• Nenhum resultado encontrado

Encontro de saberes: a valoração patrimonial de um Sistema Agrícola Tradicional

No documento Sistemas Agrícolas Tradicionais no Brasil (páginas 35-41)

tempo, implicou o reconhecimento de regimes locais de produção de conhecimentos desenvolvidos pelos povos indígenas amazônicos.

Assim, em uma breve retrospectiva sobre todo esse processo, a qual será apresentada a seguir, é possível identificar interfaces significa-tivas entre a narrativa patrimonial produzida e a ordem discursiva de outros campos do saber, notadamente, do campo da conservação ambiental, especialmente no que se refere à elaboração de um regime de proteção, no mundo e no Brasil, para os conhecimentos tradicio-nais de povos indígenas e comunidades locais.

Encontro de saberes: a valoração patrimonial

O dossiê de registro do SAT-RN foi finalizado em 2010. Esse documento descreve o bem cultural, traz um diagnóstico sobre as condições de vitalidade das práticas culturais que lhe são associadas e das ameaças à sua continuidade. No dossiê também estão reunidas informações sobre o processo de formulação da narrativa ali apresentada.

O primeiro aspecto que se observa no dossiê de registro do SAT-RN é que esse dossiê, além de descrever exaustivamente os elementos que conformam as várias dimensões do sistema agrícola em questão (plan-tas cultivadas, espaços, redes sociais, sistemas alimentares, cultura material, normas, organização social), articula e amplia conceitos e noções oriundos de campos distintos da produção do conhecimento, bem como sinaliza caminhos para uma atuação integrada entre as políticas de preservação patrimonial e as de meio ambiente e desen-volvimento regional. Compreender o grau dessa inovação implica uma aproximação com as bases conceituais dos diálogos ao longo do processo de mobilização social e elaboração desse dossiê.

Os indícios documentais identificados nos acervos do Iphan apontam para a participação de alguns dos pesquisadores da rede anterior-mente mencionada no desenvolvimento de projetos relacionados à implantação de reservas extrativistas e a pesquisas relacionadas a propostas de conservação e de desenvolvimento sustentável na Ama-zônia, promovidas por organizações nacionais e internacionais nos anos 1990.

No dossiê de registro, além da Acimrn e do próprio Iphan, são apre-sentados como parceiros institucionais diretamente envolvidos no processo de elaboração do dossiê o Instituto Socioambiental (ISA) e o Programa Populações, Agrobiodiversidade e Conhecimentos Tradicio-nais na Amazônia (Programa Pacta ).

Esse programa foi iniciado no ano de 2004 por meio de cooperação bilateral Brasil-França estabelecida entre Conselho Nacional de Desen-volvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o Institut de Recherche pour le Développement (IRD). O Pacta absorveu e ampliou essa rede de pesquisadores atuantes na região amazônica desde os anos 1990.

Em sua primeira fase (2004-2008), os objetivos do programa eram compreender como a diversidade das plantas cultivadas resultava de uma construção bioló-gica e sociocultural, e refletir a respeito de formas de conservação e valorização que integrem essas dimensões (Pacta, 2008).

Os projetos dos pesquisadores do Pacta sobre o SAT-RN haviam sido submetidos às exigências da então recentemente aprovada norma de regulação de acesso aos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético do País: a Medida Provisória nº 2.186/20014. Merece destaque o fato de que, pela primeira vez, em um processo de instrução de registro no Iphan, havia uma relação formalmente estabelecida com a política de gestão de recursos genéticos conduzida pelo Ministério do Meio Ambiente.

Dentre as exigências postuladas pela aludida medida provisória estava a obtenção de anuência prévia e informada dos sujeitos deten-tores dos conhecimentos que viriam a ser acessados pela pesquisa.

Além disso, com objetivo de observar se os compromissos firmados e os esclarecimentos prestados às comunidades e sujeitos pesquisados de fato haviam sido respeitados, o Conselho de Gestão do Patrimô-nio Genético (CGEN) acompanhava o desenvolvimento das atividades das pesquisas por meio de relatórios periódicos apresentados pelos pesquisadores autorizados a acessar informação sobre o patrimônio genético. Toda documentação relativa à autorização de acesso e as cópias dos relatórios do Pacta enviados ao CGEN passaram a integrar o processo de registro do SAT-RN. Assim, esse processo de registro demandou análise e posicionamento formal do Iphan frente a ques-tões relativas à proteção dos conhecimentos tradicionais associados aos recursos genéticos e à relação dessa temática com a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial de povos e comunidades tradicionais.

