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Auto-regulação do Consumo: Sanções, Regras e Rituais Sociais

PARTE I O IMAGINÁRIO DA DROGA E A EXPERIÊNCIA

5.2 USO CONTROLADO DE DROGAS

5.2.1 Auto-regulação do Consumo: Sanções, Regras e Rituais Sociais

As pesquisas de Zinberg (1984) e Grund et ali (1993) apontam que os rituais de consumo de drogas e as regras presentes nos grupos de usuário ajudam a controlar e a regular esta prática, maximizando o efeito da droga desejada, controlando as dosagens do uso de drogas, balanceando os efeitos positivos e negativos deste uso e prevenindo problemas. Zinberg (1984) mostra que uma parcela significativa destes usuários, incluindo os que utilizam a heroína, consegue manter o equilíbrio entre o consumo e os cuidados mínimos para preservar a saúde e a autonomia perante a droga. Esta informação surpreende a muitos, visto que os opiáceos, em especial a heroína, são tidos como responsáveis pelos casos mais graves de dependência física e psíquica. Há poucas pesquisas que apresentem os graus de controle dos usuários ocasionais, principalmente os de cocaína, e a permanência de um padrão de uso num longo período de tempo.

Na pesquisa de Zinberg (1984), havia usuários com o perfil “controlado” e foram comparados com sujeitos “compulsivos”, tendo em vista 39 variáveis, como, por exemplo: demográficas, pessoais, históricos familiares, história do consumo de drogas, uso presente, atividades criminais, entre outras. Para o recrutamento desses sujeitos, cinco tópicos foram considerados, dos quais três são aqui destacados: a) padrões de uso; b) dependências físicas, associadas ao consumo consecutivo; c) nível de uso de outras drogas, para a categoria de usuários “controlados” sendo requerida a observação do consumo controlado de todas as drogas, exceto o tabaco (ZINBERG, 1984, p.54).

O aprendizado do uso de drogas lícitas ocorre de forma intergeracional pelos processos de socialização gerais da cultura, enquanto o das ilícitas se dá de forma intrageracional e através de subculturas.

De acordo com Zinberg, o termo “abuso” deve ser determinado caso a caso, através da análise da quantidade de uso (graus, freqüência, dosagens) e da qualidade (como é usada, condição de uso, em quais contextos sociais, padrões de uso: quanto, quando, onde e com quem a droga é usada). Em sua teoria sobre o uso de drogas, qualidade de uso é o principal critério para avaliação, pois envolve outros fatores mais importantes do que os aspectos farmacológicos.

Na literatura sobre o uso de drogas, o termo “ocasional” é muito empregado, indicando uma menor freqüência do que a diária e a ausência de dependência, embora nada se comente sobre a consistência deste uso ao longo do tempo ou sobre a freqüência ou a qualidade de outras drogas usadas concomitantemente. Nestas pesquisas, os usuários ocasionais tendem a ser subrepresentados e uma proporção considerável de usuários dependentes é relativamente maior que a encontrada no universo em geral estudado, já que o recrutamento de sujeitos normalmente se dá num contexto de clínica das toxicomanias. Assim, há necessidade de encontrar outras fontes para recrutamento de indivíduos para as pesquisas fora dos serviços médicos.

A freqüência de uso, segundo Zinberg, não é um indicador seguro de confiança para as dificuldades relacionadas às drogas (Zinberg,1984, p.253). Além dessas considerações, o psiquiatra aponta alguns fatores que inibem o estudo de usuários ocasionais, como a crença de que a heroína é extremamente aditiva; o fato de os usuários não compulsivos serem mais difíceis de serem localizados e pesquisados; as dificuldades éticas que têm impedido alguns estudos sobre usuários não dependentes, já que alguns pesquisadores têm medo de serem apontados como os que fazem apologia às experimentações de drogas; e por último, a confusão a respeito da qualidade dos produtos tem sido um obstáculo para a pesquisa, complicando a comparação e a interpretação dos achados de diferentes estudos.

O método de acompanhamento dos entrevistados permite identificar inconsistências e conhecer a estabilidade e os padrões de uso após dois anos da primeira entrevista. No caso da pesquisa de Zinberg, buscou-se recontactar os entrevistados por telefone, por anúncios colocados em jornais locais, sendo que

nenhum usuário se recusou a participar deste segundo encontro para o estudo. Ainda segundo essa investigação, os usuários controlados tinham, em média, mais de sete anos de consumo e já haviam tido uma ocorrência de uso compulsivo.

