos Dayrell

ocupação dos ambientes. O processo de autodemarcação e de elabo-ração e implementação da proposta de gestão do território envolveu homens e mulheres, desde as crianças até os jovens, adultos e idosos.

Atualmente, a luta pela titulação do território continua e ganhou novo fôlego com a participação dos vazanteiros na Articulação Rosalino de Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) do norte de Minas e na Comis-são Estadual de PCTs de Minas Gerais, que tem sido o espaço principal de negociação para efetivação das políticas de regularização de territó-rios tradicionais. O conhecimento adquirido na experiência de gestão do território e nos intercâmbios com outras comunidades tradicionais, como os pescadores das várzeas do Amazonas, por exemplo, levou a Comunidade de Pau Preto a abandonar a proposta de regularização via RDS e optar pela proposta de Projeto de Assentamento Agroextrativista.

A ação possibilitou ampliar o reconhecimento dos vazanteiros como comunidade tradicional, saindo da condição de confinamento e de clandestinidade pela intensa perseguição dos órgãos ambientais, que continua até hoje, mas, na atualidade, na condição de reconhecedores de si mesmos como sujeitos de direitos. Possibilitou também ampliar os laços de solidariedade entre os diferentes grupos que fazem parte dos Vazanteiros em Movimento e da Articulação Rosalino, uma vez que a ação contou com a participação desses grupos tanto no processo de retomada e autodemarcação, quanto na discussão das propostas de gestão do território. As famílias voltaram a ter acesso ao conjunto dos ambientes vazanteiros, a poder cultivar nas vazantes e quintais, a soltar os animais nas áreas de solta e a coletar plantas e lenha que são fundamentais para o sustento familiar. Passaram da condição de viver na clandestinidade a serem reconhecidos local e regionalmente como um povo com uma identidade e um modo específico tradicional de vida. Outras comunidades também já estão tendo acesso a parcelas do território antes interditadas.

Desafios e perspectivas

Segundo os vazanteiros, o principal desafio é a ocupação predatória das margens do Rio São Francisco, seja pelas grandes fazendas de gado que

utilizam as pastagens nativas das vazantes, provocando degradação das lagoas marginais, e fazem desmatamento da mata ciliar, seja pelos gran-des projetos de irrigação, contribuindo para o ressecamento periódico de tributários anteriormente perenes do São Francisco. A diminuição das águas é um risco crescente provocado também pelo desmatamento e por monocultivos de eucalipto nas áreas de recarga dos principais afluentes sob o domínio dos cerrados e veredas. Esse desafio se torna maior e mais complexo em função das mudanças do tempo, como os vazanteiros se referem às mudanças climáticas. A percepção deles é que tem ocorrido o prolongamento das estações secas, e o período chu-voso não tem sido úmido como era no passado. Além das alterações das cheias provocadas pelas barragens hidrelétricas, construídas há mais de 50 anos, essa mudança altera o ciclo das cheias do rio São Francisco, que não tem tido volume suficiente para atingir as áreas de lagoas mar-ginais. Isso possibilita tanto o repovoamento dos rios, com a saída de peixes migratórios das lagoas em estágio de maturação para a realização do processo reprodutivo, quanto a deposição dos sedimentos carreados que produzem o lameiro nas áreas de beira rio, utilizadas para o cultivo no sistema agrícola vazanteiro. Além da quantidade, a qualidade da água está deteriorada pela poluição por esgotos urbanos e mineradoras.

Por último, o grande desafio das comunidades é a permanência ou retorno aos seus territórios tradicionais, que estão sob o domínio dos fazendeiros, das empresas agropecuárias e dos projetos de irrigação ou que foram transformados em unidades de conservação. A não efetivação e a morosidade na regularização fundiária dos territórios tradicionais vazanteiros, por parte do estado brasileiro, impossibili-tam o acesso às políticas públicas específicas para essas comunidades, principalmente em relação à educação, à qualificação profissional, à habitação, ao crédito agrícola, ao apoio à comercialização dos produtos tradicionais, o que fragiliza essas coletividades, forçando a juventude a sair em busca de escolarização e de trabalho.

Apesar desse contexto de desafios, as perspectivas de manutenção dos sistemas agrícolas tradicionais estão associadas à capacidade de articu-lação e de estabelecimento de alianças desses grupos com a sociedade brasileira e, também, no contexto internacional. Novas perspectivas surgem de movimentos sociais que lutam pelo reconhecimento de

seus territórios tradicionais, como o dos Vazanteiros em Movimento e da Articulação Rosalino de Povos e Comunidades. São movimentos que estão a propor um modelo diferenciado de ocupação das terras, considerando os usos e manejos dos ambientes desenvolvidos pelos seus povos. E, não se encontram sozinhos; têm conseguido estabe-lecer redes de diálogos e de alianças em diversas esferas públicas, acadêmicas, e de proposição de políticas públicas, inclusive no âmbito internacional. Percebem-se como detentores de uma grande diversidade genética associados aos seus cultivos tradicionais de alimentos, fibras e óleos, movimentando ações de valorização da agrobiodiversidade local e organizando feiras regionais de sementes.

Esses movimentos colocam em cena a reivindicação, não apenas da terra, mas o direito de serem reconhecidos como detentores de uma cultura própria, de uma maneira diferenciada de ver e agir no mundo.

Referências

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Sistema Agrícola e

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