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Abordagens de autoria nos Estudos de Tradução 53

4.   Entre edição e tradução – Georg Rudolf Lind e o Livro do Desassossego 41

4.2.   Questões de Autoria II 52

4.2.1   Abordagens de autoria nos Estudos de Tradução 53

Nos Estudos de Tradução tem-se frequentemente abordado a questão de autoria em termos relativos, isto é, através de uma comparação entre autor e tradutor. Neste contexto tem-se associado autoria à marginalização do tradutor com o argumento de que raramente se considera um tradutor também um autor (cf. Zeller, 2000; Venuti, 1992: 3; Venuti,1995b). A argumentação baseia-se numa conceção tradicional que celebra o escritor como criador de uma obra original (vide capítulo 2) e reduz o tradutor a um mero instrumento da criação intelectual do outro. Sendo assim, o texto original recebe proteção legal sob a forma dos direitos de autor, nos quais normalmente também se incluem os direitos da tradução (cf. Venuti, 1995b). Em geral, o tradutor não dispõe, por isso, de qualquer reconhecimento jurídico. A função legal do autor, cuja importância já foi sublinhada por Foucault (1980, 1983), é um produto da noção romântica de originalidade que pressupõe que «significant writers break altogether with tradition to create something utterly new, unique» (Woodmansee, 1992: 280). Tal como Lawrence Venuti (1995b: 4) verifica, a centralidade da figura do autor leva a uma conceção do texto literário como expressão da personalidade e da intenção do mesmo, em vez de um produto da tradição, por exemplo. Nesta perspetiva, a tradução constituiria uma tentativa de reproduzir a subjetividade expressa no texto de partida numa língua diferente. O tradutor entraria aqui apenas como um artesão ao serviço do autor da língua de partida, devendo evitar uma intervenção própria no texto.

According to th[e] fundamentally Romantic concept [of authorship], the author freely expresses personal thoughts and feelings in the work, which is thus viewed as an original and transparent self-representation, unmediated by transindividual determinants (linguistic, cultural, social) that might complicate authorial identity and originality. A translation, then, can never be more than a second-order representation: only the foreign text can be original, authentic, true to the author’s psychology or intention, whereas the translation is forever imitative, potentially contaminating or false. (Venuti, 1995b: 4)

A marginalização da tradução e do tradutor está bem documentada e manifesta-se não apenas em preconceitos culturais, mas também em termos materiais, como, por exemplo, na baixa recompensa monetária dos tradutores (cf., entre outros, Venuti, 1992; 1995a; 1995b; Zeller, 2000). Por isso, não surpreende que nos Estudos de Tradução tenham surgido várias tentativas de desenvolver conceitos que reconhecem o trabalho e a pessoa envolvida na passagem de um texto duma língua para outra. Normalmente, estas tentativas assentam numa desconstrução da autoria, que, tal como em outras disciplinas, sublinha a importância da tradição (cf., por exemplo, Barnstone, 1993: 92) ou de fatores linguísticos, culturais e sociais (cf., por exemplo, Venuti, 1995b) na criação literária em geral. Põem-se em causa a originalidade, estabilidade e independência de qualquer texto literário e assim também a diferença categórica entre escrita «original» e tradução. Este impulso pode exprimir-se, por um lado, na recusa de qualquer originalidade textual (cf., entre outros, Derrida, 1967), ou na afirmação da simultânea derivação e originalidade de qualquer texto (cf., por exemplo, Paz, 1992). Lawrence Venuti, talvez o mais conhecido defensor de uma teoria pós-estruturalista de tradução em geral e de autoria em tradução em particular, descreve o fundamento de abordagens pós--estruturalistas inspiradas pelo pensamento de Derrida da seguinte maneira:

If meaning is an effect of relations and differences along a potentially endless chain of signifiers – polysemous, intertextual, subject to infinite linkages – then meaning is always differential and deferred, never present as an original unity, always already a site of proliferating possibilities which can be activated in diverse ways by the receivers of an utterance and which therefore exceed the control of individual users […]. Language use […] is not natural in its origins, but cultural; not only acquired from immersion and education in a culture, but that acquisition so infiltrates uses as to make them fundamentally, usually unwittingly, collective. (Venuti, 2013e: 58)

Portanto, esta abordagem não acentua apenas a inexistência de originalidade textual, mas a impossibilidade de qualquer significado invariável e original. Factores linguísticos,

culturais e históricos cunham profundamente os textos, pelo que o significado escapa o controlo individual, dependendo intrinsecamente das camadas de significado ativadas pelo receptor ou leitor do texto. No que diz respeito à tradução, Venuti (2013a: 188) destaca que o texto de partida se transforma durante a passagem para outra língua e cultura. Traduzir um texto não corresponde, portanto, à reprodução de um texto noutra língua e cultura, antes representa um processo complexo no qual se acrescentam novas camadas textuais que «establish a ratio of loss and gain through an interpretive inscription that is shaped by different linguistic structures and cultural discourses» (Venuti, 2013f: 101). Por isso, teóricos pós-estruturalistas como Derrida e Paul de Man não elevam as traduções a originais ou promovem tradutores a autores, mas questionam os conceitos de unidade semântica, originalidade autoral e direitos de autor (cf. ibidem). Tanto originais como traduções são

derivative and heterogeneous, consisting of diverse linguistic and cultural materials which destabilize the work of signification, making meaning plural and divided, exceeding and possibly conflicting with the intentions of the foreign writer and the translator. Translation is doomed to inadequacy because of irreducible differences, not just between languages and cultures, but also within them. (ibidem)

