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A ideia de representação foi incorporada à Teoria Política pelas mãos de Thomas Hobbes, quem pela primeira vez promoveu um exame mais detido (cuidadoso) e sistemático sobre o tema no contexto de um pensamento político (PITKIN, 1967). Para Hobbes, o Estado é instituído quando uma multidão é transformada em uma pessoa, ou seja, quando cada um dos homens consente em ser representado por um único indivíduo ou por uma assembleia deles. E a representação aqui é ilimitada, o que quer dizer que, ao

conferir o poder soberano aos representantes, os representados autorizam todos os atos e decisões destes como se fossem seus. Como o pacto não é celebrado entre o soberano e cada cidadão e sim entre os cidadãos, não existe possibilidade de quebra do pacto por parte do soberano, “portanto nenhum dos súditos pode libertar-se da sujeição, sob qualquer pretexto de infração” (HOBBES, 2004, p. 146).

O ponto inicial proposto por Hobbes para se refletir sobre a representação, naturalmente, influenciou o pensamento de muitos teóricos, incluindo os defensores da ideia de governo representativo. Surge, dessa concepção embrionária, alguns modelos sobre a representação política os quais procuraremos delinear a seguir.

1.3.1 Os modelos eleitorais de representação política

A ideia inaugurada por Hobbes teve influência direta, por exemplo, nos modelos iniciais de representação política, que colocavam as eleições como manifestação do ato de autorização. Autorizar, neste contexto, significa transferir para outro o direito de agir em seu nome, ao mesmo tempo que assume as responsabilidades por estas ações.

For the theorist of representative democracy working from an authorization definition, the crucial criterion becomes elections, and these are seen as a grant of authority by the voters to the elected officials. Normally this grant of authority is limited as to time, so that the officials’ status as representatives ends when the time comes for new elections. In each election, voters grant authority anew, name representatives anew, though of course they may reauthorize the same individuals for another term. The definitive election is the one which puts a man into office, for it is that election which gives him authority and makes him a representative. Elections are acts of ‘vesting authority’ (PITKIN, 1967, p. 43).

Pitkin (1967) explica que, nesta perspectiva, a “representação é uma espécie de ‘caixa preta’ moldada pelo ato inicial de dar autoridade, dentro da qual o representante pode fazer o que bem entender. Se ele deixa a caixa, se excede os limites, ele não mais representa” (p. 39).

Mesmo os teóricos que vinculam a representação política ao ato de eleger um governante podem interpretar o voto de distintas maneiras. Aqui, expomos dois modelos, em que a eleição funciona como um mecanismo de seleção ou de prestação de

contas. O modelo de seleção centraliza os esforços dos cidadãos na escolha de um representante que possua interesses comuns com os representados. A eleição é vista como uma chance de selecionar o melhor perfil de candidato, aquele que esteja em consonância com as atitudes e valores do eleitorado27. “Os partidos ou candidatos fazem

propostas políticas durante a campanha e explicam como essas propostas poderiam afetar o bem-estar dos cidadãos, o quais elegem as propostas que querem que sejam implementadas e os políticos que se encarregarão de praticá-las” (MANIN, PRZEWORSKI e STOKES, 2006, p. 105).

De acordo com este modelo, o mecanismo crucial de representação das visões dos eleitores é a seleção. Ou seja, segundo tal perspectiva, a capacidade de os cidadãos de influenciarem as políticas públicas reside e se restringe à definição de seu governante. Por conta disso, torna-se fundamental a criação de estratégias confiáveis de seleção e classificação. Dentre elas, se destaca a necessidade de obter informações de qualidade sobre as motivações dos candidatos, o que inclui a busca por sinais que indiquem o seu perfil.

Ao contrário das perspectivas que defendem que sempre há conflito de interesses entre governados e governantes, os seguidores do modelo de seleção argumentam que pode haver objetivos alinhados entre as duas partes28. Para eles, as ações dos

representantes não são orientadas somente por agentes externos que podem trazer recompensas (destacadamente, a reeleição) ou sanções, mas também por motivações intrínsecas. Ou seja, alguns deles já são internamente motivados a agirem em favor do interesse público.

A representative might, in principle, promote lower taxes simply because he or she personally had a lot of property subject to tax. Certain occupations, however – including politics in relatively uncorrupt democracies – attract agents whose intrinsic motivations include what might be called public spirit (MANSBRIDGE, 2008, p.20).

                                                                                                               

27 Mansbridge (2008) menciona três características descritas por Fearon como definidoras de um bom político: ter preferências política similares às dos votantes, ser honesto e com bons princípios e ser suficientemente hábil.

