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1.4 REPRESENTAÇÃO POLÍTICA COMO PROCESSO

1.4.2 Accountability política e responsividade

Tradicionalmente, a ideia de accountability tem sido expressada do seguinte modo: uma relação de accountability existe entre um agente, X, e um sujeito, Y, se X é de algum modo obrigado a agir em favor de Y e se, por outro lado, Y tem o poder de aplicar sanções ou de atribuir recompensas a X por suas atividades ou performance realizadas (FEARON, 1999). Originalmente, esta é uma noção que pertence ao campo econômico e está particularmente associada à perspectiva da principal-agent theory. Nesta concepção, a accountability pode ser compreendida como um conceito que envolve duas dimensões básicas, a saber: (a) o agente é aquele que está autorizado a agir em favor dos interesses de seu agenciado e para tal precisa de algum modo ter conhecimento destes interesses; (b) o agenciado (principal) é aquele que tem a capacidade de punir o agente quando este agir de modo desfavorável e de recompesá-lo quando agir da forma esperada.

O campo político acabou se apropriando dessa ideia, associando-a ao período eleitoral. Nesse sentido, accountability é apresentada como um mecanismo de sanção ou recompensa, no qual o cidadão tem capacidade de julgar as ações dos seus representantes reelegendo os que atuarem de forma condizente com o esperado e rejeitando aqueles que                                                                                                                

36 Quero dizer com isso que uma imensa quantidade de informações não é suficiente para inferir algo se o individuo não souber como articulá-las, relacioná-las ou diferenciá-las, por exemplo.

tiveram performances ruins. De acordo com Manin, Przeworski e Stokes (1999, p. 10) “governos são ‘accountable’ se os cidadãos podem discernir um governo representativo do não-representativo e podem sancioná-los apropriadamente, mantendo na função os representantes que atuaram bem e retirando da função os que não o fizeram”.

A questão fundamental, nesse sentido, é pensar que esta compreensão da accountability eleitoral supõe que o fenômeno ocorra apenas sazonalmente. Isso implica que as eleições são vistas como o principal momento (senão o único) em que o agente é autorizado a representar e, ao mesmo tempo, a vontade dos agenciados é conhecida por meio da expressão do voto e do resultado das urnas. O problema aqui, contudo, é que essa compreensão considera que os interesses e opiniões revelados pelos agenciados durante a eleição, permanecem imutáveis durante o mandato. Ocorre que interesses e opiniões estão sujeitos a mudanças a depender das condições de informação, de novas experiências e conjunturas específicas. Outra questão é que ao considerar as eleições como principal periodo para a efetivação da accountability é preciso ressaltar a distância entre um periodo eleitoral e outro, de modo que torna difícil para o cidadão acumular informações sobre o desempenho de seus representantes para exercerem um julgamento sobre suas ações. Soma-se a isso, a complexidade dos sistemas políticos contemporâneos. Segundo Douglas Arnold (2006), a estrutura do Estado organizada a partir de federações, separação dos poderes e bicamaralismo dificulta a avaliação dos cidadãos sobre quem, de fato, são os responsáveis pelo aprimoramento ou pela deterioração das suas condições de vida e, portanto, sobre quem deve ser punido ou recompensado.

Em segundo lugar, Mark Philp (2009) tece algumas críticas em relação à compreensão que a principal-agent theory (teoria da agência) tem da accountability. Duas delas são importantes nesse contexto. A primeira é que a teoria da agência assume que se trata de uma relação bilateral, quando, na verdade, trata-se de uma relação em que muitos agenciados, cujos interesses podem ser conflitantes, são representados por um mesmo agente, estabelecendo, portanto, uma relação mais complexa. O segundo problema é que essa visão produz uma concepção de accountability que considera as condições circunstanciais como condições necessárias para sua efetividade. Nesse caso, Philp refere-se aos aspectos da sanção e da recompensa como elementos prescindíveis: são mecanismos importantes para melhor garantir os resultados, mas sua ausência não impede que a relação de accountability se estabeleça. Um bom exemplo são as “comissões da verdade”, formadas em alguns países (Brasil, Chile, Africa do Sul) para investigar

violações aos direitos humanos realizados por regimes antecessores (sobretudo ditatoriais). Tais comissões possuem a função de investigar, expor publicamente os fatos e explicar o que teria ocorrido em determinadas situações, porém não possuem poder de punir os responsáveis por esses atos.

Desse modo, embora seja no periodo eleitoral em que se pode efetivamente recompensar ou rejeitar determinado representante, também durante o mandato os cidadãos reunem informações necessárias – que envolvem justificativas e explicações desse representante – para formular seu juízo sobre a atuação do mesmo. A sanção ou recompensa podem não ser imediatas, mas são influenciadas por tais informações. Nesse sentido, é preciso pensar o conceito de accountability além das fronteiras estritamente eleitorais, como parte do processo de representação que ocorre durante o periodo do mandato.

De acordo com Gutmann e Thompson (1996) accountability envolve um processo de justificação pública das ações e decisões realizadas por parte do conjunto de representantes. Diferentemente dos demais autores, Gutmann e Thompson (1996) não partem de uma compreensão a partir da principal-agent theory, mas propõe um entendimento sobre a ótica da teoria deliberativa.

