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4. DIÁLOGO FICCIONAL/JOGOS DE CENAS SOBRE PRÁTICAS

4.2 Abordagens pedagógicas em questão

Marta – O que diz é interessante, mas não sei se os professores mudariam sua postura diante do ensino a partir da perspectiva sociocultural como, por exemplo, a etnomatemática. Entendo que trabalhamos quase que exclusivamente abordagens psicológicas, mas é a linha que a rede de municipal de educação de nosso município segue. Se nosso propósito é melhorar o desempenho das crianças com relação à matemática, como vamos trabalhar numa perspectiva que não a da rede de ensino? Suponho que falta ao professor insistir nas atividades propostas pela formação, eles desistem rapidamente. No decorrer dos nossos encontros, os professores/cursistas são levados a ampliarem seus conhecimentos a partir de diferentes concepções de ensino e aprendizagem, relacionadas às abordagens psicológicas e socioculturais, mais especificamente, a etnometemática.

Paula – Tem razão. Das abordagens que empregamos, a mais próxima de uma visão sociocultural do ensino de matemática é a etnomatemática. Mas o modo de vê-la como um método facilitador para motivar o aluno a aprender a reduz apenas ao aspecto psicológico da motivação. E, ainda, ao abordá-la unicamente como um modo de ver matemática nos objetos culturais como na fabricação de cestarias, tapetes, cerâmicas, restringe-se a uma visão unicista da matemática. Talvez, estes sejam outros aspectos que devemos considerar no curso de formação.

Marta – E como faríamos isto?

Paula – Problematizar as práticas culturais poderia ser um modo de esclarecer os saberes, inclusive os denominados de matemáticos, mobilizados nessas práticas, não só, mas também, suas genealogias, as relações de poder, os aspectos axiológicos, afetivos e todos os

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outros aspectos que constituem essas práticas, poderia ser um modo terapêutico de curar-se de dietas psicopedagógicas, do curso, afinal, como diz Vilela129: “A terapia filosófica é o ponto de partida: uma atividade de percorrer usos ou empreender descrições de usos de palavras, com a finalidade de se desfazer confusões conceituais [...]”. Não quero fazer aqui a apologia de uma solução verdadeira, mas de uma projeção possível de outra forma de ver. Por exemplo, quando abordamos o calendário “katyba” dos índios waimiri-atroari, ou mesmo o seu sistema de contagem e o conhecimento sobre refração, importantíssimo para a realização da pescaria130, poderíamos abordar estes outros aspectos citados. Sem nos deter apenas aos aspectos matemáticos da tribo, oportunizaríamos um conhecimento social e cultural mais amplo sobre essa tribo.

Marta – Isso significa que além de tudo já lido e pesquisado para compor o curso até este momento, teríamos que investir no estudo de abordagens pedagógicas sob uma perspectiva sociocultural para problematizar práticas culturais?

Paula – Sem dúvida, exigiria que primeiramente realizássemos a problematização de práticas socioculturais para posteriormente mobilizá-las junto aos professores/cursistas.

As avaliações das professoras apontam para alguns resultados sobre nosso trabalho de formação, especialmente no que se refere à etnomatemática. Veja estes excertos de relatos nas avaliações do final da primeira etapa das professoras/cursistas131: “acredito que entrei de uma maneira e sairei de outra deste curso”; “neste instante ainda estou descobrindo a sua função (ábaco) quanto ao trabalho com o SND (sistema de numeração decimal) e tão logo tenha conquistado a segurança de utilizá-lo (ábaco), o farei”; “meu embasamento teórico, com certeza, foi ampliado e na prática posso administrar os conteúdos com mais propriedade”; “tudo isso que aprendi contribuiu para enriquecer minha prática em sala de aula”; “essa etapa teve como ponto positivo principal a prática e, com certeza, conscientizou a todos sobre a importância de sua

129 Vilela (2010, p. 438).

130

Ferreira (2005, p. 92).

131 Coletânea de excertos das avaliações escritas dos cursistas ao final da I etapa do Programa de

Aperfeiçoamento na Linguagem Matemática. Houve poucas interferências na escrita com o objetivo de torná-las mais coerentes gramaticalmente. Os excertos variam de autores (apresentados aqui com nomes fictícios) e datas, respectivamente na ordem descrita acima, separados por ponto e vírgula: Solange – 02.07..2008; Augusta – set/2006; Leila – 10.09.2009; Júlia – dez/2008; Fernanda – 06.05 2011; Rita – 09.05.2008.

utilização no dia-a-dia”; “os momentos mais marcantes foram a linha do tempo132 (eu nunca havia pensado matemática assim) e os agrupamentos e desagrupamentos no ábaco133”; “mudar a nossa prática não é uma coisa fácil, principalmente dentro do sistema educacional que temos”; “acredito que será um grande desafio trabalhar a etnomatemática, pois pode oferecer situações que levem os alunos a se tornarem verdadeiramente participativos”; e assim por diante.