28 “When alignment is good, any difference between the objectives of the principal and the agent will tend to involve the pay and conditions of work, not the character of the work itself. In regard to the work itself, the objectives of the principal and the agent can be intrinsically very largely aligned” (Mansbridge, 2008, pp.4-5).

Assim, seria mais proveitoso para o cidadão consumir mais energia na busca de um bom candidato e, em consequência, gastar pouco ou até mesmo nenhum tempo com monitoramento e punições aos governantes. Defende-se ainda que, nos casos em que o candidato eleito intrinsicamente tem os mesmos objetivos que o eleitorado, o ato de monitorá-lo periodicamente pode minar suas motivações.

Para Mansbridge (2008), o eleitor que opta por adotar o modelo de seleção não deseja uma relação instrumental com o seu representante e sim uma baseada na confiança e metas comuns. Não é que se acredite que o eleitor possa ter ao seu alcance somente o mecanismo de seleção, mas que, neste modelo, selecionar o melhor candidato se torne um ato crucial e as sanções recursos periféricos. Os defensores do modelo também acreditam que a sensação de que escolheu alguém como ele, com os mesmos objetivos, faz com que o eleitor construa uma relação mais próxima com o representante, ainda que haja uma distância entre os mesmos.

Constituents can take some satisfaction from the quality of their relationship with an intrinsically motivated selected representative. Many constituents can feel correctly that the representative is like them, at least in policy objectives and often in much more, including an overall approach to life (MANSBRIDGE, 2008, p. 46)

Por outro lado, o modelo de seleção tende a ser mais efetivo em regiões homogêneas, característica associada a um de seus problemas - representatives in such districts can easily ignore the objectives of the minority whose interests and objectives conflict with those of their majority. They have little incentive to communicate with the minority (MANSBRIDGE, 2008, p. 38-39). E também não pode ser aplicada em todas as circunstâncias, sendo inviável em governos corruptos.

Em outra via, ao engajar-se na legislatura e tornar-se um perito, o governante, ainda que siga orientado pelas mesmas metas, pode perder a consonância com os eleitores e perceber que o que ele acha melhor para o país está cada vez mais distante do que os representados consideram importante. Em alguns casos, “as mudanças de condições que são endógenas à política de governo, mas que não foram previstas pelo político antes de chegar ao cargo, podem ser razões para mudar o rumo político em prol do bem-estar dos cidadãos” (MANIN, PRZEWORSKI e STOKES, 2006, p. 114). Mas,

por não ter acesso às mesmas informações que o representante, o eleitor pode puni-lo pelo desvio e duvidar de suas boas intenções. O que faz com que muitos governantes mantenham suas promessas ainda que, com isso, comprometam o eleitorado.

No modelo de prestação de contas, o governante deve atuar em favor daqueles que o elegeram, representando suas opiniões e interesses, e cumprir as promessas feitas no período eleitoral. De acordo com esta concepção, o cidadão deve acompanhar de perto os atos dos governantes para avaliar se o seu comportamento é merecedor de recompensas ou punições. Ainda que tenha autorizado o representante a agir em seu favor, o eleitor pode questioná-lo e exigir que ele faça esclarecimentos satisfatórios a respeito das decisões tomadas. “The heart of the principal-agent approach to representation is the idea of constituency control: information, opinions, wants and needs flows from the constituency to the representative, and he is expected to respond” (MEZEY, 2008, p. 25).

Parte-se do princípio de que embora os governantes não sejam obrigados a seguirem as propostas anunciadas em campanha, os cidadãos podem sancioná-los. É justamente no momento em que os governantes buscam a reeleição que o eleitor conclui se seus atos e justificativas foram suficientes e atenderam às expectativas. Se a avaliação for positiva, ele renova seu voto no representante. Do contrário, outro representante será eleito em seu lugar. Em síntese, esta corrente sustenta que a prestação de contas induz a representação.

A visão padrão de como funciona o mecanismo de prestação de contas baseia-se no “voto retrospectivo”. Nesse enfoque, os cidadãos estabelecem algum parâmetro de desempenho para avaliar os governantes: “meu salário deve subir pelo menos quatro por cento durante o período”, “as ruas precisam ser seguras”, ou até mesmo “a seleção nacional precisa classificar-se para a Copa do Mundo”. Os cidadãos votam contra os representantes a menos que satisfaçam esses critérios. Por sua vez, o governo, esperando ser reeleito e antecipando a regra de decisão dos eleitores, fará o que for possível para satisfazer tais critérios (MANIN, PRZEWORSKI e STOKES, 2006, p. 121).