A deliberative principle of accountability asks representatives to do more than try to win reelection, and more than to respect constitutional rights. In deliberative democracy representatives are expected to justify their actions in moral terms. In the spirit reciprocity, they give reasons that can be accepted by all those who are bound by the laws and policies they justify. Given the criterion of generality implied by the moral point of view the reasons should also adress the claims of anyone who is significantly affected by the laws and policies (GUTMANN & THOMPSON, 1996, p. 129).

Sua contribuição diz respeito, portanto, ao fato de oferecerem uma concepção de accountability que não está vinculada, necessariamente, ao conceito de sanção. De modo semelhante, Andreas Schedler (1999) já havia proposto pensar a accountability como um conceito composto por duas dimensões, não excludentes: a da responsividade, que diz respeito a obrigação dos representantes de informar sobre suas ações e oferecer justificativas para seus atos, isto é, a obrigação moral do representante de responder a questões formuladas. E a dimensão do constrangimento, que envolve a capacidade dos agenciados de impor sanções sobre os agentes que, de algum modo, violaram suas

obrigações. Entretanto Schedler reconhece que a ausência de uma ou outra dimensão não impede que a relação de accountability se estabeleça.

É importante ressaltar que o accountability eleitoral, ao focar no ato de sanção dos agenciados, negligencia essa dimensão da responsividade – noção que é muito cara à ideia de representação, sobretudo no modo como ela é compreendida nesse trabalho. Pois, retoma-se aqui a perspectiva de Pitkin (1967) segundo a qual os representantes devem decidir de acordo com os interesses dos representados e apresentar boas razões quando não o fizerem.

1.4.3 Interação com o público

Um terceiro elemento a ser considerado para se entender o processo de representação política diz respeito à necessidade de que, para a efetivação da representação, os representantes, de algum modo, precisam levar em consideração os interesses, as opiniões e as reivindicações dos representados. Se é esperado que os representantes ajam de acordo com o interesse público, então é razoável supor que, antes, eles tenham conhecimento sobre quais são esses interesses. Desse modo, o que reivindica com esse aspecto do processo de representação é algum nível de interação entre representantes e representados.

Sivaldo Silva (2009), por exemplo, chama atenção para esse aspecto, denominando-o “porosidade” – uma metáfora empregada pelo autor para se referir à obrigação de considerar a opinião e vontade públicas. Silva (2009) escolhe uma metáfora como forma de evitar o termo “participação” porque, tradicionalmente, a ideia de participação está associada à noção de que o cidadão deve interferir diretamente nos assuntos públicos.

De fato, aqui não se trata de uma definição que defenda uma participação direta dos cidadãos no processo de tomada de decisão, mas de pensar que na própria ideia de representação já está embutida um nível de influência dos representados na atuação dos representantes.

demonstrating its control over its subjects but just the reverse, by demonstrating that its subjects have control over what it does. Every government`s actions are attributed to its subject formally, legally. But in a representative government this attribution has a substantive content: the people really do act through their government, and are not merely passive recipients of its actions [...] For in a representative government the governed must be capable of action and judgment, capable of initiating government activity, so that the government may be conceived as responding to them [...] Correspondingly, a representative government requires that there be machinery for the expression of the wishes of the represented, and that the government respond to these wishes unless there are good reasons to the contrary (PITKIN, 1967, p. 232-233).

Como ressalta Pitkin, é preciso que existam esses mecanismos ou canais mediante os quais os anseios dos cidadãos chegarão aos representantes, que por sua vez devem agir como moderadores, acomodando os diversos interesses conflitantes e produzindo decisões que, de algum modo, atendam tais anseios ou oferecendo as justificativas ou razões quando não for possível atendê-los (responsividade).

Habermas (2003) apresenta um modelo de circulação do poder que consiste em reconhecer a esfera do poder organizado administrativamente – autorizada a produzir decisões (centro) – e uma outra esfera, de formação da opinião, de onde emana legitimamente o poder (periferia). Para o autor, o governo representativo está caracterizado por uma ruptura que ocorre entre a esfera que está autorizada a produzir a decisão e a esfera que legitima a decisão. O fundamental seria, então, garantir mecanismos através dos quais as opiniões e razões produzidas nessa esfera de formação da opinião tenham entrada na esfera autorizada a produzir a decisão. O que se pode inferir da proposição de Habermas, em se tratando de governos representativos contemporâneos, é que aqueles que estão autorizados a tomar a decisão políticas, os representantes, levem em consideração os interesses, opiniões e demandas, daqueles que são, de fato, representados.

A emancipação ilegítima do poder social e administrativo, que se afasta do poder comunicativo, gerado democraticamente, poderá ser anulada na medida em que a periferia for: a) capaz de e b) tiver razões para farejar problemas latentes de integração social (cuja elaboração é essencialmente política), identificá-los, tematizá-los e introduzi-los no sistema político, passando pelas comportas do complexo parlamentar (ou dos tribunais), fazendo com que o modo rotineiro seja quebrado. (HABERMAS, 2003, p. 90).

O que é perceptível na proposição de Habermas é a importância concedida ao processo através do qual a denominada periferia (representados) se relaciona com o

centro (representantes), como condição para garantir a legitimidade do processo de tomada de decisão. As comportas podem ser compreendidas tanto como mecanismos, aos quais se refere Pitkin (1967), quanto como a porosidade referida por Silva (2009).