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A autoria continua a ter uma função central na circulação de textos literários. O nome do autor serve para classificar textos e atribuir um significado global a uma obra. Contudo, a figura do autor não se refere simplesmente a uma pessoa que compôs um número de textos. De facto, o nome do autor desempenha uma função discursiva que, ao classificar e atribuir significados precisos, impede a proliferação do significado de textos, determinando, deste modo, os modos como as obras circulam no espaço público. A centralidade do autor leva a uma abordagem da literatura na qual textos são concebidos como expressão da personalidade e da intenção do autor empírico, assumindo, por isso, um significado original, reconstruível durante a leitura. Portanto, a atribuição de um autor a um determinado texto consiste numa operação complexa, na qual se associam a uma figura histórica valores constantes, coerência conceptual e teórica, bem como a unidade estilística, numa obra. Deste modo, a figura do autor não é algo estável, mas resulta de um processo que leva a imagens diferentes do autor e da obra, que dependem do contexto histórico- cultural ou da abordagem teórica.

Consequentemente, o nome Fernando Pessoa não se refere simplesmente a uma figura histórica que compôs um dado número de textos, mas desempenha uma função discursiva que serve para dar forma à pluralidade textual da famosa arca. Em vez de uma entidade invariável, o autor Fernando Pessoa representa um objeto sujeito a uma operação cultural de produção de significado. A imagem de Pessoa tem sofrido de variações, que dizem respeito a contextos históricos e políticos ou abordagens literárias específicas. Por conseguinte, também a obra pessoana não tem um significado invariável, mas está sujeita a interpretações várias. Particularmente neste caso, a falta de unidade e de significado estável são pertinentes. Por um lado, porque os próprios textos desenvolvem um «jogo autoral» em forma de um desdobramento de autores fictícios (heterónimos e outras «figuras sonhadas») e, por outro lado, devido ao estado do espólio pessoano, que, em vez de obras acabadas, contém sobretudo material não organizado e inacabado que requer uma considerável intervenção editorial para organizar obras publicáveis em forma de livro. Neste contexto, a edição contribui decisivamente para a constituição do corpus da obra, tendo, por isso, um impacto notável na construção de significado.

Também o Livro do Desassossego se refere a uma realidade textual complexa. Em vez de um texto acabado, autorizado pelo autor, existem várias edições que consistem na organização de fragmentos que se encontravam dispersos no espólio de Fernando Pessoa. Escritos em duas fases durante um período de vinte anos e por pelo menos dois autores fictícios (Vicente Guedes e Bernardo Soares), apenas doze dos cerca 500 trechos associados hoje em dia ao Livro foram publicados pelo próprio autor. Por isso, cada edição exige uma intervenção coautoral de um editor, que seleciona, transcreve e arruma os textos com o intuito de formar um volume. Uma análise das diferentes edições confirma que não existe apenas um Livro, mas várias versões que se distinguem em termos de organização do texto, sugerindo assim interpretações distintas da obra. Contudo, manifesta-se uma tendência para justificar as escolhas editoriais com a vontade do autor empírico e para associar os textos e os autores fictícios à figura histórica, criando assim um significado global originário na personalidade do autor empírico.

No que diz respeito às traduções, o panorama torna-se ainda mais complexo. No caso da primeira tradução alemã do Livro, o tradutor Gerog Rudolf Lind não traduziu apenas a edição prínceps, mas propôs uma organização própria dos fragmentos que sugere uma leitura significativamente diferente da organização de Prado Coelho. Discordando dos critérios de organização de Prado Coelho, escolhe apenas os trechos da segunda fase da produção, que associa à autoria de Bernardo Soares. Desde modo, Lind pretende filtrar a partir dos vários fragmentos da edição prínceps um livro que valha a pena ler desde a primeira à última página. Como expõe no posfácio, o tradutor tem uma ideia muito clara deste Livro que merece ser lido. Aqui manifesta-se uma vontade pedagógica que não tem apenas o objetivo de fornecer ao leitor de língua alemã acesso à obra, mas também de o levar à compreensão «correta». Para Lind, o Livro representa um manifesto de um autor decadente que observa e medita sobre o mundo em geral e sobre a própria personalidade em particular. Tendo o objetivo de promover a obra pessoana nos países de língua alemã, Lind situa o Livro num contexto da literatura decadentista do fim do século, pretendendo uma familiarização dos leitores com o autor Fernando Pessoa. As caraterísticas estilísticas da primeira tradução corroboram esta interpretação. O primeiro Buch der Unruhe constitui um texto muito mais homogéneo do que as edições portuguesas. Em vez de uma linguagem inovadora, trechos heterogéneos e em parte fragmentários que jogam com ambiguidades e contradições, a primeira tradução alemã carateriza-se por uma linguagem

pouco inovadora e padronizada que favorece a coerência e a clareza. Portanto, o primeiro Buch der Unruhe é um livro com contornos e conteúdos claros, que tem a aparência de uma obra típica do decadentismo europeu. Todavia, apesar de constituir uma leitura própria, isto não significa que a tradução represente uma obra independente com origem na intenção ou na personalidade do tradutor. Nos Estudos de Tradução tem-se abordado a autoria frequentemente neste sentido, elevando o tradutor a uma espécie de segundo autor e considerando o «original» e a tradução dois projetos distintos. No entanto, como uma abordagem narratológica de textos traduzidos mostra, o texto traduzido constitui um amálgama de texto, línguas e culturas de partida e chegada, um mosaico complexo de diferentes camadas textuais. A comunicação narrativa é sempre indireta e nem tradutor, nem autor têm meios de comunicação imediata. De facto, o texto não se limita a ser uma expressão da personalidade ou intenção da pessoa ou das pessoas que o compuseram. Em termos autorais, a análise narratológica aponta para a necessidade de reformular a autoria em tradução, evitando uma definição baseada na noção romântica do autor, que simplesmente desloca os atributos da originalidade e criatividade para o tradutor, fazendo do texto de chegada a expressão da intenção do autor do texto de chegada, isto é, do tradutor. Antes parece que, sobretudo em tradução, a autoria se processa em termos colaborativos, em que vários indivíduos participam na produção de camadas textuais, levando a versões alternativas da obra.

