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A acessibilidade como um problema social segundo uma perspectiva diacrónica

IV. Construção social do problema e acessibilidade como um problema social

2. A acessibilidade como um problema social segundo uma perspectiva diacrónica

As diversas intervenções por parte das organizações internacionais e das pessoas portadoras de deficiência e dos seus representantes, promovem a consciencialização e a percepção da população em geral sobre a urgência de investir na integração e reabilitação das pessoas com deficiência. Neste caso concreto, visa-se chamar a atenção sobre as lacunas na acessibilidade nos edifícios, na via pública e nos transportes, por forma a se adquira consciência colectiva sobre a gravidade do problema e sobre a importância de o minimizar. Contudo, a construção social de um problema depende, de igual modo, da conjuntura social, política e ideológica (Birkland, 2001: 122).

A deficiência não advém da ordem “natural”, nem do essencial, mas constitui um conceito produzido socialmente. Esta baseia-se em construções sociais que vêem a percepção e as respostas às diferenças como sendo contingentes. Para Burr, “a construção social sugere que as formas como costumamos entender o mundo, as categorias e conceitos que usamos, são histórica e culturalmente específicas” (Marks, 1999:78).

A construção social revela, portanto, que os nossos valores e modos de interpretar os fenómenos constituem uma costruto social. Como tal, não importa incidir sobre a pessoa portadora de deficiência em abstracto, mas sim na forma como os rótulos são produzidos e reproduzidos nas interacções sociais, nos contextos institucionais e culturais (Marks, 1999: 79).

Considerando a deficiência, como não sendo uma consequência das diferenças individuais, mas antes, como um resultado das percepções enraizadas nas práticas sociais, podemos entender que a construção social, sobre esta, desempenha um papel importante no entendimento dos pressupostos essenciais da sua problematização (Marks, 1999:79).

Importa, portanto, perceber a evolução dos conceitos de deficiência e incapacidade, enquanto categorizações que reflectem as mudanças de perspectiva e sugerem linhas de direcção para a prossecução de tais modificações (Atkinson por Amiralian et al, 2000:99).

Na operacionalização de conceitos de deficiência, enquanto signos mediadores de atitudes e valores, interessa perceber que possui uma essência mutável ao longo da história e das culturas. Como tal, surge a necessidade de procedermos a uma breve resenha histórica.

Começando com as primeiras sociedades agrárias, a partir da análise dos escritos e dos códigos de lei, podemos identificar indícios explícitos de que o desenvolvimento da magia e da diferenciação entre o bem e o mal conduziram ao entendimento destas pessoas como sendo “impuras”, ou seja, possuídas por maus específicos (Sousa, 2007:17).

Considerando os registos históricos mais recentes, verificamos que, tanto na Antiguidade Grega como na Romana, o investimento militar, o hedonismo e o culto da perfeição do corpo induziram a assimilação simbólica do “puro” e do “impuro”, levando assim, a extinção das pessoas, cujas características divergissem dos padrões de perfeição dominante, ou à remissão dos indivíduos com deficiências ou incapacidades para funções sociais desvalorizadas ou para o desempenho de papéis marginais (Sousa, 2007:17).

A emancipação do cristianismo trouxe uma nova dimensão da deficiência e incapacidade, ao considerá-las como castigos divinos. Reflexo disso, é a lógica do Antigo Testamento, onde a deficiência é interpretada como um risco para todo o corpo social, pois representa um símbolo de impureza. Assim, a deficiência e a incapacidade representam, para a religião, um sinónimo de delimitação entre o que é térreo e sujo e, contrariamente, o que é celeste e limpo (Stiker, 1999: x).

Esta crença é, aparentemente, desfeita com o Novo Testamento ao encarar a possibilidade da intervenção de Deus, haja em vista a remoção milagrosa do defeito. A diferença física é transformada num meio pela qual os cristãos podem melhor definir o seu compromisso religioso (Stiker, 1999: x). Paradoxalmente, esta doutrina fundamenta a estigmatização e a dependência destas pessoas face à caridade das pessoas, fazendo-se instituir a assistência organizada e a segregação espacial destas pessoas para locais próprios de acolhimento (mosteiros, hospícios, asilos, entre outros) (Sousa, 2007:17).

Assim, numa primeira fase, segundo o Modelo de Isolamento,frequentemente apoiado por instituições religiosas,a deficiência é considerada um castigo (Coleridge por Turmusani, 2003: 6). Segundo esta perspectiva, as pessoas com deficiência ou incapacidades são infelizes e diferentes, o que pressupõe que devem ser afastadas e escondidas da comunidade. Partindo desta premissa e considerando que, actualmente, as crenças religiosas prevalecem nas sociedades, especialmente em desenvolvimento, podemos perceber como a ideia de castigo divino consubstancia a forma como a deficiência é entendida (Turmusani, 2003: 6).

No entanto, a influência da religião, enquanto factor de formação e de atitudes, não se confina apenas aos países em desenvolvimento. Tal como referimos, na sociedade ocidental, aqueles valores cristãos influenciaram substancialmente a maneira como a deficiência foi percebida.

Stiker, ao analisar a história, refere que, em cada uma das épocas fundamentais do pensamento ocidental – a Era Clássica, a Idade Média, o Renascimento, o Iluminismo, a Era Vitoriana e a Moderna – a deficiência continua a ser entendida como objecto de dizimação ou desaparecimento (Stiker, 1999: xi).