Essa ordem discursiva acerca da conservação ambiental e biodiver-sidade possui uma trajetória histórica própria e – desde meados

4 Essa medida provisória esteve vigente no País entre os anos de 2001 e 2016 quando entrou em vigor a Lei nº 13.123/2015 (Brasil, 2015), a qual regulamenta o acesso ao patrimônio genético brasileiro e aos conhecimentos tradicionais associados a esses recursos. De acordo com essa legislação, os conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético integram o patrimônio cultural brasileiro e deverão ser protegidos.

dos anos 1980, e de forma mais intensa a partir dos anos 1990 com a aprovação da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) na Eco-92 – tem orientado a ação de agentes de pesquisa, lideranças locais e ativistas do terceiro setor: sujeitos que circulam entre as comunidades indíge-nas e ribeirinhas das regiões amazônicas do Rio Negro e também nos escritórios e sedes de agências nacionais e internacionais influencia-doras, formuladoras e promotoras de políticas públicas

Conforme explicitado no próprio dossiê de registro (Emperaire, 2010, p. 11),

O ponto inicial da reflexão sobre o sistema agrícola regional foi identificar ins-trumentos legais que garantissem os direitos intelectuais dos povos indígenas do Rio Nero sobre as variedades cultivadas por eles desenvolvidas, manejadas e conservadas, reconhecendo assim o papel destes agricultores como seleciona-dores e conservaseleciona-dores de uma diversidade biológica agrícola. No decorrer desta pesquisa, ficou claro que a noção local de variedade não era compatível com a noção legal de variedade. Da mesma forma, instrumentos como as indicações geográficas eram inoperantes para produções ainda de pouca visibilidade no mercado nacional ou mesmo amazonense. Por outro lado, ficou também patente que a diversidade agrícola local não podia ser reduzida a um conjunto de varie-dades, mas que era portadora de um significado cultural forte, estreitamente articulado com outros domínios da vida material e cultural local. Passamos assim de uma problemática de conservação aplicada a recursos biológicos a uma problemática de preservação de um patrimônio.

Os debates e a construção do dossiê para reconhecimento do SAT-RN geraram um processo de aprofundamento da vinculação de conceitos cujos sentidos vinham sendo trabalhados de forma isolada pelos ges-tores e pensadores do campo da salvaguarda do patrimônio cultural imaterial e pelos pesquisadores e intelectuais da conservação ambiental.

Essa divisão pressupõe uma dicotomia entre natureza e cultura, a qual se mostra insustentável ao trabalharmos com a concepção sistêmica para a compreensão dos conhecimentos tradicionais relacionados a sistemas produtivos locais. Conforme debatido por Fausto e Smith (2016, p. 88), em artigo sobre o sistema produtivo do pequi por indígenas do Xingu:

Desde os anos 1990, a conservação da agrobiodiversidade tem recebido atenção crescente, em função de seu papel na alimentação mundial (Wood e Lenné, 1997), sendo particularmente relevantes os estudos sobre conservação em seu próprio contexto ecológico e sociocultural, a chamada conservação on-farm (Bellon et al.,

1997; Elias et al. 2001; Clement et al., 2009a). Contudo, esta literatura ainda está predominantemente centrada nas bases genéticas e agronômicas da agrobiodi-versidade, sem dedicar igual atenção aos processos socioculturais responsáveis por sua origem e manutenção (Emperaire, 2006; Rival, 2007; Rival; Mckey, 2008).

Um dos elementos estruturantes do dossiê de registro do SAT-RN é justamente o que foi denominado como “abordagem sistêmica” do bem cultural ou como a “noção de sistema”.

