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PARTE I O IMAGINÁRIO DA DROGA E A EXPERIÊNCIA

6.4 ABORDAGEM QUALITATIVA

6.4.3 Seleção e Caracterização dos Sujeitos

Um dos maiores problemas em se pesquisar pessoas e populações marginais que geralmente ocultam sua prática é como localizá-los. Louis Wirth, no livro The Guetto (1975), escreve sobre a formação de áreas e locais na cidade onde grupos tradicionalmente discriminados pela origem étnica, orientação sexual, uso de drogas etc., com traços e modos de vida identitária em comum, podem viver de acordo com suas expectativas e modos de vida, defendendo-se das possíveis discriminações, repressões e violências, constituindo, assim, áreas e territórios com uma certa tolerância e homogeneidade (WIRTH, 1975). Nesta

etnografia foram localizados alguns espaços, territórios, circuitos e trajetos42, onde

o consumo de cocaína contribui decisivamente para formar uma sociabilidade específica. O uso desta substância, entretanto, é uma prática disseminada entre diferentes grupos sociais com diferentes estilos de vida, motivo pelo qual se adverte que o seu consumo não se restringe aos “circuitos do pó” mapeados e às populações descritas por este etnógrafo.

A principal estratégia para a localização de usuários de droga foi solicitar a amigos e conhecidos que apresentassem ao pesquisador consumidores próximos a eles, além de perambular por áreas e locais de consumo de cocaína em diferentes regiões da cidade, visitar organizações não-governamentais que lidam

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O antropólogo Magnani, no livro Mystica urbe, emprega a categoria de "circuitos", para se referir a um uso do espaço que não se atém à contigüidade espacial, e "trajeto", para se referir ao movimento realizado por um usuário ou um grupo homogêneo deles ao transformar as possibilidades oferecidas pelo circuito em uso real. (MAGNANI, J.G.C. Mystica Urbe: um estudo antropológico sobre o circuito neo-esotérico na metrópole.São Paulo: Studio Nobel. 1999).

com drogas e AIDS, comunidades terapêuticas, Unidade da Febem (Imigrantes), etc.

Os entrevistados forneceram uma visão geral sobre o próprio consumo e o do grupo que melhor conheciam, dando informações relevantes para a compreensão da natureza do uso e da sociabilidade de cocaína “cheirada” em cada território e/ou circuito. Portanto, eles puderam ser localizados segundo seus locais de moradia, de estudo e de entretenimento na Cidade de São Paulo.

A intenção foi contextualizar diferentes formas de uso de cocaína, relacionando-as aos estilos de vida na metrópole e à sociabilidade de indivíduos das camadas médias urbanas. Portanto, foram privilegiadas a descrição do processo etnográfico, a seleção dos entrevistados (informantes-chave), a caracterização dos estudos de casos e as mudanças ocorridas no mercado e vivenciadas pelos consumidores, etc.

Foram, então, selecionados usuários de cocaína, de ambos os sexos, com um número maior de homens (8) e algumas mulheres (3). Quanto à cor dos entrevistados foi definido pelo pesquisador, utilizando critérios do IBGE: 7 são brancos, 3 são pardos e 1 é negro. Suas faixas etárias variavam de 17 a 46 anos no período da primeira entrevista (1994). A escolaridade dos entrevistados é predominantemente alta: 4 pessoas com nível universitário completo, 1 com nível universitário incompleto, 4 com nível médio completo e 1 com nível médio incompleto; e 1 com o primeiro grau incompleto. A maioria tem uma boa inserção no mercado de trabalho, ou seja, muitos possuem uma ocupação e profissão. A renda dos entrevistados está acima da maioria da população brasileira, sendo que um terço deles concentra-se na faixa de renda que varia de 4 a 6 salários mínimos, e alguns outros que recebem mais de 15 salários, sendo que apenas 3 deles recebem o inferior até 3 salários mínimos e 1 estava desempregado (vide apêndice 1). Esse desempregado é negro e tem o menor nível de escolaridade, enquanto dois brancos têm inserção precária no mercado de trabalho, com renda baixa, algo em torno de dois salários mínimos. Em geral, estes consumidores de cocaína têm uma auto-imagem altamente positiva — eles se consideram bem- sucedidos, sobretudo por conta de suas atividades profissionais.

