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3 CONSTITUIÇÃO DO CORPUS

4.3 Abordagem sistêmico-funcional

Ainda, a partir da análise acústica do Praat e auditiva do material de áudio, a descrição da variação melódica dos enunciados foi realizada. Primeiramente, a descrição foi feita de acordo com o modelo sistêmico-funcional, a partir da proposta de Halliday (1970) e de Cagliari (2007). Posteriormente, foi feita uma nova descrição dos padrões entoacionais dos enunciados do corpus por meio da proposta da Fonologia Entoacional AM.

A explicitação da metodologia para a descrição da entoação nesta subseção foi feita a partir da análise de um exemplo retirado do corpus, no qual são relacionados os dados acústicos aos dados auditivos, e cuja forma da variação melódica do enunciado pode ser observada na Figura 20, adiante. A fala selecionada foi produzida pelo personagem Shrek no momento em que Lorde Farquaad, o vilão, propõe que o ogro aceite embarcar em uma busca, no ponto temporal 43,71 ms do arquivo sonoro em PB.

De acordo com a proposta de análise da entoação de Halliday (1970), o enunciado da Figura 20 apresenta a seguinte notação em (18):

(18)

//2 Busca //

Figura 20 — Curva entoacional do enunciado “Busca? Eu já estou numa busca para recuperar o meu pântano”137

busca eu já estou numa busca pra recuperar o meu pântano 75 500 200 300 400 P itch ( H z) Time (s) 43.71 48.55 43.7156991 busca_meupantano

A seguir, os três elementos, tonalidade, tonicidade, e tons (cf. seção 2.2.1 desta tese) e sua notação são descritos com relação ao enunciado exemplo.

A observação do sistema de tonalidade leva à separação das unidades mínimas de análise: os grupos tonais (GT). Um grupo tonal é uma unidade de informação do discurso. Cada grupo tonal é marcado por duas barras inclinadas em seus limites e pode conter um ou mais pés, porém apenas uma sílaba tônica saliente. No exemplo analisado, há 3 grupos tonais marcados por pausas em seus limites e também pela presença de uma sílaba tônica saliente: “busca”, “eu já estou numa busca” e “para recuperar o meu pântano”. É importante notar que o enunciado é descrito como uma sequência contínua de GTs; portanto, o sistema de GT é exaustivo sintagmaticamente, ou seja, descreve todas as unidades da entoação em um contínuo de fala.

Cada GT possui uma sílaba tônica saliente, que é a sílaba que carrega a maior mudança tonal do GT, é nela que se inicia o movimento melódico do grupo tonal. A localização da sílaba tônica proeminente, tonicidade, indica o ponto de foco da unidade de

137 É importante observar que a linha vertical no traçado da curva melódica na primeira sílaba da palavra

“recuperar” não representa uma queda da entoação, é, na verdade, um efeito da gravação do som e da análise do

análise da entoação, o GT. Essa sílaba é marcada com um traçado sublinhado.138 Um GT possui duas partes: a) o componente pretônico, que não é obrigatório e que se constitui de um ou mais pés que ocorrem antes da sílaba tônica saliente e b) o componente tônico, que se inicia com a sílaba tônica saliente e pode se constituir de um ou mais pés; o componente tônico do GT é obrigatório. No enunciado do exemplo em análise, o primeiro GT é constituído por um pé, que é a parte tônica do GT, cuja sílaba tônica saliente é “bus”; o segundo GT tem três pés, sendo que o primeiro pé é a parte pretônica desse GT e os dois últimos formam a parte tônica, a partir da posição da sílaba tônica saliente: “tou”; o último GT do enunciado é dividido em 4 pés, sendo que os dois primeiros, antes da sílaba tônica saliente “meu”, constituem a parte pretônica do GT e os dois últimos a parte tônica.

Considerando que os GT são formados por pés, é preciso explicitar sua delimitação. Cada pé se inicia em uma sílaba tônica, sua notação é por meio do posicionamento de uma barra inclinada no início e no fim de cada pé. No enunciado selecionado, foram delimitados 8 pés. Cada pé contém, pelo menos, uma sílaba acentuada, seja ela sonora ou silenciosa139. Nesse último caso, sua presença é marcada pelo diacrítico [^], como é o caso do segundo e do quinto pé do exemplo. Por meio da observação dos pés e das sílabas acentuadas, pode-se descrever o ritmo de fala. É importante frisar que não há apenas um modo para delimitar os pés de um enunciado, pois mudanças nos padrões rítmicos podem gerar mudanças na divisão dos pés. Cagliari (2007, p. 162) salienta: “na fala contínua, a distribuição das sílabas acentuadas não se faz simplesmente pela marcação individual dos acentos de cada palavra isoladamente, mas pelo modo como se diz o enunciado”.