O desenvolvimento da Ciência irá revolucionar a representação da deficiência e incapacidade para uma dimensão individual, ou seja, transcorre para a definição social e administrativa da deficiência e incapacidade como um problema individual. Esta representação vai ganhando maior enfoque com a proliferação cultural da maximização do lucro, própria da industrialização e do capitalismo, do culto pela perfeição humana e do culto pelo belo, oriundo dos padrões culturais das sociedades modernas.

Tradicionalmente, as intervenções em termos de reabilitação têm sido seguidas pelo modelo médico, cuja perspectiva define saúde como a ausência de doença, e por conseguinte, focaliza a avaliação e o tratamento nos sinais e nos sintomas do doente. Assim, a deficiência é compreendida como um defeito médico, implicando uma necessidade humana de ser cuidada ou curada. Para tal, surge a necessidade de serviços médicos para tratar ou eliminar a condição. Ao localizar a insuficiência, o problema passa a ser da responsabilidade exclusiva do indivíduo, ou seja, a responsabilidade social para com a pessoa com deficiência é minimizada, muito embora haja a necessidade do fornecimento de programas para ajudar aqueles indivíduos pela sociedade (Turmusani, 2003: 6).

Trata-se de um perspectiva estritamente individual, cuja acção requerida está confinada ao campo médico, sem tomar em consideração os factores externos ou ambientais (Sampaio et al, 2005:130). Este modelo social convenciona uma representação social depreciativa da pessoa com deficiência.

Actualmente, os modelos de intervenção na reabilitação reflectem uma mudança de paradigma, definindo saúde em termos mais latos, nela integrando factores sociais, psicológicos e ambientais, então contabilizados. Assim, surge o Modelo Social da Deficiência, na década de 60, como contraposição às abordagens biométricas, onde a doença é entendida como disfunção fisiológica ou psicológica, restringida aos seus aspectos anatómicos, bioquímicos e fisiológicos, em detrimento de suas expressões funcionais, sociais e culturais.

No âmbito da perspectiva do modelo social, a deficiência é vista como um produto da capacidade de uma pessoa desempenhar uma actividade económica. Assim, a deficiência é concebida como uma categoria administrativa para controlar a oferta de trabalho (Turmusani, 2003: 8).

Segundo Oliver,“todos os deficientes experimentam a deficiência como uma restrição social, não importando se estas restrições ocorrem em consequência de ambientes inacessíveis, de noções questionáveis de inteligência e competência social, se da inabilidade da população em geral de utilizar a linguagem de sinais, se pela falta de material em Braille, ou se pelas atitudes públicas hostis das pessoas que não têm lesões visíveis” (Oliver por Sousa, 2007:34).

Assim sendo, o Modelo Social da Deficiência assenta na ideia de que a deficiência não deve ser entendida como um problema individual, mas como uma questão eminentemente social, transferindo a responsabilidade pelas desvantagens dos deficientes, das limitações corporais do indivíduo, para a incapacidade da sociedade de prever e ajustar-se à diversidade (Oliver por Medeiros e Diniz, 2005: 108). Nesta perspectiva, ocorre, portanto, uma alteração na definição de deficiência e no entendimento do contributo da responsabilidade social nesta concepção. Esta revela, ainda, a responsabilidade social na criação de uma sociedade para todos e o papel da sociedade na discussão dos modelos estigmatizantes e pouco promotores da inclusão social.

Alegando que todas as pessoas são dependentes em algum momento da vida, seja na infância ou na velhice, ou em momentos de doença, a teoria das feministas introduziu o princípio da igualdade pela interdependência como sendo um princípio mais adequado para as questões de justiça das pessoas com deficiência (Diniz, 2003: 5). Desta forma, a interdependência representa um elemento constituinte da sociedade, pelo que a política pública não deverá ignorar.

Esta transformação conceptual desperta para o reconhecimento da necessidade dos diferentes serviços e estruturas para fazer face às diferenças da população a partir de diligencias dirigidas para a integração da diversidade. Verificamos uma descentralização do enfoque na pessoa com deficiência face à crescente especificação dos preceitos sociais necessários para a inclusão destas pessoas.

Os avanços no conhecimento científico e tecnológico introduzem novos elementos, que consubstanciam o processo de evolução das representações sociais sobre a problemática da reabilitação e da integração da pessoa com mobilidade reduzida. Deste postulado, surge um aumento da consciência social e da responsabilidade política nos assuntos relativos às políticas de acessibilidades.

Abberley, partindo do Modelo Social, argumenta a necessidade de alargar o conceito de deficiência para todos os grupos sociais, como os idosos, na medida em que a acumulação de limitações na funcionalidade corporal se converte em grandes deficiências dentro deste grupo etário. Tal como este grupo etário, outros casos paradigmáticos demonstram que a deficiência não é uma experiência de uma minoria, mas um facto ordinário e previsível no curso de vida das pessoas (Abberley por Medeiros e Diniz, 2005: 110).

De acordo com este pressuposto, as mulheres grávidas e as crianças constituem classes etárias que podem sofrer as mesmas restrições que uma pessoa portadora de deficiência física, por exemplo na utilização dos transportes público, facto que deve ser considerado na formulação das políticas públicas (Medeiros e Diniz, 2005: 112).

Deste modo, verificamos uma adaptação das políticas públicas aos modelos ideológicos defendidos pelos políticos e pela sociedade.