Marta – É possível que essas professoras tenham modificado sua prática com base nas práticas escolares de mobilização da matemática do PALMA?

Paula – Considero precipitado nos apoiarmos apenas nos rastros de falas dessas professoras para concluirmos dessa maneira. Sem contar que é possível problematizar cada um desses relatos avaliativos do curso.

Esses relatos escritos das professoras referem-se de forma vaga a respeito de suas aprendizagens no curso e também não tive a oportunidade de presenciar, na sala de aula destas professoras, alguma atividade que pudesse ser relacionada com uma abordagem da etnomatemática, por exemplo, ou mesmo da linha do tempo ou de agrupamentos/desagrupamentos.

Quando a professora Rita afirma ser um desafio “trabalhar a etnomatemática, pois pode oferecer situações que levem os alunos a se tornarem verdadeiramente participativos”, é como se esse fosse um privilégio apenas da etnomatemática.

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Dinâmica: Linha do tempo (anexo D) – Distribuir (plaquetas escritas) aos professores com fatos que aconteceram na história da Matemática. Fixar o cartaz da linha do tempo – Diante deste cartaz, os professores irão localizar as datas e colar as plaquetas com as informações que possibilitem a localização dos fatos.

Enfatizar que visualizamos a história das necessidades e preocupações essencialmente humanas, uma história: concreta e informal; que teve seus altos e baixos – processo; anônima (apesar dos inúmeros documentos, pedras, papirus – que se perderam com o tempo); movimento – aprimoramento (por tentativas e erros); não é linear; não teve uma sucessão de conceitos encadeados uns aos outros; não é estática; não é simultânea. A partir do conhecimento das dificuldades enfrentadas nessa caminhada, tem-se uma melhor compreensão das dificuldades enfrentadas pelos alunos, ao percorrer um caminho com os mesmos obstáculos. Deve-se reconhecer que o aluno está imerso neste processo de evolução do conhecimento, ou seja, faz parte da cultura em construção. Abordar com os participantes que atualmente vivemos numa sociedade da informação e que, se analisarmos a linha do tempo, os fatos matemáticos são recentes se comparados com o surgimento do homem na Terra. E que as informações chegam rapidamente a todos os lugares, gerando assim o desenvolvimento tecnológico (matemático) contínuo e acelerado. Objetivo da atividade: Através da linha do tempo refletir sobre a História da Matemática.

133 Sequência de atividades realizadas após a apresentação da história do ábaco e suas diferentes representações

nas diversas civilizações (anexo F), nas quais os agrupamentos e desagrupamentos estão relacionados às regras do sistema de numeração da base dez, ou mesmo em outras bases. A sequência de atividades se inicia com agrupamentos e desagrupamentos em diferentes bases com o objetivo de compreensão da regra de se utilizar uma quantia limitada de algarismos para representar quantidades infinitas a partir do recurso do valor posicional de tais algarismos. A sequência tem continuidade nas operações aritméticas de adição, subtração, multiplicação e divisão no ábaco.

Marta – Tem razão, abordagens psicológicas como o construtivismo, por exemplo, colocam no centro da aprendizagem a participação ativa do aluno.

Paula – A questão é: como abordamos a etnomatemática no curso para que incorresse essa fala da professora?

Marta – Primeiramente pedimos uma pesquisa sobre etnomatemática134 com o objetivo de rastrearem o seu significado. No encontro seguinte, munidas de três textos de autores diferentes, distribuímos um para cada integrante do grupo/classe 135 como leitura para casa. No encontro seguinte houve um seminário sobre o tema, baseado nos textos disponibilizados e na pesquisa individual.

Paula – Baseamo-nos em D’Ambrósio136 para a condução da discussão. Cada um dos textos abordou a etnomatemática por aspectos diferentes: Ferreira, com sua experiência como formador de professor/índio na aldeia Tapirapé, no qual relata a racionalidade própria dos índios para as situações cotidianas da aldeia; já Domite137, em seu artigo, descreveu três situações para levar o leitor a refletir sobre a matemática no contexto escolar.

Marta – Enquanto que o artigo, Etnomatemática: uma crítica, relata o significado etimológico da palavra etnomatemática, seu significado na prática e, em seguida, descreve trechos de críticas acerca da etnomatemática.