Torna-se necessário induzir os políticos eleitos porque eles podem dedicar-se a muitas outras coisas que se distanciam do interesse público29. Mas, isto não se dá de um

                                                                                                               

29 O que não significa que esta é a regra geral. “It is hard to imagine a representative with no intrinsic motivation to work for the policies he or she thinks good for the polity and hard to imagine any constituent

modo tão simples. Como ressaltam Manin, Przeworski e Stokes (2006), ao depositar a cédula na urna o cidadão não anexa uma lista do que considera as prioridades que o governo deve seguir. Assim, os governantes têm dificuldade de identificar quem, de fato, constitui seu eleitorado, a quem ele deve direcionar os seus esforços (ainda que legalmente ele represente todos os cidadãos), e quais atitudes deixariam estes eleitores satisfeitos. E, ainda que consiga vislumbrar uma parcela estratégica dos indivíduos que representa, ele deve distinguir o que eles desejam, as suas opiniões, do que seria considerado o melhor para eles, seus interesses (MEZEY, 2008).

Por outro lado, para que o modelo de prestação de contas se torne efetivo, os cidadãos devem ser suficientemente informados para definirem quais são seus interesses e ter habilidade para avaliar se o político tem atuado para o bem-estar da população. Contudo, “the most citizens know very little about the policy options that confront the legislator and how the choices will afect their lives, the welfare of his constituency, or the welfare of the nation as a whole” (MEZEY, 2008, p. 30).

Neste caso, se basear na execução da plataforma de campanha também não seria um parâmetro seguro para avaliar o desempenho do governante. As condições nas quais um representante governa podem ser distintas do que ele imaginava encontrar ao delinear suas propostas de campanha, tornando, por vezes, inviável ou contraproducente a sua execução.

Os três modelos – da autorização, seleção e prestação de contas – não são excludentes entre si, o que de fato ocorre é que, no processo eleitoral, os cidadãos acabam escolhendo seus representantes empregando um pouco de cada um desses modelos, ora avaliando propostas e ações pregressas dos candidatos, ora a partir de identificação de características pessoais, virtudes etc. O problema que afeta os três modelos eleitorais é que eles compreendem como a representação tem início e finaliza, mas não como ela, de fato, se processa durante o mandato. O período eleitoral coloca em jogo a composição do corpo representativo, isto é, se define quem são os atores que estarão autorizados a assumir as funções de representantes, mas não dá conta de como se deve proceder para que, de fato, se efetive uma relação de representação (URBINATI, 2005).

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          voting for a representative whose preferences the constituent thought were always induced” (MANSBRIDGE, 2008, pp. 6-7).

Para preencher o vácuo deixado pelos modelos eleitorais de representação política, cujo foco é o processo eleitoral, emergem modelos mais preocupados com o conteúdo da representação, que buscam dar conta dos modos como os representantes devem agir nos intervalos entre os processos eleitorais, ou seja, durante o período dos mandatos – são os chamados “modelos substantivos” de representação política.

1.3.2 Modelos substantivos de representação política

O consentimento pleno por parte dos cidadãos, que depositam sua confiança nos governantes que elegem, caracteriza a chamada representação fiduciária. O que quer dizer que, uma vez eleito, o representante não deve manter um vínculo diferenciado com as comunidades que votaram nele e nem consultar os cidadãos para a tomada de decisões. Ele passa a ter total independência para fazer o que considera melhor para a nação. Afinal, dizem os autores, não haveria representação se os eleitores controlassem os atos dos representantes. “They may communicate with their delegate... but he is to act – not they; he is to act for them-not they for themselves” (LORD BROUGHAM’S apud PITKIN, 1967, pp. 150-151).

Neste modelo, o voto é orientado, sobretudo, pelas características pessoais do representante. Assim, ao invés de avaliarem as propostas apresentadas pelo candidato, ao fazerem suas escolhas, os eleitores levam em conta seu caráter e personalidade.

Such an approach is given voice by those citizens who proudly proclaim that they vote ‘for the man, not the party’; it is given substance by those representatives who, though frequently ‘at odds’ with the views of their constituents, are nonetheless reelected by voters who claim a level of personal affinity and trust toward them (MEZEY, 2008, p. 42).

Os defensores do governo fiduciário enxergam o representante “as a free agent, a trustee, an expert who is best left alone to do his work. They thus tend to see political questions as difficult and complex, beyond the capacities of ordinary men” (PITKIN, 1967, p. 147). Segundo Pitkin, Burke acredita que o bom funcionamento do governo como um fiduciário depende de políticos sábios, virtuosos e experientes, que não agirão de acordo com suas vontades e sim em prol dos interesses da nação e do bem geral.

