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5.   Retraduzir e rever o mesmo livro diferente – a tradução do Livro do

5.2   Questões de autoria III 89

5.2.2.   O papel dos paratextos 92

A abordagem narratológica que se desenvolveu no capítulo anterior permitiu delinear questões importantes relativamente à autoria de traduções. Ao contrário dos posicionamentos discutidos, defendeu-se que a comunicação narrativa em textos traduzidos não requer uma reformulação completa do modelo narrativo, mas funciona, com algumas particularidades, nos mesmos moldes que em narrativas não traduzidas. Contudo, as instâncias textuais numa tradução não correspondem às do texto de partida. Por isso,

falou-se de um autor implícito, um narrador e um leitor implícito da tradução46. Tal como

no caso do primeiro Buch der Unruhe, no segundo também existem estas instâncias. Apesar das semelhanças entre as duas traduções alemãs em termos estilísticos, o segundo BdU sugere uma leitura diferente que não destaca tanto o contexto histórico-cultural, mas se apresenta antes como uma leitura diarística. Esta mudança não se deve tanto a uma alteração da voz narrativa, o Bernardo Soares da segunda tradução parece corresponder ao «moralista» desenhado por Lind (cf. Lind, 1996: 298), mas a outros factores como a organização, a informação paratextual (posfácios, títulos) e o prefácio de «Fernando Pessoa», sugerindo assim uma obra muito mais subjetiva e pessoal, uma verdadeira «autobiografia sem acontecimentos».

A questão aqui é a de descortinar como ou se um leitor tem acesso a este efeito da segunda tradução. Já no contexto da primeira tradução alemã se sublinhou que há um número significativo de alterações no texto às quais o leitor, sem comparação direta com a edição portuguesa, não tem acesso. Mesmo nas várias edições do Livro que existem em Portugal, parece difícil um leitor se aperceber do impacto do trabalho editorial sem conhecer mais do que uma ordenação possível47. Uma vez que os leitores de língua alemã

normalmente não têm acesso ao texto em português, não conseguem registar as mudanças da voz narrativa, por exemplo, que caracterizam o primeiro BdU em comparação com a edição prínceps. No caso da segunda tradução, a situação é um pouco diferente, uma vez que há leitores que conhecerão as duas versões. Tal como acima delineado, as retraduções marcam e destacam frequentemente uma diferença em relação às versões anteriores. No entanto, o segundo BdU não se apresenta como uma nova tradução, mas antes como uma revisão da tradução que a precede. Uma grande parte dos trechos traduzidos por Lind volta a constar da tradução de Koebel, contendo apenas algumas alterações que um leitor que não compare diretamente os dois textos não conseguirá identificar. Parece até provável que leitores que conheçam a primeira tradução não notem uma grande diferença. Apesar de compreender também fragmentos inacabados ou fragmentários, o carácter do segundo BdU não é «repetitivo, obsessivo e fragmentário», como pretende a tradutora (cf. Koebel, 2006: 567), mas bastante homogéneo, contendo poucas repetições ou irregularidades que possam                                                                                                                

46 Também se pode falar obviamente de um narratário da tradução, mas, uma vez que no presente estudo o narratário não é uma instância muito relevante, este aspeto não foi abordado.

47 Mesmo no caso da edição crítica, que tenta tornar visível a intervenção editorial, o impacto da edição na interpretação não é imediatamente acessível, porque é impossível ilustrar, num livro organizado de acordo com certos critérios, o efeito que organizações alternativas têm para a interpretação.

provocar estranheza no leitor. Esta revisão ou retradução não produz uma nova interpretação do texto, antes parece confirmar a interpretação que Lind fez do poeta decadentista. Enquanto a tradução de Lind tentava estabelecer ligações com a literatura europeia, particularmente de língua alemã, para mostrar a «grandeza do génio» de Pessoa, a segunda tradução, surgindo num momento em que Pessoa, apesar de ainda não ter o estatuto de outros autores modernistas, já pode ser considerado um autor canónico na Alemanha, tenta aperfeiçoar uma imagem do autor, favorecendo, por isso, uma leitura que procura proximidade com o próprio Pessoa.