Paula – E qual foi o objetivo do programa em apresentar essas vertentes sobre etnomatemática?

Marta – Bem, não sei quais vertentes mais existem, porém lembro-me que procuramos trazer a etnomatemática em diferentes contextos.

Paula – Apesar de termos como objetivo ampliar o significado de etnomatemática através dos textos, parece-me que a ênfase ficou no texto de Domite138.

Marta – Faz sentido, pois seus relatos são de práticas escolares.

134

Tarefa pedida no 8º encontro da I Etapa:

PARA O LAR: Pesquise – O que é Etnomatemática? Faça uma reflexão pessoal sobre a mesma e coloque a fonte de pesquisa. Entregar por escrito no próximo encontro.

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Tarefa pedida no 9º encontro da I Etapa:

PARA O LAR: Após a leitura do texto sobre a Etnomatemática, cite e comente as ideias que julgou mais interessantes do texto e entregue no 11º encontro. Atividade do 11º encontro: Grupos organizados por tipos de textos: Fazer uma reflexão entre a matemática acadêmica e a etnomatemática: Grupos 1 – “Racionalidade dos índios brasileiros” de FERREIRA, E. S.; Grupos 2 – “Etnomatemática em ação” de DOMITE, M. do C. S.; Grupos 3 – “Etnomatemática - uma crítica” disponível em: <http://www.mat.ufrgs.br/~portosil/polemi27.html>. Acesso em: 18 out. 2014.

136 D’Ambrosio (2001). 137

Domite (2005).

Paula – Bem, talvez o comentário que a professora Rita trouxe na sua avaliação ao se referir à etnomatemática esteja restrito à cultura matemática que o aluno leva para a escola, por ter sido essa a visão que o curso desenvolveu com maior ênfase, o que indica a necessidade de uma revisão do curso nesse sentido.

Marta – Talvez isso tenha acontecido por uma falta de preparo/conhecimento mais profundo, de nossa parte, sobre a etnomatemática, o que poderia evitar essa dieta unilateral. Você diz revisão no sentido de abordar outras “etnomatemáticas”?

Paula – Exato. Há, por exemplo, a etnomatemática camponesa, denominada assim por abranger as práticas culturais e políticas do conhecimento matemático dos camponeses sem terra/assentados. Segundo Knijnik139, esta matemática camponesa é produzida por uma linguagem que em muito se afasta daquela utilizada pela matemática acadêmica e pela escolar. Como todas as narrativas, as que constituem a matemática camponesa, produzidas por uma linguagem carregada de significados culturalmente situados, são contingentes. Por exemplo, “cubação da terra” significa medição da terra, descrita por Knijnik no artigo que temos nesta revista (mostra a revista - Scientific American Brasil - sobre a mesa).

Marta – Interessante, aqui nesta revista, a autora destaca sua preocupação sobre linguagem situada com relação tanto ao significado que é dado às palavras quanto à maneira como explicam e como fazem, por exemplo, a cubação da terra. Como afirma Bello 140, a linguagem envolve modos de pensar e de agir.

Paula – Semelhante, ainda em consonância com Bello141, à perspectiva da virada linguística ao afirmar que não existe nada além da linguagem. Nesse predomínio da linguagem, nos modos de dizer e ver (nesta ordem), nada estaria do lado de fora da linguagem, nem os significados para os objetos, nem os elementos da vida social e nem, em último caso, os nossos pensamentos.

A interpretação privilegiada da professora com relação à etnomatemática deve-se ao conjunto de significados que apresentamos no jogo de linguagem encenado nas aulas do PALMA. Os processos de produção em que nós, formadoras, e professores/cursistas estamos envolvidos são sempre de natureza interpretativa.

139 Knijnik (2005, p. 86).

140

Bello (2010, p. 551).

Marta – Pensar etnomatemática na prática escolar é pensar também no sentido de entender que a linguagem trazida para a escola está imbuída de uma cultura que não a escolar.

Paula – Não há sentido em pensar em etnomatemática como uma cultura da criança que pode ser aproveitada pelo professor para ensinar a matemática escolar, ou mesmo para tornar a matemática escolar mais significativa.

Não é só isso, imaginar uma linguagem é imaginar uma forma de vida, é imaginar uma cultura, portanto um jogo de linguagem com sua gramática própria, ou seja, regrado. Com relação à etnomatemática, a matemática dos índios faz sentido naquela cultura, a matemática camponesa faz sentido naquele espaço específico, a matemática escolar faz sentido na escola. A matemática não deixa de ser matemática só porque está em outro contexto que não o dos matemáticos, ou, ainda, não precisa ser compartimentada em categorias: medir, contar, calcular, para ser considerada matemática.