As distinções entre os controlados e compulsivos foram significativas em termos de qualidade e da conseqüência do uso de drogas, revelando severas diferenças entre tais consumidores: 23% dos controlados tinham uso diário e, em 87% dos compulsivos, mais de uma vez por dia. Os controlados são mais moderados, sofrem menos conseqüências e procuram menos serviços de saúde. Geralmente, os usuários controlados tendem a conhecer outras pessoas que também controlam sua prática, enquanto os compulsivos tendem ao isolamento e ao uso com diferentes pessoas, indiscriminadamente.

O uso compulsivo representou, algumas vezes, um tipo de

“automedicação” contra a depressão, pânicos internos e isolamento. Um outro aspecto levantado por essa pesquisa mostra uma correlação entre o estilo de uso e os modos de interação dos usuários, sendo que “[...] os usuários controlados tendem a estar mais associados e possuir mais amigos” (ZINBERG, 1984, p.77).

Foram observadas várias regras de uso distinguindo compulsivos e controlados. Há uma variedade de regras para minimizar riscos, contudo, cada usuário ou grupo desenvolve as sanções e rituais ad hoc, sendo que estas regras tendem a ser particularizadas. A investigação permitiu a Zinberg confirmar sua tese de que o contexto social possui a maior capacidade em determinar o grau de controle sobre o uso. Segundo sua pesquisa, a personalidade e o contexto social são as variáveis que deverão ser consideradas em combinação para diferenciar entre uso e abuso, e não apenas a variável da droga (ZINBERG;1984, p.81).

O psicólogo holandês Jean Paul Grund em sua tese de doutorado Uso de Drogas como ritual social: funcionalidade, simbolismo e determinantes da auto- regulação (1993), procura trabalhar com o modelo teórico proposto por Norman Zinberg, ampliando os fatores que possibilitam ou impedem o desenvolvimento de controles informais dos usuários. Ele analisa os rituais e regras presentes na

subcultura de usuários regulares de heroína e cocaína, mas atenta também para os fatores “disponibilidade da droga” e “estrutura de vida”. O estudo etnográfico desse trabalho se volta para o uso ritualizado de drogas em Roterdã, observando 95 episódios de uso, procurando distinguir diferentes formas de consumo de heroína e cocaína com distintos modos de administração, auto-regulação e o seu significado para o compartilhamento de drogas, além das possíveis conseqüências destas práticas para a saúde pública. Seus dados mostram o papel desempenhado pelos rituais tanto em nível individual como grupal, servindo tanto a objetivos simbólicos quanto instrumentais em torno do consumo.

Grund, a partir de uma noção “profana” de ritual, advinda da literatura sociológica, desenvolve ainda mais a idéia de Zinberg acerca dos controles informais dos consumidores, além de apontar a influência dos fatores externos no comportamento e na eficácia destes rituais de consumo como formas de redução de danos e riscos à saúde. Ele vem reforçar a tese elaborada por Zinberg de que o controle de drogas está estabelecido por controles subculturais – rituais e regras que modelam a forma como a droga deve ser utilizada. Grund concorda que são as regras e os rituais os determinantes nos processos de auto-regulação do consumo, mas afirma que a teoria de Zinberg não explica a variação no interior do grupo na sua habilidade de utilizar os controles, assim como não aponta a multiplicidade de fatores potenciais que possam ter impacto na eficácia destas medidas. Assim, procura ampliar o modelo teórico formulado, por considerá-lo muito “estático”, e inclui outros fatores atuando no contexto social, como a “disponibilidade de drogas” e a “estrutura de vida” dos consumidores. Por “estrutura de vida”, ele entende “padrões regulares de atividades laborais, recreativas, domésticas e criminais entre outros, que moldam e constrangem” o cotidiano dos usuários. Por “disponibilidade”, Grund compreende o acesso dos sujeitos às substâncias psicoativas desejadas, que, por sua vez, estão presentes num circuito econômico não regulado formalmente, mas informalmente – “mercado de drogas”. Assim, o acesso ao suprimento de drogas pode ser compreendido como uma pré-condição para o desenvolvimento e a efetividade dos rituais e regras que regulam os padrões e os níveis de uso (GRUND, 1993, p.243-244). O autor aponta a disponibilidade de droga e a estrutura de vida como

os dois aspectos fundamentais para a auto-regulação do consumo e a manutenção do padrão de uso controlado.

Tanto Zinberg quanto Jean Paul Grund concordam que as questões sobre disponibilidade são cruciais para o uso controlado e para uma política de drogas. Todavia, a diminuição desta disponibilidade também é vista como crucial pelos formuladores de políticas para a redução do uso, o que vem impedindo o desenvolvimento do uso moderado e ampliando os custos individuais e sociais deste fenômeno. Grund argumenta que a disponibilidade é a pré-condição para o desenvolvimento e a eficácia dos rituais e regras, os quais regulam padrões e níveis de consumo. A política proibicionista leva os usuários a participarem de redes criminosas e de prostituição para assegurar o suprimento destas substâncias. Ele afirma que, num contexto proibicionista, os rituais e regras em torno do consumo estão mais relacionados ao sigilo, à dissimulação e à facilitação do uso e das atividades correlatas (tráfico) do que ao autocuidado e à preservação da saúde.