A segunda tradução alemã vem corroborar esta noção de continuação da produção de camadas de significado. A análise comparativa confirma que se trata de uma revisão aumentada, e não de uma nova tradução, ou seja, apesar de ter seguido a organização de Richard Zenith, tendo por isso um corpus que compreende as duas fases da produção, a segunda tradução não inscreve uma interpretação realmente nova no Livro. De facto, as traduções partilham muitas caraterísticas estilísticas, favorecendo estruturas padronizadas e uma linguagem correta, pouco inovadora e de um registo formal ou literário. No segundo Buch der Unruhe até se observa uma tendência para apagar ainda mais estruturas que possam suscitar estranheza durante a leitura. Contudo, apesar das semelhanças, a segunda tradução apresenta uma versão diferente do Livro. Enquanto a primeira tradução favorece uma leitura decadentista, que situa o autor no contexto histórico-cultural e acentua a universalidade das reflexões sobre o mundo e a personalidade, o segundo Buch der Unruhe tem uma aparência muito mais subjetiva de uma verdadeira autobiografia intelectual. Deste

modo, também destaca as semelhanças entre o autor fictício e o autor empírico, como se Soares fosse apenas uma máscara da personalidade do próprio Pessoa. Em termos autorais, a segunda tradução sublinha sobretudo a importância das relações intertextuais. Além das relações que traduções sempre estabelecem com o texto de partida e com outros textos, nas retraduções existe um relacionamento importante com a tradução anterior. Como nenhum outro fenómeno, retraduções têm o potencial para expor a instabilidade e variabilidade de uma obra, sublinhando a existência de uma versão e interpretação concorrentes de um texto.

O caso do Livro do Desassossego em alemão é particular, porque, em vez de uma interpretação concorrente, a tradução mais recente vem apresentar uma revisão que introduz alterações no texto, sem pôr o primeiro Buch der Unruhe em causa. Além disso, evidencia-se que os paratextos desempenham uma função central na orientação da comunicação narrativa, tendo um impacto considerável na interpretação de um texto. Por isso, deve-se entender a obra como um objeto de um processo no qual não apenas o conteúdo e a forma linguística do texto, mas também a forma material, os paratextos e o contexto histórico estão envolvidos. Desde modo, o autor deixa de ser a origem singular do texto, estando este sempre sujeito a uma mediação de instâncias diferentes ao autor empírico. Portanto, não é tanto o autor empírico que é relevante em termos de circulação de texto, mas a função do autor. Em última análise, independentemente da variedade textual, existe uma realidade discursiva associada ao nome da obra e ao nome do autor que associa as várias versões a um projeto comum.

Resumindo, pode-se concluir que, uma vez que não existe um Livro definitivo, as fronteiras entre edição e tradução, entre texto de partida e texto de chegada tendem a diluir-se. Em vez de ser um original invariável, a obra parece estar sujeita a um processo sempre inacabado de produção de sentido. Editores e tradutores apresentam versões de um texto com base em diferentes leituras do texto, do autor, do trabalho de edição e de tradução, entre outros. A intervenção no texto por entidades exteriores ao autor manifesta- -se visivelmente, e cada edição e tradução estao nitidamente associadas ao momento e lugar, à escola teórica e ao contexto em que estão inseridos. Deparamo-nos com um texto que aparentemente não tem significado fixo, invariável, mas que serve como ponto de partida para um processo de construção de sentido, no qual contextos múltiplos favorecem significados, valores ou funções no texto. Por isso, o Livro do Desassossego, bem como a

obra de Pessoa em geral, ameaça a noção de autoria exclusiva do autor. Tal como Michel Foucault (1980, 1983) sublinha, a fixação no autor mascara apenas uma realidade textual muito mais complexa, em que o autor é apenas uma das entidades envolvidas na produção de textos literários. Contudo, as versões diferentes não são projetos distintos, porque todas elas dizem respeito a uma realidade discursiva comum, unida pelo nome da obra e do autor.

No entanto, várias questões continuam em aberto. Antes de mais, parece necessário reanalisar o processo narrativo em tradução, tendo em conta uma diferenciação entre autor e tradutor empíricos, por um lado, e elementos textuais, por outro lado. Neste contexto será também necessário reavaliar especificidades da comunicação narrativa em tradução, sem explicar as diferenças entre texto traduzidos e não traduzidos com a existência de indivíduos que intervêm na comunicação narrativa. Além disso, o estudo do Livro do Desassossego sublinha a necessidade de considerar movimentos e influências pluridirecionais, que não se limitam à cultura de chegada ou de partida, mas que têm em conta a natureza intercultural não apenas da tradução, mas da produção literária em geral.