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3 CONSTITUIÇÃO DO CORPUS

4.4 Fonologia Entoacional Autossegmental-métrica

Considerando os avanços recentes nas pesquisas sobre o elemento prosódico da entoação tanto no PB quanto no IA, faz-se necessário observar o corpus a partir de outro construto teórico linguístico, a Fonologia Entoacional Autossegmental-métrica (AM). O mesmo enunciado do exemplo descrito na subseção anterior é representado, como pode ser visto em (20), na notação da Fonologia Entoacional AM:

(20)

Nesta abordagem, o contínuo de fala é dividido em constituintes prosódicos hierárquicos, sendo que os domínios prosódicos relevantes para o PB são a frase fonológica (), a frase entoacional (I) e o enunciado (U) (FROTA; VIGÁRIO, 2000; TENANI, 2002; FERNANDES, 2007). Considerando as regras de boa formação do enunciado (cf. subseção 2.2.1), ele deve ser pronunciado pela mesma pessoa, mas não pode conter uma pausa em seu

interior. Nesse caso, “busca” é um enunciado e “eu já estou numa busca para recuperar o meu pântano” é outro enunciado. Para a constituição da frase entoacional, é preciso que haja um contorno entoacional identificável agrupando um ou mais constituintes imediatamente inferiores, no caso, a frase fonológica (). Assim, podemos subdividir o segundo U em dois Is, pois há um contorno entoacional iniciado na  “eu já estou” e outro contorno na  “o meu pântano”.

Outro princípio que deve ser considerado é o da boa formação dos constituintes fonológicos que estabelece que todos os constituintes logo abaixo de um nível superior estão contidos neste e que somente um deles pode ser o núcleo, ou seja, apenas um entre os nós- irmãos pode ser considerado forte (strong). Sendo assim, a determinação da cabeça das Is depende de uma análise dos níveis hierárquicos inferiores. Isso é importante para que se possa realizar o alinhamento dos tons ao texto, pois uma unidade só pode receber um evento tonal se for uma unidade metricamente forte, ou seja, uma unidade acentuada. Dessa maneira, é preciso considerar a grade métrica dos enunciados para estabelecer os eventos tonais dos mesmos. A grade métrica permite o conhecimento das sílabas metricamente acentuadas, estabelecendo uma relação de fraco (weak) e forte (strong). Por ser possível acompanhar essa relação em vários níveis hierárquicos, observar a grade métrica permite conhecer não só quais são as sílabas acentuadas do enunciado, mas também qual é a relação métrica entre elas (LIBERMAN, 1975; PIERREHUMBERT, 1980). Vale destacar que as unidades portadoras de acentos tonais devem ser acentuadas na hierarquia fonológica, isso não torna obrigatório que a saliência métrica tenha uma implementação fonética também saliente, com força articulatória maior, como maior duração e intensidade.

No exemplo analisado nesta seção, o primeiro U, “Busca?”, tem somente duas sílabas, portanto, a sílaba tônica “bus” é a mais forte desde o nível do pé métrico (Ʃ), passando pelo nível da palavra fonológica (ɷ), da frase fonológica (), da frase entoacional (I) até o nível superior do enunciado (U). Já no segundo U em análise, têm-se a grade métrica, como apresentada em (21); em que o nó forte de cada constituinte fonológico foi marcado com um asterisco, portanto, os nós fortes dos Is são as sílabas “tou” e “meu”142

.

142 Na grade métrica desse enunciado, que contém um elemento focalizado “meu”, o nó forte é associado ao

pronome “meu” e não à sílaba forte do item lexical “pântano”, como se poderia esperar de um enunciado

(21)

* * I * * * *  * * * * * * ɷ * * * * * * * Ʃ eu já es tou nu ma bus ca pra re cu pe rar o meu pân ta no