O terceiro aspecto que compõe a proposta de análise de Halliday (1970) é o tom. Há um conjunto definido de tons para cada língua, que são nomeados por números, de 1 a 5, para o inglês e, de 1 a 6, para o português. Cada número descreve um movimento entoacional específico do componente tônico do GT nomeado e marcam a atividade linguística envolvida no GT, como afirmações, perguntas, etc. Há um conjunto de tons primários simples ou compostos, quando há a presença de dois GTs sem o componente pretônico. Também há um conjunto de tons secundários, marcados por diacríticos acrescidos aos números dos tons

138 Halliday (2005) utilizou a forma em negrito para marcar a sílaba tônica saliente. Halliday (1970) e Cagliari (2007) utilizam a marcação do traçado sublinhado, padrão de notação que é seguido nesta tese.

139 Sobre a sílaba silenciosa, Cagliari (2007, p. 163) afirma: “A realidade dessa sílaba baseia-se no fato de as sílabas serem controladas pela ação dos músculos da respiração (ABERCROMBIE 1967, p. 34-36), e cuja sonorização pode ou não ocorrer. As sílabas silenciosas são tão importantes na marcação do ritmo da fala quanto as sílabas sonorizadas.”

primários.140 Quando o diacrítico é acrescido à direita, trata-se de uma variação no componente tônico; quando o diacrítico é acrescido à esquerda do número do tom primário, a variação é relativa ao componente pretônico do tom. As variações dos tons secundários indicam nuances dos padrões entoacionais, podendo designar, por exemplo, se um padrão entoacional descendente ocorre de um tom alto para baixo ou de um tom médio para baixo.141 Três tons primários distintos são exemplificados no enunciado selecionado na seguinte ordem: tons 2, 3 e 1. O número do tom é posicionado sempre no início do GT, porém o movimento indicado pelo tom se inicia na sílaba tônica saliente.

Em resumo, os símbolos convencionais utilizados na descrição do corpus são os apresentados em (19):

(19)

// = limite do GT / = limite do pé

__ = sílaba tônica saliente 1, 2... = tons

Além da marcação dos aspectos mais relevantes na descrição da entoação, é preciso verificar a relação entre a entoação e seus sentidos. De acordo com Halliday (2005, p. 260), é a análise dos tons que permite que se relacione os tons às atividades linguísticas – sintáticas e semânticas - envolvidas no enunciado. Assim, é possível afirmar que o personagem Shrek inicia sua fala com um tom 2, característico das frases interrogativas sem pronome interrogativo, já que se assusta com a oferta inesperada do outro personagem, Lorde Farquaad que lhe convida para participar de uma busca. Segue sua fala com uma informação: o ogro já está em uma busca, usando o tom 3, tom suspensivo, pois completa sua fala com uma explicação do que consiste sua busca. O último GT é marcado por um tom 1, característico de frases declarativas afirmativas e indica o final da fala do ogro. Além disso, ao observar a Figura 20, é preciso destacar que a sílaba: “meu” é bem mais longa (duração) e apresenta mais volume (intensidade) do que as outras; salientando, assim, a importância da posse do pântano para o personagem Shrek. Nessa breve exemplificação do método de descrição, nota-se que a

140 Halliday (2005, p. 237-238) chama de grau de delicadeza os graus mais ou menos detalhados que as descrições da entoação podem ser.

141

Para listagem completa dos sistemas de tons primários simples e compostos e secundários, ver seção 2.2.1 para o inglês e seção 2.2.2 para o português.

análise da entoação, acompanhada da análise de outros elementos prosódicos contribui para se compreender os sentidos carreados pela prosódia.

A proposta da abordagem sistêmico-funcional da entoação busca oferecer, por meio do tripé: tonalidade, tonicidade e tom, uma descrição com força exaustiva tanto nas relações paradigmáticas (sistema finito de tons, ou seja, sistema finito de opções para os falantes) quanto sintagmáticas (todo enunciado pode ser subdividido em sequências contínuas de GTs). Dessa forma, é possível abstrair da substância fônica os elementos significativos do sistema fonológico em relação com o sistema gramatical das línguas, ou seja, é possível relacionar padrões entoacionais a seus sentidos, considerando aspectos sintáticos, semânticos e/ou pragmáticos. Nesse sentido, nesta tese, descrevemos todo o corpus em PB e em IA, seguindo essa proposta de descrição da entoação, levantando semelhanças e diferenças em contextos similares, para buscar compreender a relação entre a entoação e seus sentidos.