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4.   Entre edição e tradução – Georg Rudolf Lind e o Livro do Desassossego 41

4.2.   Questões de Autoria II 52

4.2.3.   Autoria e a primeira tradução alemã 66

Depois deste longo excurso sobre a autoria em tradução à comunicação narrativa, é então possível voltar ao caso em estudo neste trabalho. Já se abordou brevemente uma perspetiva narratológica relativamente às edições portuguesas do Livro do Desassossego, sublinhando a importância de diferenciar entre autores real e textual, isto é, entre autor empírico e autor implícito (cf. capítulo 3).

No capítulo 3, sugeriu-se a possibilidade de entender os autores fictícios como uma espécie de autores implícitos por ocuparem não apenas a posição da voz interior ao texto, mas também possibilitarem as imagens autorais que o texto evoca através de características

estéticas, estilísticas e ideológicas. De certo modo, esta proposta é problemática, porque não consegue explicar a relação que se estabelece entre o nome de Fernando Pessoa e as normas da narrativa reconstruídas pelo leitor. Tal como no caso dos heterónimos (cf. capítulo 2), os autores fictícios40 com biografias e obras independentes encenam de certo

modo uma rutura entre a obra e o autor empírico. O universo estilístico e ideológico dos fragmentos do Livro não corresponde ao de Fernando Pessoa, mas é a expressão das personagens fictícias, portanto, de figuras inventadas. Contudo, os editores, tal como a crítica em geral, tendem a equiparar ou aproximar Pessoa às personalidades inventadas, conseguindo, deste modo, explicar o Livro com a personalidade do autor e integrá-lo no contexto da obra de Fernando Pessoa, em geral. Por isso, em termos de reconstrução de uma imagem autoral, bem como do significado global, haverá certamente sempre uma associação com o autor empírico, independentemente da existência dos autores fictícios. De certo modo, existe uma rutura entre o aspeto objetivo do autor implícito, isto é, aspetos textuais que remetem para os autores fictícios, e o aspeto subjetivo que se refere à reconstrução autoral, ou seja, algo que provavelmente estará sempre relacionado com uma operação que identifica o texto com a figura do autor real.

Para além destas problemáticas no que diz respeito ao autor implícito do Livro, deve- -se ainda destacar a complexidade de definir o autor empírico. É certo que Fernando Pessoa compôs os fragmentos, mas, tal como argumentado no capítulo 3.2, ele não pode ser entendido como único responsável pelo texto narrativo nas diferentes edições portuguesas. Por isso, aplicando (e alargando) o modelo da comunicação narrativa de Chatman, é possível defender que no lugar do autor empírico esteja, de facto, um colectivo que, no mínimo, compreende o autor e o editor. No entanto, também parece óbvio que não se pode atribuir a autoria exclusivamente aos editores, visto que o trabalho deles se limita à transcrição (incluindo, em alguns casos, alterações ao nível da ortografia e da pontuação), seleção e ordenação dos fragmentos. Apesar de estas mudanças ou intervenções também poderem influenciar o narrador – grau da heterogeneidade da(s) voz(es) narrativa(s), ponto de vista, por exemplo –, as características linguísticas – uma linguagem experimental que assenta em irregularidades gramaticais e neologismos – correspondem nas diversas                                                                                                                

40 A distinção entre heterónimo e autor fictício remete para a reflexão sobre a autoria na obra de Pessoa no capítulo 2, em que se sublinhou que os heterónimos se referem a um projeto literário específico, isto é, «o drama em gente» desenvolvido entre Caeiro, Reis, Campos e Pessoa ortónimo, antes de representar uma «chave» para todos os textos de Pessoa. Além disso, Pessoa não designou Bernardo Soares heterónimo, mas semi-heterónimo ou personagem literário (cf. capítulo 3).

edições.

No que diz respeito à primeira tradução alemã do Livro, muito do que foi dito acerca das edições portuguesas também se aplica aqui. Em primeiro lugar, o tradutor propõe uma seleção e arrumação próprias que, efectivamente, geram um autor implícito da tradução, ou seja, a organização de Das Buch der Unruhe condiciona as normas da narrativa que um leitor pode reconstruir a partir do texto. Por exemplo, como se tentou mostrar no subcapítulo anterior, a escolha de iniciar o livro com fragmentos que abordam a crise favorece uma leitura que situa o Livro no contexto da decadência.

