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PARTE I O IMAGINÁRIO DA DROGA E A EXPERIÊNCIA

7.1 CULTURA DA COCAÍNA

7.1.2 Acesso e Disponibilidade

Considerando a atual situação de conflito armado em torno dos pontos de venda de drogas entre gangues rivais e a forte repressão policial, poderíamos afirmar que há um predomínio de homens fortemente armados neste negócio. A construção da masculinidade por estes jovens, envolvidos no comércio, foi denominada pela antropóloga Alba Zaluar (2004, p.387), como um “ethos masculino do guerreiro”. Em geral, nestes locais, há uma pequena presença de mulheres, as quais podem se sentir ameaçadas por roubos, assédio, violência, e

que podem mesmo vir a ser subjugadas por este tipo de masculino. Enfim,

este fator, quanto pela questão financeira e, devido a isto, consomem mais freqüentemente drogas “lícitas”, tais como anfetaminas e ansiolíticos, mas sem

prescrição médica. Os homens são mais respeitados nestes pontos de vendas,

enquanto as mulheres são mais dependentes deles para adquirir a droga ilícita. O acesso feminino ao mundo do tráfico é difícil, como já se ressaltou acima, devido ao ambiente machista e marginal, e, quando as mulheres estão presentes, este fato está geralmente relacionado com a participação de sua família no tráfico. Nos últimos anos, entretanto, vem aumentando a participação das mulheres no tráfico de drogas, sendo esta participação decorrente da herança dos pontos de venda, que são deixados por seus maridos e/ou irmãos, quando são presos ou assassinados, o que as torna chefes do negócio. Muitas vezes, este precisa ser mantido à “bala”, havendo nelas, portanto, uma certa necessidade de “masculinizar-se” através do emprego da violência, que lhes possibilita a afirmação necessária para o gerenciamento do negócio.

É relativamente fácil obter cocaína em São Paulo, embora haja momentos em que isto seja mais difícil, dependendo da repressão policial. As drogas lícitas, como o tabaco, o álcool e as drogas farmacêuticas – anfetaminas, ansiolíticos, entre outras –, são consideradas mais fáceis para a aquisição. Já as drogas ilícitas, como maconha, ácido e cocaína, são consideradas mais difíceis. Muitas vezes, o comércio da maconha tem sido apontado como mais difícil do que o da cocaína e do crack, sobretudo devido à entressafra. Em geral, o “ácido” (LSD-25) era considerado a substância mais difícil de se obter na década de 90, assim como outros alucinógenos. Hoje, o tempo gasto pelos entrevistados – usuários regulares – para se obter cocaína na cidade de São Paulo varia entre quinze minutos e uma hora, assim, pode-se conseguir cocaína rapidamente, principalmente quando se está programado para tal. Em geral, a depender da quantidade da substância adquirida, o consumo poderá durar uma noite inteira ou apenas uma hora.

Há pontos bem distribuídos na Cidade de São Paulo com capacidade de comercialização rápida de pequenas quantidades, o que geralmente afeta a qualidade do produto. As únicas coisas que afetam a disponibilidade são a falta de dinheiro e a dificuldade de contato com o “passador”. Pode-se comprar

cocaína em qualquer lugar, como bares, esquinas, universidades e nos pontos de venda em qualquer bairro, ou através do telefone com acordo de entrega em

domicílio (delivery44).

A substância pode ser comprada em volumes variáveis, geralmente em “papelotes”, e o preço varia conforme a região da cidade, indo de U$S 5 a U$S 10. Os termos empregados para denominar a cocaína embalada em pacotes para a venda são: “trouxinha”, “papelote”, “gramas”, “bala” e/ou “papel”. O padrão mínimo e mais barato para o consumidor são os “papelotes”, que possuem menos de um grama e geralmente são muito misturados e podem ser comprados de desconhecidos em “esquinas”. Bem mais econômica é a compra em maiores quantidades, de 5 até 20 gramas, o que melhora a qualidade do produto solicitado, assegura o peso justo, além de estabelecer contatos mais firmes entre o usuário e o fornecedor, que passa a ser reconhecido como o sujeito que garante a boa substância. Tem-se a impressão de que o preço da cocaína parece oscilar conforme o grama do ouro, segundo afirmou um profissional executivo usuário de droga, entrevistado para esta pesquisa.