Sua pesquisa não se restringe apenas aos opiáceos, mas inclui também a combinação de heroína com cocaína (speed ball). Uma questão que se coloca é a de que o modelo de Grund foi desenvolvido num contexto holandês, com consumidores predominantemente de opiáceos. Seria este modelo válido para usuários ocasionais e exclusivos de cocaína? Será que suas hipóteses continuariam válidas para usuários regulares de cocaína aspirada? De acordo com as pesquisas de Grund, pode-se afirmar que sim, pois ele descreve a incorporação da cocaína nos rituais de heroína e a busca dos controles pelos usuários. Na sua opinião, os principais sinais de adaptação à cocaína são encontrados entre usuários com acesso relativamente fácil e com vida altamente estruturada. Ele parte do pressuposto de que para manter atividades esquematizadas e cumprir obrigações sociais, se requer cuidadosa administração do consumo de drogas e de atividades correlatas (GRUND, 1993, p.244).

O modelo proposto por Grund (1993, p.247) explora a natureza e a interação entre a “disponibilidade da droga, regras e rituais e a estrutura de vida dos consumidores” como uma tentativa para compreender a dinâmica da auto-

regulação do uso e os fatores externos que influenciam nesta prática. Em relação a estes fatores, o preço, a pureza e a acessibilidade são influenciados por fatores de mercado e por medidas governamentais. Os rituais e as regras são fatores de aprendizado dos processos de socialização dentro de uma subcultura. Já a estrutura de vida é o resultado de fatores socioeconômicos, estilos de vida, estrutura de personalidade e dos fatores culturais. Segundo ele, este modelo retroalimentado de auto-regulação fornece elementos para se compreender as interações entre comportamentos e fatores externos que determinam o seu contexto.

A pesquisa de Grund constata, ainda, diferenças na magnitude e nas conseqüências do consumo de cocaína em diferentes etnias (antilhanos, surinameses e holandeses), mostrando que foram encontrados maiores problemas de uso entre o grupo de usuários holandeses do que entre os surinameses e antilhanos, mesmo sendo o consumo maior entre estas pessoas. Os resultados dessa análise secundária sugerem que os usuários surinameses, que usam mais freqüentemente a cocaína, experimentam menos problemas. Isto pode ser entendido pelo envolvimento deste grupo no tráfico e pela disponibilidade de suprimento. A idéia é a de que a participação maior no comércio possibilita aos usuários exercerem melhor controle e eficiência em termos de utilidade, estrutura de vida, ritual e regras. Enfim, a disponibilidade da droga foi apontada como importante fator no desenvolvimento dos controles informais como diferença fundamental entre consumidores regulares e ocasionais. Assim, Grund explica sua lógica:

Fixation on the drug will lead to strong limitation of behavioral expressions when the drug is craved and obtain, and to impulsive indulgence when a dose becomes available. As a result, rituals and rules around the drug becomes less directed at self-regulation and safety in the sense of health, but more at safeguarding, covering and facilitating drug use and the related activities (e.g. drug transactions) itself. In contrast, the absence of uncertainty as to the whereabouts of the next dose liberates the user from the recurrent obsessive worries with (obtaining) the drugs and the necessity to chase them. Sufficient availability thus creates as situation in which rituals and rules can develop which restrain drug use and induce stable use patterns. As the results indicate, this does not necessarily mean lower levels of drug use. When the drugs are sufficiently available, the studied users can seemingly sustain high

consumption levels, without developing typical drug related problems. (GRUND, 1993, p.243)33.

De acordo com a tese desse autor, a disponibilidade de droga é uma précondição para o desenvolvimento e para a eficácia de rituais e regras que regulam padrões e níveis de uso estável. Chama também a atenção para a importância da estrutura de vida do usuário. Ele mostra que usuários de heroína têm desenvolvido regras e rituais para controlar o uso no curso de 20 anos de experiência coletiva. O aprendizado social dos usuários dos Países Baixos é facilitado por sofrerem uma menor repressão e por terem fácil acesso a produtos de substituição, como a metadona.

A entrada da cocaína nos rituais de heroína não estancou a busca pelo controle, mas os problemas de disponibilidade desta droga dificultam consideravelmente o processo de adaptação. Assim, os usuários com relativa facilidade de acesso e com vida altamente estruturada são os primeiros a darem sinais de adaptação às flutuações do mercado das drogas.