Os consumidores são de diferentes orientações sexuais autodeclaradas: 4 homossexuais, 5 heterossexuais e 2 bissexuais. Cabe salientar que os bissexuais se apresentam como “homens”, pela identidade de gênero, mas acabam revelando nas entrevistas terem tido relações sexuais com pessoas do mesmo sexo, embora se assumam tão-somente como “heterossexuais”. Foi possível ainda constatar que, entre os entrevistados, os homossexuais possuem o maior nível de renda, uma melhor inserção no mercado de trabalho e, conseqüentemente, recebem os salários mais altos.

A situação conjugal dos entrevistados é a seguinte: a maioria solteira (7) e/ou divorciada(2) e poucos (2) com parceiros afetivos, ambos homossexuais com mais de 20 anos de união. Mais da metade dos entrevistados mora com a família (6), dois com amigos em “república” e dois sozinhos. O tipo de moradia é de alvenaria, sendo que a maioria reside em casas térreas e 4 em apartamentos. A maioria destes imóveis é de sua propriedade ou da família (7), sendo os demais, alugados (4). Quanto ao local de moradia, está assim distribuído: na região central (8) e na Zona Oeste (3) da Cidade de São Paulo. De acordo com o local de moradia, podem ser identificados os diferentes circuitos no interior da metrópole. Foi estimado que, nesta metrópole, um sujeito sem carro, percorre 25 km em torno de sua residência, enquanto os motorizados percorrem, aproximadamente, 50 km em torno de um epicentro. Entre os entrevistados, apenas 6 tinham carro, enquanto os outros 5 utilizavam o transporte público (ônibus) e o metrô.

Quanto à lógica “nativa” operante na filiação a uma determinada geração, constata-se que os usuários se filiam a grupos de decênios, cuja identificação do “grupo” ocorre com os conhecidos do período da juventude, os quais foram marcados por diferentes ícones e movimentos sociais, culturais, políticos e estéticos. Portanto, os entrevistados se filiam às gerações 70, 80 e 90, sendo que uma grande parte dos consumidores de cocaína desenvolveu este uso nos fins dos anos 70 e durante a década de 80. Nos anos 90, entretanto, observa-se a emergência dos consumidores de crack, cuja difusão e consumo ocorreram entre os usuários mais jovens e pobres das regiões periféricas, assim como entre as populações de rua.

Os entrevistados apresentam diferentes tipos e modos de uso de cocaína. Uma metade usou-a apenas por via inalada, enquanto a outra utilizou-a através das diferentes vias de administração. Quanto às suas ocupações profissionais, estão assim distribuídas: estudante, advogado, médico, artista, profissional liberal, administrador, cenógrafo, comerciário, digitador, vendedor e professor. A inserção socioeconômica e profissional dos entrevistados está caracterizada em dois grandes estratos das camadas médias e das camadas baixas.

A respeito das vias de uso de cocaína, todos a inalam, sendo que quatro usuários também fizeram uso injetável, e outros três consumiram crack. O que chama a atenção é que muitos dos usuários de drogas injetáveis da década de 70 substituíram o uso injetável de anfetaminas pelo uso injetável da cocaína no final da década e durante a seguinte. Os motivos que levaram a esta migração foram o fechamento dos laboratórios farmacêuticos que produziam estes produtos, e as mudanças na sensibilidade e na percepção de tempo provocadas pelos efeitos destas substâncias. Os consumidores de crack iniciaram este uso na década de 90, sendo que, antes desta nova onda, havia o uso de cocaína misturada com

maconha ou tabaco, chamado pelos entrevistados de free-base43, e apontado

dentro de uma genealogia de práticas de intoxicações, “como o avô do crack”.