A quantidade de drogas consumida, por sua vez, depende do modo de ingestão do produto, sendo que o inalado sempre acaba gerando um consumo de quantidades maiores do que o injetável e/ou fumável na forma de pedra de crack. Por intermédio destes modos de uso, pode-se tanto economizar o produto como maximizar seus efeitos. Assim ilustra um usuário, o padrão de uso dos consumidores de diferentes vias de administração: “os usuários de crack consomem de 7 a 8 pedras entre 3 ou 4 pessoas, enquanto os usuários de cocaína em pó podem consumir de 15 a 20 gramas com o mesmo número de participantes numa mesma noite”. Isto significa que o uso inalado de cocaína exige uma quantidade maior do produto, o que pode ser muito dispendioso para um consumidor regular desta droga.

Os entrevistados afirmam que muitos deles “aspiram cocaína por medo das injeções”, contudo manter a prática da inalação não é barata. O uso regular de

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Delivery é uma forma de atendimento em domicílio e rápido, para o comércio, muito comum na Cidade de São Paulo, desde os anos 20.

cocaína, por via inalada, é parte integrante de vários estilos de vida, contudo sua permanência e estabilidade como padrão de uso têm no fator socioeconômico um aspecto preponderante para transformar esta prática em hábito, devido à

facilidade em obter a droga. O preço da droga varia conforme o peso, forma de

venda do produto e a proximidade com o fornecedor. Esta visão hierárquica dos contatos no comércio de drogas mostra que tais relações fundam uma ética de

confiança, de não “cagüetagem”45, um compromisso ético entre os fornecedores e

consumidores, fundado numa “ética da bandidagem”.

Nas favelas46 e nos pontos de venda fixos, a cocaína é considerada de

melhor qualidade do que aquela encontrada pelas esquinas, considerada mais “malhada”, impura, muito misturada. Em geral, os produtos têm baixo grau de pureza. Na tentativa de aumentar o volume de cocaína, os vendedores freqüentemente a combinam com outras substâncias. Qualquer pó branco é passível de ser misturado a ela. Os produtos que os usuários consideram ser costumeiramente mesclados e encontrados na cocaína são: anfetaminas, bicarbonato, fitalomicina, xylocaína, pó de giz, mármore, farinha de trigo e soro fisiológico. Em geral, aproximadamente metade da quantidade oferecida da droga está misturada, e isto ocorre por conta da “ganância” dos vendedores em ganhar dinheiro mais fácil. O padrão de qualidade deste tipo é considerado como “péssimo” pelos consumidores. Quando o usuário cheira um pó misturado geralmente sente taquicardia e o nariz pode vir a sangrar, entre outras reações desagradáveis. Alguns afirmam, inclusive, que a cocaína do interior do Estado é melhor do que a da Capital, porque nos ambientes menores, é possível ter um conhecimento mais próximo dos “maleiros” do tráfico.

Além das conseqüências físicas, o que os consumidores mais reclamam são dos prejuízos financeiros, da violência policial, das “prisões”, “inquéritos”, “interrogatórios”, entre outros. Alguns afirmaram que não têm nenhuma preocupação com a qualidade, pois conhecem a fonte e o fornecedor há anos e a

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Cagüetagem é uma gíria brasileira falada em ambientes marginais que se refere às atitudes do “dedo duro”, do “espião de polícia”, enfim do delator.