Há três tipos de eventos tonais que podem ser associados ao texto, ou aos segmentos: acento tonal, acento frasal e acento de fronteira (cf. seção 2.2.1 desta tese). Em resumo, estes três tipos de acento são variações de dois tons: alto (high – H) e baixo (low – L). Os acentos tonais são marcados com um asterisco seguindo a notação H ou L e são alinhados às sílabas proeminentes. Eles podem ser eventos tonais simples ou monotonais: H* ou L*, ou complexos, bitonais: L*+H, L+H*, H*+L, H+L*. Os eventos bitonais são alinhados a duas sílabas, uma proeminente, que recebe o tom com asterisco, e outra, que a precede ou a sucede, com o tom sem o asterisco. Há ainda dois acentos frasais, H e L, que aparecem no limite da frase intermediária ou após os acentos tonais, porém o acento frasal não é obrigatório. Finalmente, há dois acentos de fronteira, H% e L%, que não estão ligados a sílabas ou segmentos, mas sim às fronteiras dos constituintes prosódicos.

Considerando a grade métrica, a característica de alinhamento entre a configuração entoacional e o texto em PB (a cada ɷ cabeça de  é associado um evento tonal143

) e o

contorno da F0 produzido pelo programa de análise acústica, Figura 21 adiante, é possível realizar a notação dos eventos tonais do enunciado exemplo. Vale lembrar que o alinhamento ao texto é necessário, pois se considera que a estrutura dos segmentos e dos tons são independentes (cf. GUSSENHOVEN, 2002, p. 271).

No primeiro U, “Busca?”, a sílaba “bus” recebe um acento tonal, por ser a sílaba acentuada proeminente da ɷ cabeça de  e, nesse caso, também a sílaba métrica forte de I. Como o enunciado se inicia com uma sílaba acentuada e há uma variação ampla de F0 baixa para alta, associa-se a essa sílaba acentuada inicial de I, o tom bitonal L+H*144. Esse U termina com um tom de fronteira H%.

143

“[...] é uma das propriedades deste domínio prosódico [] no PB a presença de um acento tonal no seu elemento mais proeminente” (FROTA; VIGÁRIO, 2000, p. 12).

Figura 21 – Notação e contorno entoacional dos enunciados “Busca? Eu já estou numa busca pra recuperar o meu pântano.”

’ bus ca eu já es tou numa bus ca pra re cupe rar o meu pan ta no

L+H* H% H*L+ H*L L% H* L+ H* H L% 75 500 200 300 400 P itch ( H z) Time (s) 43.84 48.59 43.8424619 48.569752 shrek_audio_pb_5minute

Já o segundo U é composto de duas Is: “eu já estou numa busca” “pra recuperar o meu pântano”. Cada uma dessas Is é composta por duas s. A seguir, são apresentados os detalhes da associação dos eventos tonais e da cadeia de fala.

A primeira I, “eu já estou numa busca”, tem duas s, cujas ɷs cabeça são “estou” e “busca”. No início de I, há uma associação do evento tonal H* à segunda ɷ da primeira , “já”. Essa associação de evento tonal a uma ɷ que não é ɷ cabeça de I é considerada como opcional em PB. Sobre a relação entre os acentos tonais opcionais e obrigatórios associados às ɷs das Is, Fernandes (2007, p. 196) afirma: “Como característica geral das sentenças neutras produzidas pelos falantes de PB, encontramos acentos tonais associados opcionalmente a ɷs. Já quando a ɷ é cabeça de , encontramos associação obrigatória de acento tonal a elas”. Além disso, ao observar os eventos tonais anteriores e posteriores ao associado à ɷ, “já”, nota-se a alternância H/L, apontada por Frota e Vigário (2000, p. 16) e confirmada por Tenani (2002, p. 50), para o PB: “se houver um evento tonal adicional, esse é implementado de modo a resultar em uma configuração entoacional do tipo L H L H”.

À ɷ cabeça da primeira I, “estou” é associado um evento bitonal L+H* e, logo após, há a associação de um acento frasal, L, à fronteira direita da . A presença de um acento frasal

na fronteira de  é uma característica de estruturas focalizadas, ou seja, que carreiam proeminência prosódica (FERNANDES, 2007, p. 207). De acordo com Fernandes (2007, p. 208), ao discorrer sobre a estrutura do sujeito focalizado prosodicamente em PB, o acento frasal associado à fronteira direita de  está associado ou à última sílaba da , a qual marca a fronteira, ou à primeira sílaba da próxima , o caso do enunciado em análise.