De modo que, a concepção de que o governante representa a nação e não estritamente aqueles que o elegeram faz com que mesmo as comunidades sem representantes eleitos sejam beneficiados pelo que Burke chama de representação virtual30: “uma comunhão de interesses e uma simpatia de sentimentos e desejos entre

aqueles que agem em nome de uma imagem qualquer do Povo e o Povo em cujo nome eles atuam, ainda que os fiduciários não sejam efetivamente escolhidos por eles” (BURKE apud PITKIN, 2006, p. 32).

A representação virtual é possível porque não são as pessoas, mas os interesses, voltados ao bem-estar geral, que são representados. Ou seja, o representante não se compromete com as vontades e opiniões dos eleitores31. Os interesses aqui não são

interpretados do ponto de vista pessoal. Eles são amplos, fixados objetivamente e claramente definidos. “It is only in terms of such broad, fixed interests that Burke can argue as he does, that the representative of Bristol, because he represents the trading interest, also virtually represents all other ‘out-ports and center of shipping and commerce’” (PITKIN, 1967, p. 174-175).

No modelo delegativo, o representante age de acordo com orientações dos eleitores, atuando como um delegado a serviço dos mesmos. Nesta perspectiva, o político não pode tomar decisões ao seu critério. Ele é escolhido para perseguir a concretização das vontades dos cidadãos e não as suas. “A mandate theorist will see the representative as a ‘mere’ agent, a servant, a delegate, a subordinate substitute for those who sent him. The representative, he will say, is ‘sent as a servant’, not ‘chosen with dictatorial powers’” (PITKIN, 1967, p. 146).

Ao contrário do modelo fiduciário, em que os interesses são considerados objetivos, a perspectiva delegativa se relaciona com uma concepção de que os interesses só podem ser definidos por aqueles que os possuem. O que demanda permanentes consultas aos eleitores e um representante que atue em resposta ao que lhe é solicitado. Este diálogo constante transcorreria com êxito, sobretudo, porque governantes e cidadãos são interpretados como pessoas relativamente semelhantes em termos de                                                                                                                

30 “For example, in the United States Senate at this writing, there are three Latino senators: Robert Menendez of New Jersey, Ken Salazar of Colorado, and Mel Martinez of Florida. Each, whether they are conscious of it or not, speaks not just for the interests of their states but for the interests of Latinos around the nation” (Mezey, 2008, p. 46).

31 “Os interesses são objetivos e completamente diferentes das opiniões. O representante deve a seus eleitores ‘devoção aos seus interesses antes que à sua opinião’” (PITKIN, 2006, p. 33).

capacidade, sabedoria e informação (PITKIN, 1967). Trata-se de mais uma característica que o distingue do modelo fiduciário, em que uma elite virtuosa, com discernimento para identificar o que é melhor para a população, governa em seu nome sem consultá-la.

Pitkin defende uma perspectiva mais moderada:

Representing here means acting in the interest of the represented, in a manner responsive to them. The representative must act independently; his action must involve discretion and judgment; he must be the one who acts. The represented must also be (conceived as) capable of independent action and judgment, not merely been taken care of. And, despite the resulting potential for conflict between representative and represented about what is to be done, that conflict must not normally take place. The representative must act in such a way that there is no conflict, or if it occurs an explanation is called for. He must not be found persistently at odds with the wishes of the represented without good reason in terms of their interested, without good explanation of why their wishes are not in accord with their interest. (1967, p. 209-210).

O que Pitkin aponta, portanto, são as limitações referentes às propostas dos modelos substantivos, uma vez que seria complicado restringir a atuação de um representante a um ou outro modelo, exclusivamente. Por um lado, é necessário que o representante tenha certa independência para avaliar as diferentes posições em jogo e para decidir, uma vez que ele possui acesso privilegiado a determinadas informações. Por outro lado, o representante precisa estar receptivo às diversas reivindicações, demandas e proposições existentes na sociedade e suas decisões devem levar essas ações em consideração.

Nesse sentido, é preciso reconhecer a importância de estabelecer critérios e elementos que caracterizem a relação de representação política durante o período do mandato, contudo tais critérios não podem ser meramente substantivos – no sentido de restringir/alargar o escopo de atuação dos representantes. Mas, deve-se reconhecer quais os processos e procedimentos devem ser garantidos a fim de, efetivamente, estabelecer uma relação de representação política.

Uma vez identificados os critérios que configuram a relação de representação política, é possível verificar de que modo os recursos e dispositivos da comunicação digital, por exemplo, podem contribuir para reforçar, implementar ou aprimorar tais critérios. Nesse sentido, a ideia de representação política precisa ser inserida como uma variável que deve ser considerada nos estudos sobre democracia digital.