Na sua origem a etnomatemática, segundo Ubiratan D’Ambrósio, propôs um rompimento com essa forma única de se pensar matemática e enxergar as várias matemáticas existentes.

A tradição disciplinar escolar e científico-acadêmica da cultura fez com que o programa da etnomatemática se enveredasse para este caminho, uma visão da etnomatemática que consiste em fazer uma correlação entre os conceitos matemáticos e as ações das culturas se orientarem normativamente no modo de fazer seus objetos de uso.

Marta – Dê-me um exemplo desta correlação entre os conceitos e as ações culturais.

Paula – Paulus Gerdes142, de Moçambique, pesquisador da etnomatemática, escreveu um artigo – posso disponibilizar-lhe o arquivo, se quiser – no qual analisa o aparecimento da etnomatemática como domínio de investigação, traz uma revisão literária da etnomatemática em cada continente e fornece exemplos educacionais numa perspectiva etnomatemática: jogos de concha, na Costa do Marfim – como ponto de partida para as atividades matemáticas em sala de aula com o objetivo de aumentar a motivação dos alunos e dos professores; vendedoras do mercado, em Moçambique – com a intenção de respeitar as ideias matemáticas semelhantes ou diferentes das dos livros textos de pessoas com baixa ou nenhuma educação formal; utilização de ideias incorporadas nas atividades de camponeses no Brasil – para desenvolver um currículo matemático para e

142 Gerdes (1996).

com/de este grupo; descoberta do conceito de hexágono regular e de algumas das suas propriedades na reflexão sobre a invenção do padrão de entrelaçamento aberto hexagonal – no contexto da procura de produção de armadilhas de pesca.

Marta – São exemplos de vários usos educacionais da etnomatemática. A etnomatemática poderia ter seguido outro caminho?

Paula - Poderia ter se embrenhado num campo que não esse de ver as matemáticas exclusivamente como um conjunto fixo de conteúdos típicos, compartimentados, que impedem de vê-las envolvidas em práticas socioculturais de atividades humanas diversas, denominada como matemáticas (in)disciplinares por Miguel, Vilela e Moura 143.

Marta – Seria outra concepção de matemática?

Paula – Seriam, segundo Miguel, Vilela e Moura144, os primeiros passos da constituição de um modo possível e não arbitrário, ainda que normativo, de praticar matemática em diferentes contextos de atividade humana.

Marta – Posso dizer então que é uma concepção wittgensteiniana da matemática? Paula – Ainda segundo Miguel, Vilela e Moura 145, essa atitude indisciplinar de considerar a matemática inspira-se na filosofia do segundo Wittgenstein no sentido de atrever-se a explorar alguns de seus possíveis desdobramentos, através dos interstícios (fendas, brechas) abertos por pistas sugeridas pelo modo não dogmático e sugestivo da fluência do discurso wittgensteiniano. Isso não significa, entretanto, uma proposta de rompimento com a unicidade da matemática, por mais que possa parecer.

Marta – O que significa então?

Paula – Significa horizontalizar as matemáticas, colocá-las todas sobre o mesmo plano, sem necessariamente hierarquizá-las. Analogamente à atitude de Picasso em sua obra

Les Demoiselles d’Avignon, significa trazer à mostra as facetas ocultas das personagens

representadas.

Se, por exemplo, a etnomatemática é considerada uma matemática de grupos culturais, a matemática eurocêntrica também o é, pois essa matemática praticada pelos matemáticos vem de um grupo cultural situado.

143 Miguel, Vilela e Moura (2010, p. 150). 144

Ibid. (p. 149).

Marta – É outra opção de abordagem pedagógica que envolve procedimentos bem diferentes daqueles utilizados hoje.

Paula – Com certeza. Já que estamos no início de dois processos: processo de elaboração do planejamento do curso que se iniciará em breve e o processo de problematização da nossa própria prática de formadoras, podemos colocar tudo em questão, não para negar ou destruir as abordagens pedagógicas que utilizamos até a última turma do curso, mas com o intuito de desconstruir, problematizar esse pot-pourri de abordagens e práticas pedagógicas na formação, que nos aprisionam como verdades de sucesso. O fato de não encontrarmos repetições/imitações de abordagens do curso nas salas de aula dos professores que o fizeram desestabilizou a zona de conforto do sucesso alcançado ao qual nos apegamos.

Por exemplo, podemos começar pela problematização do nome do curso de formação.

Marta – Como assim? Pelo nome PALMA?