Ainda na descrição da configuração entoacional da primeira I do segundo enunciado, nota-se que não há um evento tonal associado à última ɷ de I: “busca”; essa ausência de acento tonal depois do elemento focalizado pode ser reconhecida como uma característica da configuração entoacional de algumas línguas (cf. FERNANDES, 2007, p. 212).

Ao observar a variação melódica do enunciado na Figura 21, nota-se uma queda melódica após o último acento tonal de I. A notação dessa direção descendente do contorno melódico é o acento frasal L que está na sílaba seguinte ao acento nuclear, indicando a direção do contorno entoacional. Perto do final da I, a F0 se mantém, não havendo uma queda maior, nesse momento, assinala-se o tom de fronteira L%. Assim, a configuração entoacional da primeira I do segundo U fica: H* L+H* L L%.

A segunda I “pra recuperar o meu pântano”, também apresenta um tom adicional, H*, alinhado à ɷ “recuperar”. À ɷ cabeça de , “meu” está alinhado um evento bitonal H+L*, que se inicia em “o”. Como se trata de um elemento focalizado, há um acento frasal, H, em “pân”, a próxima sílaba. Na fronteira direita de I, é associado o tom de fronteira L%, como pode ser visto na Figura 21. Portanto, a configuração entoacional da  final de U é H* L+H* H L%.

Em resumo, os símbolos usados na descrição da entoação por meio da abordagem da Fonologia Entoacional Autossegmental-métrica, além da apresentação dos referentes aos constituintes prosódicos, são:

(22) H = alto L = baixo * = acento tonal % = tom de fronteira145 + = acento bitonal 145

Os tons de fronteiras também podem ser marcados como Li ouHi (cf. TENANI, 2002; FERNANDES, 2007). Os acentos frasais não recebem diacrítico na descrição desta tese, mas na proposta de notação original de Pierrehumbert (1980) ele era marcado como L- ou H-, eles também podem ser anotados como Lp ou Hp, indicando que são tons de fronteira de um domínio chamado de frase intermediária (cf. BECKMAN; PIERREHUMBERT, 1986).

Por meio da notação em eventos tonais da abordagem da Fonologia Entoacional AM, pode-se dizer que os enunciados analisados apresentam alguns padrões do elemento prosódico da entoação significativos.

Em primeiro lugar, se observarmos a composição dos eventos tonais assinalados aos enunciados, pode-se notar que o padrão L+H* H%, indica um enunciado de função sintática interrogativa de resposta sim/não, em PB. Portanto, uma interrogativa, em PB, tem na sílaba acentuada um movimento melódico ascendente. Vale notar que, geralmente, há um declínio de F0 no final das interrogativas em PB146. Outro sentido composicional da associação de eventos tonais que pode ser notado é o de elemento focalizado, com a presença de um acento nuclear L*+H, mais um acento frasal e um tom de fornteira L%, ou seja, há um movimento melódico descendente, desde a sílaba acentuada nuclear até o final do sintagma.

Por outro lado, também é possível relacionar alguns aspectos de sentido aos eventos tonais isoladamente. Ao observar os enunciados analisados, pode-se dizer que o H* no primeiro enunciado indica uma interrogativa enquanto o L* no final do último enunciado indica outra função sintática, a declarativa. Além disso, o H%, no final do primeiro enunciado analisado, indica incerteza, ao passo que o L% no fim do segundo enunciado indica finalidade, completude discursiva.

É importante notar que a proposta de abstração do dado fonético da variação de F0, por meio de um alinhamento de um conjunto finito de eventos tonais ao texto em respeito a certas regras de formação que incluem a compreensão do padrão métrico dos enunciados, permite uma observação do comportamento entoacional tanto em PB quanto em IA. Além disso, a estrutura de notação em eventos tonais oportuniza o estabelecimento de relações dos mesmos com os aspectos sintáticos, semânticos e paradigmáticos dos enunciados analisados tanto ao se observar a configuração entoacional dos mesmos como sua composição (cf. PIERREHUMBERT; HIRSCHBERG, 1990; TRUCKENBRODT; SÂNDALO; ABAURRE, 2009).