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Em geral, é muito recorrente a visão de que favela e pobreza estão associadas ao banditismo e ao tráfico de drogas. Veja esta discussão em: PERLMAN, J. Mito da marginalidade social, São Paulo: Perspectiva, 1977; ZALUAR, A. A máquina e a revolta. São Paulo: Brasiliense, 1985.

droga é entregue em casa, por serviço em domicílio. Os usuários de cocaína se consideram com mais sorte para obtenção da droga do que os de maconha, sobretudo devido à escassez deste último produto em determinadas épocas do ano, o que significa que a disponibilidade de cocaína se mantém estável durante todo o período.

Para quem tem dinheiro para comprar a droga, o traficante é a principal fonte de acesso. Para aqueles que não têm condições, fazer um “avião” (intermediar a transação econômica) e/ou formar uma rede de usuários para fazer uma “vaquinha” para a compra, acaba por ser ajudado e “patrocinado” para o consumo da cocaína. A droga dos consumidores normalmente é comprada com dinheiro do salário, embora tenha presenciado várias situações, em que esta foi conseguida na forma de presentes, organização de “vaquinhas”, assim como através da troca de sexo e/ou local de uso. Consumidores com menor poder aquisitivo referem-se à necessidade de mais um tipo de “contravenção” que tem que existir para ocorrer o consumo, tal como a participação no tráfico, roubos, prostituição, além de trocas de objetos pessoais.

Retomando a questão, as mudanças no mercado de drogas ilícitas apontam para o futuro crescimento do consumo de crack e a criação de drogas como o ecstasy, com o decréscimo na forma de uso de drogas injetáveis devido ao risco da infecção pelo HIV/AIDS, comportamento surgido principalmente entre as novas gerações de consumidores de diferentes classes sociais. O surgimento do Hiv no circuito da cocaína no final dos anos 80 em São Paulo foi fatal entre os usuários de drogas (cocaína) injetável, pois mais da metade se infectou com HIV e uma outra pelo vírus das hepatites. Isto representou um declínio nesta via de administração do consumo de cocaína e, concomitantemente, verificou-se o surgimento do crack entre grupos de adolescentes, de 12 a 18 anos, na região central e na periferia da cidade. A “Crackolândia” é um dos poucos territórios com maior visibilidade de consumidores de produtos à base de coca em São Paulo, por algumas razões: 1 – o consumo está difundido pelo lumpenzinato local, populações de rua, e, principalmente, “menores” de idade; 2 – pela visibilidade das drogas dos pobres e marginais, mas não dos ricos e dos ‘white colar”; 3 – uma região da cidade em franca degradação socioeconômica, ao lado de uma

série de delegacias de polícia, mas uma área bastante cobiçada por grande grupos econômicos. Os tipos de efeitos subjetivos experimentados e descritos pelos usuários que fumam crack são reconhecidos como similares aos estados alterados e às intensidades corporais vividas pelos usuários de cocaína injetável, embora estas práticas façam parte de subculturas distintas e de diferentes experiências geracionais. O consumo de crack é apontado pelos consumidores como hard (pesado), mas eles mesmos respondem que também está cada vez

mais hard viver. Um dos informantes-chave afirma que, mais recentemente, vêm

aparecendo nos pontos de venda porções de 1,5 g de cocaína pura, comercializada na periferia da cidade por traficantes relacionados ao PCC em São Paulo, uma cocaína de boa qualidade.

Em geral, os consumidores de cocaína especulam que o consumo desta droga diminuirá pelo fato de ela ser muito cara e pela sua má qualidade. Por outro lado, muitos acreditam que o consumo de cocaína cheirada irá crescer ainda mais do que o de crack, pois esperam que esse produto se torne mais barato. Parece que o desenvolvimento futuro deste mercado de drogas ilícitas aponta para a invenção de novas substâncias psicoativas sintéticas. Ao se refletir sobre estas mudanças no mercado da Cidade de São Paulo, não é possível deixar de apontar que determinados comportamentos relacionados às drogas e a alguns estilos de vida configuram-se como modas, “ondas de consumo” e tornam-se importantes para possibilitar a compreensão de algumas experiências geracionais relacionadas ao consumo de substâncias ilícitas.