Jean Paul Grund acaba por sugerir, também, um modelo de interpretação acerca do uso controlado, o qual indica aspectos que deveriam ser considerados em conjunto, formando um circuito de “retro-alimentação”, que determina os processos de auto-regulação. Assim escreve:

Prohibition affects the formation of rituals and rules as it obstructs and interferes with natural social learning processes by which most aspects of social (appropriate) behavior are conveyed (figure 17.7) The social controls that regulate substance use can be rooted in mainstream culture, as is for example the case with alcohol. The rituals and rules that sanction controlled alcohol use are mainly determined by general family centered (inter-generational) socialization processes, which offer socially acceptable models of alcohol use and reinforce moderate use. In the case of illicit drugs the efficiency of these primary socialization processes in severely damaged. As a result, rituals and rules surrounding illegal drug use largely depend on subcultural or peer group socialization,

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Nossa tradução: A fixação sobre a droga conduzirá a uma forte limitação de expressões comportamentais quando ela for desejada e difícil de se obter, e a um uso exagerado e impulsivo quando uma dose se torna disponível. Como resultado, os rituais e as regras estão mais voltados ao sigilo, à dissimulação e à facilitação do uso e das atividades correlatas do tráfico. Em contraste, a ausência de incerteza quanto à proveniência da próxima dose libera o usuário de preocupações obsessivas recorrentes com sua obtenção e a necessidade de batalhar por ela. A disponibilidade suficiente cria assim uma situação na qual podem se desenvolver rituais e regras que restringem o uso de drogas e induzem padrões de uso estável. Como indicam os resultados, isto não revela necessariamente a adoção de níveis mais baixos de uso da droga.

characterized by a larger emphasis and dependence on idiosyncratic and rigid rituals and only limited applicable rules. These rules and rituals will primarily reinforce those behaviors which constitute the raison d’être of the subculture. (GRUND, 1993, p. 252)34.

Por último, confirma a hipótese de Zinberg de que o uso de drogas é determinado por variáveis sociais e sugere que seu modelo de retro-alimentação da auto-regulação do uso fornece uma estrutura interessante para o estudo das interações entre comportamentos e fatores que determinam seu contexto social. Assim, escreve esse pesquisador sobre o modelo da autoregulação e sua funcionalidafe :

Drug Availability, Rituals and Rules, and Life Structure are a trinity – interactive factors in an internally coherent circular process, in which these factors are themselves modulated (modified, corrected, strengthened, etc.) by their outcomes. It is thus a ‘feedback circuit’ that determines the strength of self-regulation processes controlling drug use. Rituals and rules determine and constrain the patterns of drug use, preventing an erosion of life structure. A high degree of life structure enables the user to maintain a stable drug availability, which is essential for the formation and maintenance of efficient rules and rituals. Self- regulation of drug consumption and its (unintended) effects is thus a matter of a (precarious) balance of a circularly reinforcement chain. Although this feedback model is circular, it is not a closed and independent circuit. The three cornerstones of the feedback model are each the result of distinctive variables and processes. Drug availability is determined by price, purity and accessibility, which are mediated by market factors and governmental regulations. Rituals and rules are the products of culturally defined social learning processes. The shape and degree of life structure are the product of the regular activities relationships and ambitions which may be drug related or not. General socio-economic factors and actual living conditions, personality structure and the prevalence of (non drug related) psycho-social problems, and cultural factors may further determine life structure. Clearly, external stimuli can impact on the feedback system, in particular on this ability to

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Nossa tradução: A proibição afeta a formação de rituais e regras à medida que ela obstrui e interfere com os processos de aprendizado social natural através do qual é normalmente transmitida a maioria dos aspectos do comportamento sociais (apropriado). Os controles sociais que regulam o uso de substâncias podem estar enraizados na cultura hegemônica como acontece, por exemplo, com o álcool. Os rituais e regras que sancionam o uso de álcool são determinados pelos processos de socialização centrado na família (intergeracionais) que oferecem modelos aceitáveis de consumo e reforçam o uso moderado. No caso das ilícitas, a eficiência destes processos de socialização primários é gravemente prejudicada. Como resultado, rituais e regras para o uso de drogas ilegais dependem do grupo de socialização subcultura ou de pares, caracterizado por uma ênfase e dependência maiores em rituais idiossincráticos, rígidos, e regras de alcance limitado. Estas regras e rituais irão reforçar primariamente aqueles comportamentos que constituem a “razão de ser” da subcultura.

support controlled and adjust uncontrolled use. (GRUND, 1993, p.248- 250)35.