Quando se debateu o termo «tradutor implícito», já se problematizou a noção de uma intenção translatória reconstruível a partir do texto. Neste contexto, paratextos (prefácios, posfácios, notas, capa, entre outros) desempenham um papel particularmente importante. Se no próprio texto o acesso às intenções que presidiram à elaboração de uma tradução ou de uma edição é limitado, nos paratextos os objetivos e as interpretações são frequentemente explicitados. Gérard Genette, que cunhou o termo «paratexto», destaca que:

[a] text rarely appears in its naked state, without the reinforcement and accompaniment of a certain number of productions, themselves verbal or not, like an author's name, a title, a preface, illustrations. One does not always know if one should consider that they belong to the text or not, but in any case they surround it and prolong it, precisely in order to present it, in the usual sense of this verb, but also in its strongest meaning: to make it present, to assure its presence in the world, its "reception" and its consumption, in the form, nowadays at least, of a book. (Genette, 1991: 261)

Portanto, os paratextos orientam ou até asseguram e controlam a leitura e a interpretação de um texto (cf. ibidem). Como Kreimeier et al. (2004) sublinham, os elementos paratextuais organizam a comunicação dos textos. Por isso, no âmbito de um estudo de diferentes edições e traduções, os prefácios, posfácios ou notas não fornecem apenas informações sobre intenções e métodos de trabalho das diversas instâncias envolvidas na produção ou publicação do texto que, de outra forma, não seriam eventualmente acessíveis, mas fazem também parte da produção de sentido de uma determinada edição ou tradução. De facto, a mera designação de «tradução», «retradução» ou «revisão» na capa do livro determina os modos como se lê um determinado texto. Tal como Genette sublinha, «I do not say that one must know [a paratext]; I only say that those

who know it do not read [the text] in the same way as those who do not, and that anyone who denies this difference is making fun of us» (1991: 266).

Em todos os capítulos precedentes, a análise abrangeu também elementos paratextuais, sobretudo peritextos, ou seja, elementos que fazem parte do próprio livro, nomeadamente prefácios ou posfácios. No entanto, ainda não se procedeu a uma análise mais detalhada deste fenómeno. No contexto de retraduções, a problematização de paratextos afigura-se particularmente relevante, uma vez que estes constituem um meio importante para estabelecer uma relação com uma ou várias traduções prévias. É através de notas, prefácios, entre outros, que as retraduções afirmam explicitamente o seu estatuto de retraduções ativas, versões concorrentes de um texto anterior. Lawrence Venuti constata que «retranslations are often presented as a significant improvement because they rely on a definite edition of the source text which was not available or because they employ a discursive strategy that maintains a closer semantic correspondence or stylistic analogy» (2013f: 107). O mesmo acontece no segundo BdU. Em ambos os posfácios se sublinha que esta segunda tradução representa, ao contrário da primeira, uma versão completa que corresponde ao estado atual do saber nos estudos pessoanos (vide supra). Contudo, não há um distanciamento explícito relativamente à primeira tradução. O posfácio da tradutora não refere diferenças em termos de método de tradução, e o posfácio do editor louva expressamente o trabalho pioneiro do «Professor Georg Rufolf Lind» (Ammann, 2006: 375). Neste contexto, o termo «rividiert» [revisto] faz todo o sentido. O que se apresenta não é uma nova interpretação da obra ou uma crítica ao trabalho de Lind, mas uma atualização devido às mudanças na cultura de partida, o que vem confirmar o lugar de Buch der Unruhe dentro da obra pessoana48, bem como de Fernando Pessoa enquanto autor

canónico não apenas da literatura portuguesa ou europeia, mas da literatura mundial. Deste modo, a intenção do segundo Buch der Unruhe não parece consistir na rutura com o primeiro, mas na continuação, numa afirmação da interpretação através de uma edição «fiel», «completa» e «definitiva». Assiste-se, portanto, a uma fixação da imagem da obra e do autor cunhada pelo trabalho de Lind.

Consequentemente suprimem-se os elementos que sublinham o caráter subjetivo da edição de Zenith. Se o prefácio de Zenith convida o leitor a inventar uma arrumação                                                                                                                

48 Aqui escolheu-se conscientemente o título em alemão, porque especialmente no caso da alemão, Buch der

própria para «esta coisa parecida com um livro» (Zenith, 2001: 34), assumindo abertamente o caráter arbitrário da edição, na segunda tradução alemã não se encontra nada neste sentido. Pelo contrário, Ammann descreve a organização de Zenith como sendo tematicamente e cronologicamente coerente (Ammann, 2006: 573) e também na nota da tradutora não se faz menção à edição ideal de que Zenith fala no seu prefácio. Deste modo, o segundo BdU sugere uma leitura do Livro como se fosse uma autobiografia intelectual, uma «Autobiographie ohne Ereignisse» [autobiografia sem acontecimentos] com contornos muito claros do autor empírico, que o prefácio traduzido por Koebel sublinha que viveu «atrás» da máscara de Bernardo Soares.