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Os autores fictícios do Livro do Desassossego 35

3.   Editar o Livro do Desassossego 24

3.2   Questões de Autoria I 34

3.2.1   Os autores fictícios do Livro do Desassossego 35

A discussão mais visível acerca da autoria do Livro continua a ser levada a cabo pelos dois editores Teresa Sobral Cunha e Richard Zenith. Todavia, já os textos publicados por Pessoa, bem como os primeiros fragmentos publicados após a morte de Pessoa, são contraditórios no que diz respeito às figuras fictícias que aparecem como autores do Livro. Tal como mencionado acima, «Na Floresta do Alheamento», o primeiro texto publicado do projeto do L. do D., tinha a assinatura de Fernando Pessoa. Pelo contrário, os restantes textos, publicados entre 1929 e 1932, todos continham a nota «composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa» e foram assinados por Fernando Pessoa (vide supra)19. Quando em 1939, já após da morte do poeta, a revista Mensagem

publicou um fragmento do Livro sob o título «Diário Lúcido», os editores indicaram Vicente Guedes como autor. Portanto, mesmo antes da primeira edição em volume, já existiam três nomes associados ao Livro do Desassossego: Fernando Pessoa, Vicente Guedes e Bernardo Soares.

Não surpreende que estes três nomes reapareçam nas várias edições e que a discordância sobre o papel de cada um deles tenha sido uma das primeiras razões para a polémica entre Sobral Cunha e Zenith. José Blanco (2008: 417) constata, na entrada de dicionário sobre a história editorial do Livro do Desassossego, que todas as edições, portuguesas e estrangeiras, assumem Bernardo Soares como o único autor, exceto Teresa Sobral Cunha que atribui a autoria dos textos escritos na primeira fase a Vicente Guedes e Fernando Pessoa, publicando-os, por isso, num livro separado. Contudo, a situação parece ser mais complexa. É verdade que os títulos das restantes edições indicam apenas Soares. Assim, a edição prínceps, bem como a de Quadros, intitula-se «Livro do Desassossego por Bernardo Soares», e Zenith introduz apenas uma alteração que não diz respeito ao autor, dando o título «Livro do Desassossego composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda- livros na cidade de Lisboa». Todavia, Quadros dedica o segundo volume da edição aos                                                                                                                

19 O facto de Pessoa assinar os textos representa uma diferença em relação com textos heteronómicos. O estatuto dos autores ficcionais Guedes e Soares ainda será adiante discutido mais detalhadamente.

textos compostos na primeira fase, cuja autoria atribui a Fernando Pessoa «pré- -heteronímico» (cf. Quadros, 1995). Portanto, Quadros não assume Soares como único

autor, mas defende que, na primeira fase, «o Livro ainda tem um único autor, o próprio Fernando Pessoa» (ibidem: 38). A questão da autoria do Livro do Desassossego não parece, portanto, tão óbvia como Blanco sugere. Em vez de simplesmente assumir que Bernardo Soares seja o único autor do Livro, proceder-se-á, portanto, a uma análise mais detalhada dos vários autores.

O nome ou a figura de Vicente Guedes surgiu provavelmente em 1909 sob forma de um escritor de contos e de um tradutor de poesia (Zenith, 2008a: 321). Mais tarde aparece também como autor de poemas e de textos diarísticos («Diário de Vicente Guedes»), antes de finalmente assumir a autoria do Livro e tornar-se uma personagem com personalidade e biografia independentes (ibidem: 322). Contudo, apesar de Guedes aparecer em prefácios datados de 1916 e 1917, não se encontram fragmentos do Livro com a sua assinatura (Pizarro, 2012: 287).

Já o primeiro registo conhecido de Bernardo Soares aparece numa nota de aproximadamente 1920, na qual é mencionado como o autor de vários ensaios, romances e contos (Zenith, 2008d: 814). Segundo Zenith, por volta de 1928 ou 1929, Soares substituiu Guedes não apenas como autor do Livro, mas também no que diz respeito à personalidade e biografia (Zenith 2001: 24; 2008a: 322; 2008d: 817). Isto não significa, contudo, que Soares e Guedes sejam figuras idênticas, mas antes que partilham muitas características, como, por exemplo, a profissão (Zenith 2008d: 817). Pessoa referiu-se a Soares não como um heterónimo, mas como uma «personagem literária» e, noutro lugar, como um «semi- -heterónimo» (Pessoa, 2006 I: 463), porque, como explica, sendo a personalidade de Soares uma «simples mutilação» da sua, ao contrário dos heterónimos, tem um estilo muito parecido com o de Pessoa (cf. ibidem).