Contudo, ao contrário das edições portuguesas, na tradução alemã ocorre uma alteração significativa da voz do narrador, que ultrapassa o impacto da sequência dos fragmentos. O Bernardo Soares de Das Buch der Unruhe fala num alemão «correto» e «padronizado», que abdica dos neologismos e das irregularidades gramaticais que caracterizam os fragmentos em português. Para além disso, verifica-se uma desambiguação de estruturas ambíguas, uma homogeneização da heterogeneidade estilística e uma redução das repetições (sem as apagar completamente). Tal como se argumentou atrás, a voz do narrador não deve ser interpretada como a voz de Lind, porque, tal como no caso do autor, o tradutor não tem uma voz diretamente audível e não mediada na narrativa. As alterações estilísticas são um resultado de escolhas e decisões conscientes e inconscientes do tradutor (cf. Munday, 2008: 15; Venuti, 2013d: 33), que não dizem apenas respeito ao próprio tradutor, mas também a factores culturais, linguísticos e históricos da cultura de chegada. Coloca-se então a questão de saber se isto significa que se deve atribuir a autoria ao tradutor e se a tradução, em última análise, tem mais que ver com a cultura de chegada ou se antes não será preciso dar mais ênfase a relações interculturais. Em termos de autoria verifica-se, tal como no caso das edições, que a tradução contém camadas de significado, cuja composição não pode ser atribuída a Fernando Pessoa. Em termos estilísticos, a tradução alemã distingue-se significativamente dos fragmentos em português, não só da edição prínceps, mas também das edições seguintes. No entanto, também uma interpretação do texto traduzido como um texto composto unicamente pelo tradutor, isto é, por Lind, parece pouco viável.

Uma tradução estabelece sempre relações específicas com o texto de partida, bem como com a língua e cultura de partida. Estas relações não têm de ser necessariamente o resultado de escolhas e intenções do tradutor, mas têm sempre um impacto em termos de

construção não apenas no significado da obra, mas também na imagem do autor e da cultura de partida, em geral.

Contudo, parece importante não elevar o tradutor a um segundo autor, porque este gesto, em última análise, apenas representa uma continuação da noção romântica de autoria aplicada também ao tradutor. Em vez de uma definição baseada na atribuição das qualidades da originalidade e criatividade também ao tradutor, fazendo do texto de chegada a expressão da intenção dele, parece, por isso, necessário reformular o conceito de autoria em tradução. A autoria em geral, e particularmente em tradução, afigura-se coletiva, não apenas no sentido de o autor ter escrito o texto para um determinado público. Por isso, talvez o termo «autoria colaborativa» seja mais adequado do que «autoria coletiva». Colaboração não deve aqui ser entendida como uma cooperação consciente num projeto comum, mas antes no sentido de um processo infinito «of reading and writing» (Woodmansee, 1992: 290). Em tradução, o tradutor e outras entidades (por exemplo, os editores) produzem «apenas» mais uma camada de significado, que pode alterar o texto mais ou menos profundamente, embora a tradução mantenha sempre uma relação muito próxima com o texto de partida. De facto, uma tradução é um amálgama de textos, línguas e cultura de partida e chegada, um mosaico complexo de diferentes camadas textuais. Qualquer tentativa de atribuir a tradução apenas ao tradutor limita-se a deslocar a tentativa de criar uma ilusão de unidade da ação do autor para o gesto do tradutor.

É verdade que, por um lado, é possível defender que a reivindicação do estatuto de autoria para o tradutor é apenas uma estratégia alternativa para lidar com a proliferação de significado, tendo a vantagem de poder contrariar a marginalização do tradutor. Todavia, por outro lado, insiste na alteridade, destacando apenas diferenças entre línguas e culturas e ignorando as variações dentro das mesmas. Em vez de se dirigir a atenção apenas para as diferenças entre o texto de partida e de chegada, para aquilo que não se pode transferir, para o «unbridgable» (Pym, 2010: 179), talvez seja mais importante analisar como os textos circulam e como e o que se comunica nos textos que sobrevivem ao longo do tempo em várias culturas e línguas.

5. Retraduzir e rever o mesmo livro diferente – a tradução do Livro do