Para pesquisadores oriundos do campo da biologia e das ciências da natureza, a percepção sistêmica de um objeto de análise corresponde a uma compreensão funcional de elementos interdependentes. No final dos anos 1990, já havia a preocupação dos pesquisadores que futuramente viriam a se vincular ao Pacta para identificar os fato-res relacionados ao alto grau de diversidade de plantas cultivadas na Amazônia, com destaque para a diversidade de espécies de mandioca na região do Alto Rio Negro:

Seu objetivo principal é a compreensão do papel dos fatores socioculturais, econômicos, ecológicos e biológicos na criação, manutenção e conservação da diversidade das espécies de mandioca na região do alto Rio Negro. Visa res-ponder a dois objetivos globais interdependentes: (i) fornecer as bases para o estabelecimento de metodologias apropriadas para avaliação e conservação in situ das variedades regionais de mandioca, considerando as condições sociocul-turais e ecológicas locais; (ii) consolidar e valorizar o uso dos recursos biológicos locais, as práticas e conhecimentos associados. (Resumos..., 2010, p. 219).

Conforme discutido por Emperaire (2015, p. 3), um sistema agrícola é apreendido como “el conjunto de elementos que gravitan alrededor del hecho productivo”.

Como essa concepção de interdependência funcional foi assimilada pelo Iphan ao longo dos diálogos promovidos sobre a plausibilidade do registro desse bem cultural? Qual era o entendimento de sistema no âmbito da política de salvaguarda? Como esse encontro de olhares levou à conformação do entendimento de um sistema agrícola como objeto da política patrimonial?

Para responder às perguntas anteriormente formuladas, é preciso antes considerar que essa abordagem sistêmica sobre os objetos ou fenômenos de “investigação” não se constituía enquanto uma

novidade para o campo das pesquisas patrimoniais que usualmente recorrem aos teóricos da história e da antropologia para a elaboração das narrativas associadas aos bens culturais.

Conforme argumentado em diversos documentos referenciais da polí-tica de salvaguarda do denominado “patrimônio cultural imaterial”, a qual passou a ser implementada pelo órgão federal brasileiro de pre-servação do patrimônio cultural de forma mais estruturada a partir de 20045, os bens culturais de natureza imaterial possuem um “cará-ter sistêmico e processual” e estão inseridos em uma dinâmica de transformações que alia saberes, técnicas e inovações, assegurando sua continuidade no tempo presente (Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial, 2003; Registro..., 2003; Sant’Anna, 2003; Instituto do Patri-mônio Histórico e Artístico Nacional, 2010; PatriPatri-mônio..., 2012).

Cabe aqui ressaltar que o SAT-RN não foi o primeiro bem cultural de natureza imaterial associado à cultura alimentar a ser registrado pelo Iphan. Em anos anteriores, respectivamente, nos anos de 2005 e 2008, o Ofício de Baianas de Acarajé e o Modo Tradicional de Fazer Queijo de Minas Artesanal em regiões serranas de Minas Gerais já haviam sido valora-dos como patrimônio cultural e também trazem em suas narrativas patrimoniais uma abordagem sistêmica enquanto elementos referen-ciais que remetem à identidade cultural de grupos soreferen-ciais distintos.

No primeiro caso, as “comidas de baiana”, tão presentes no cotidiano das cidades brasileiras, remetem a práticas do candomblé e à dimen-são de resistência das culturas de matriz africana no Brasil. Já no caso dos queijos artesanais mineiros, trata-se da identidade de uma determinada região onde ofícios e saberes relacionados a esse sistema produtivo local apelam aos sentimentos de pertencimento das pes-soas àquele lugar e àquela comunidade, remetem aos vínculos afetivos e sociais, ao fenômeno de enraizamento das pessoas em uma região6.

5 Ano de criação do Departamento de Patrimônio Imaterial (DPI) no Iphan.

6 Remeto aqui à noção de enraizamento de Simone Weil (1943, p. 411): “O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. É uma das mais difíceis de definir. O ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro”.

Entretanto, foi no intercâmbio de saberes com outros campos de pro-dução de conhecimento, ocorrido ao longo do processo de registro dos SATs-RN, que essa abordagem sistêmica se amplifica para além do reconhecimento do valor simbólico dentro da dimensão histórica e cultural.

Uma breve incursão na trajetória do conceito de referências culturais na política patrimonial pode melhor auxiliar na compreensão da evo-lução desses entendimentos e o do que hoje, no campo das políticas patrimoniais, se denomina como sistema agrícola tradicional.

No documento Sistemas Agrícolas Tradicionais no Brasil (páginas 35-41)