No entanto, é interessante observar como Lawrence Venuti recorre constantemente à comparação entre autor e tradutor, insistindo não nas diferenças dentro de uma língua e cultura, mas apenas no poder transformador da tradução interlinguística. Na introdução ao seu último livro Translation Changes Everything, Venuti (2013b: 4) define tradução como um ato interpretativo que implica uma perda inevitável de «source-culture difference» bem como um ganho imenso de «translating-cultural difference»31. Venuti propõe uma ética da

tradução que assenta na noção de «evento» de Alain Badiou, definido como «the emergence of an innovative form or practice that breaks with cultural and social institutions[,] […] initiating new ways of thinking inspired by an interpretation of the source text» (ibidem). Curiosamente, esta emergência de uma forma inovadora assemelha- -se à noção romântica de «originalidade», pois exprime-se na rutura com a tradição da cultura de chegada. Tal torna-se ainda mais evidente quando Venuti (2013e: 72) expõe a estratégia que ele próprio aplicou ao traduzir um texto de Derrida. Neste contexto, explica que tentou implementar a prática da fidelidade abusiva (abusive fidelity) de Philip Lewis,                                                                                                                

31 Venuti utiliza os termos «translating culture» e «translating language» em vez de cultura de chegada e língua de chegada.

que carateriza como «a translation practice that “values experimentation, tampers with usage, seeks to match the polyvalencies and plurivocities or expressive stresses of the original by producing its own”» (ibidem). Deste modo, Venuti parece distanciar-se de uma abordagem que questiona a inexistência de originalidade e aproximar-se de um conceito de simultânea originalidade e dependência de todos os textos literários, parecida com a famosa posição de Octavio Paz:

Each text is unique, yet at the same time it is the translation of another text. No text can be completely original because language itself, in its very essence, is already a translation - first from the nonverbal world, and then, because each sign and each phrase is a translation of another sign, another phrase. However, the inverse of this reasoning is also entirely valid. All texts are originals because each translation has its own distinctive character. Up to a point, each translation is a creation and thus constitutes a unique text. (Paz, 1992: 154)

Contudo, a abordagem de Venuti continua a ser particularmente interessante, porque justifica a relativa independência da tradução recorrendo a um conceito de autoria coletiva, no qual o significado de um determinado texto «does not originate simply with the author as “his own style and expressions”, but is in effect a collaboration with a specific social group, wherein the author takes into account the cultural values characteristic of that group» (ibidem: 14, itálicos meus). Sendo que tradução e original pertencem a contextos diferentes e têm públicos distintos, Venuti defende que tradução e original constituem projetos separados e não podem ser considerados uma obra conjunta («joint work»):

The foreign author's participation is of course indispensable, but it may finally be limited to the writing of the foreign text that is the basis of the project. What argues against viewing a translation as a joint work is not merely the different times at which foreign author and translator make their contributions, but the absence of a shared intention. Foreign authors address a linguistic and cultural constituency that does not include the readers of their works in translation. Translators address a domestic constituency whose demand for intelligibility in the terms of the translating language and culture exceeds the foreign author's intention as realized in the foreign text. (ibidem: 17)

Portanto, segundo Venuti, a autoria é coletiva porque tanto autor como tradutor dirigem o texto para públicos distintos, tendo, por isso, intenções relacionadas com contextos e leitores cultural e linguisticamente diferentes. Deste modo, na argumentação de Venuti, as intenções de autor e tradutor tornam-se conceitos-chave para poder atribuir a ambos uma autoria muito parecida. A relação que o tradutor e o autor estabelecem com os

respetivos leitores é comparável, porque ambos escrevem o texto em função de um público específico. Curiosamente, porém, esta proposta parece atribuir ao leitor uma função muito reduzida. Não é o leitor que ativamente participa na construção de significado, mas o autor que compõe o texto tendo um determinado leitor em mente. Portanto, além de considerar «original» e tradução projetos distintos, Venuti eleva o tradutor a um segundo autor, que cria uma «nova» obra que se dirige a um «novo» público.

É óbvio que Venuti escreve num contexto político e com a intenção de incentivar outras práticas de tradução e comunicação intercultural (cf., por exemplo, Venuti 2013c), mas, no contexto do presente trabalho, o conceito da autoria coletiva parece exemplificar a necessidade de reanalisar a autoria nos Estudos de Tradução, porque ilustra como a centralidade do conceito tem dado origem a ideias sobre a produção de textos, infiltrando-- -se mesmo em abordagens que redefinem autoria em termos de colaboração. Se se entende a figura do autor como uma entidade construída, a intenção do indivíduo histórico tem uma importância muito reduzida em termos de circulação do texto. Por isso, discutir-se-á se os texto de partida e de chegada realmente não podem ser consideradas uma obra conjunta e se há um conceito alternativo da autoria que não assente na intenção do tradutor.