Segundo Zenith, Pessoa repetiu várias vezes a intenção de atribuir a autoria do Livro inteiro a Soares, deixando por isso de mencionar Guedes após 1929. Por conseguinte, o editor assume que Soares é o único autor de todos os fragmentos, publicando-os juntos num livro só. Para Zenith, a chave para a organização do Livro encontra-se numa nota de aproximadamente 1931:

A organização do livro deve basear-se numa escolha rigida quanto possível, dos trechos variadamente existentes, adaptando, porem, as mais antigos, que falham à

psicologia de B[ernardo] S[oares], tal como agora surge a essa vera psicologia. (Pessoa, 2010: 453, parêntesis do autor)

Pessoa nunca chegou a fazer esta revisão dos trechos, na qual pretendia adaptá-los à «verdadeira» psicologia de Bernardo Soares. É por esta razão que Sobral Cunha rejeita de modo tão veemente que todos os fragmentos, na forma em que existem hoje em dia, sejam da autoria de Soares. Zenith, por sua vez, defende que se deve respeitar a última vontade do «verdadeiro autor» - isto é, Fernando Pessoa o autor de tudo e de todos (Zenith 2008d: 817). Deste modo sugere que, mesmo não tendo levado a cabo a adaptação dos trechos mais antigos, Pessoa sempre quis que Soares fosse o autor de todos os fragmentos. Por isso, o editor escolhe integrar textos mais antigos nos textos da segunda fase, para que, por uma espécie de osmose, os textos recebessem algo da «verdadeira personalidade» de Bernardo Soares (cf. Zenith, 2001:34). Uma vez que Zenith reconhece o aspeto subjetivo da sua organização e até promove uma intervenção ativa do leitor na arrumação do livro, a mescla faz sentido. O que, a meu ver, levanta vários problemas na argumentação de Zenith é antes a justificação das próprias escolhas editoriais com a «última vontade do verdadeiro autor». Se, por um lado, Pessoa tinha apenas «uma ideia vaga do livro que pretendia, e esta ideia ia mudando, sem seguir uma evolutiva recta» (Zenith, 2008b: 414), como pode então a decisão/o projeto de atribuir a autoria do Livro todo a Soares ser vinculativa? Por que razão haverá de ser este plano mais importante ou válido do que qualquer outro? Em última análise, a argumentação de Zenith é contraditória, porque rejeita a ideia tradicional de o projeto literário consistir numa evolução para depois fundar as próprias escolhas editoriais com exatamente essa noção, aceitando a última nota como vinculativa. Partindo do princípio de que o Livro não sofreu uma evolução e sendo que Pessoa mudou frequentemente de planos e nunca chegou a publicar ou até preparar uma versão final, nenhum dos planos parece ser inerentemente mais válido do que qualquer outro. Dar mais importância a um deles apenas por ter surgido mais tarde só faz sentido caso se assuma que o projeto do L. do D. sofreu de uma evolução em vez de meras alterações. Além disso, parece interessante que Zenith introduza mais uma instância – o verdadeiro autor – para conferir «autoridade» às próprias decisões editoriais. Tal como Foucault descreve a função do autor em geral, aqui a referência ao verdadeiro autor, ou seja, a Fernando Pessoa, ajuda Zenith a sublinhar que o «desassossego retratado no Livro era aquele – ou se inspira naquele – que o próprio autor sentia» (Zenith, 2008b: 415). Ou seja, Zenith propõe que

afinal o autor do Livro não seja nem Guedes nem Soares, mas o próprio Pessoa e que, por isso, em última análise, todos os fragmentos tenham de refletir apenas a psicologia própria de Pessoa. Todavia, a associação da personalidade de Pessoa aos fragmentos e aos conteúdos dos trechos representa, a meu ver, apenas a tentativa de encontrar «the explanation of the work [...] in the men or women who produced it, as if it were always in the end, through the more or less transparent allegory of fiction, the voice of a single person, the author ‘confiding’ in us» (Barthes, 1977a: 143, itálico do autor). Resumindo, Zenith compromete a própria ideia da construção do texto por cada leitor, porque não consegue reconhecer que «the birth of the reader must be at the cost of the death of the Author» (1977a: 148).