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Acesso igualitário aos bens ambientais

5 A DISCIPLINA DO DEVER FUNDAMENTAL DE PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE NO ORDENAMENTO BRASILEIRO

5.3 Princípios da proteção jurídica ambiental

5.3.1 Acesso igualitário aos bens ambientais

O tema central que aqui se apresenta é o da igualdade de acesso de todos ao bem ambiental. Essa idéia (ou ideal) de igualdade, em matéria ambiental, reclama a consideração de alguns aspectos para que se verifique e estabeleça o seu conteúdo.

É preciso ocupar-se em estabelecer qual o fundamento legitimador dessa igualdade, como se dá este acesso e quem são estes todos de quem se fala.

O princípio da igualdade, em linhas gerais, está consagrado nos documentos internacionais e no rol de direitos fundamentais das constituições democráticas por todo o mundo.

O fundamento do princípio do acesso igualitário aos bens ambientais é, pois, o próprio princípio da igualdade transportado para o campo do direito do ambiente.

Já na Declaração de Estocolmo de 1972, o princípio encontra-se enunciado, em seu Princípio 5, consoante o qual: Os recursos não renováveis do Globo devem ser explorados de tal modo que não haja risco de serem exauridos e que as vantagens extraídas de sua utilização sejam partilhadas a toda a humanidade.

O acesso igualitário orienta que as necessidades de recursos ambientais de todos sejam atendidas. Paulo Affonso Leme Machado (2014, p. 86) faz uso da expressão “todos os habitantes do planeta Terra”, o que poderia conduzir a uma interpretação de que estivesse se referindo não só às pessoas como também aos animais. Porém, logo em seguida de tal afirmação, o autor refere-se exclusiva e expressamente aos seres humanos, pelo que se pode entender que aponta a espécie humana como a única destinatária do princípio.

Leme Machado (2014, p. 88) destaca três específicas formas de acesso aos bens ambientais, são elas: (i) o acesso para o consumo; (ii) o acesso danoso ou degradante e (iii) o acesso contemplativo. Todas estas formas devem obedecer um princípio de igualdade entre as

pessoas, embora os acessos previstos nos itens (i) e (ii) estejam sujeitos a um indispensável controle Estatal e geral.

Incorporando ao princípio o ideal ambiental de justiça intergeracional revela-se a faceta da igualdade de acesso para com as gerações futuras. É preciso atentar para a necessidade de salvaguardar o estoque de bens ambientais para os futuros habitantes.

A fórmula, por excelência adotada para alcançar a almejada igualdade, tem sido a de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais.

Ocorre que, no plano da realidade, verifica-se uma desigualdade muito intensa na distribuição dos bens ambientais entre as pessoas, as comunidades e as nações. Essa desigualdade é que o princípio tem por escopo atacar.

A questão que se põe, portanto, é de justiça socioambiental. É dizer, chama-se atenção para as populações menos favorecidas, que o são tanto no aspecto econômico, como agora também do ponto de vista do acesso aos bens ambientais.

Sobre as comunidades mais pobres tendem a recair os custos ambientais decorrentes de um processo de industrialização ou modernização60, cujos malefícios são amenizados justamente mediante a aquisição de insumos ou tecnologias que permitam aos seus usuários certa compensação artificial dos efeitos da degradação ambiental. Para uma melhor compreensão, a aquisição de aparelhos de ar-condicionado e o acesso ao saneamento básico são exemplos de mecanismos capazes de amenizar, respectivamente, os efeitos do aquecimento global e da poluição das águas.

A estes insumos e tecnologias muitos permanecem sem acesso, pelo que se diz que suportam mais intensamente os custos ambientais.

O acesso igualitário aos bens ambientais tende a reduzir esta desigualdade socioambiental, contribuindo decisivamente para o processo de desenvolvimento61 da comunidade.

Pode-se dizer, portanto, que do princípio em causa resulta o dever de reduzir a desigualdade ambiental entre as pessoas, as populações e, no plano internacional, entre as nações, mediante a aplicação de políticas publicas apropriadas, muitas vezes lastreadas em critérios de justiça distributiva ou corretiva.

60 O termo modernização está sendo adotado na acepção segundo Ulrich Beck: “Modernização significa o salto

tecnológico de racionalização e a transformação do trabalho e da organização, englobando para além disso muito mais: a mudança dos caracteres sociais e das biografias padrão, dos estilos de vida, das estruturas de poder e controle, das formas políticas de opressão e participação, das concepções da realidade e das normas cognitivas.” (BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010, p. 23)

61 Nesta passagem, utilizamos o termo desenvolvimento na acepção difundida por Amartya Sen, como sendo o

“processo de expansão real das liberdades que as pessoas desfrutam”. (SEN, Amartya. Desenvolvimento como

Sobre este aspecto, calha a análise das observações feitas por Posner e Cass (2007), em artigo no qual os professores da Universidade de Chicago tratam do tema.

No trabalho em referência, Posner e Cass abordam a questão da distribuição, entre as nações, dos ônus decorrentes da responsabilidade pela proteção ambiental.

Focando a argumentação na mudança climática, os autores partem de duas premissas básicas, consoante às quais, primeiramente, o mundo, considerado como um todo, beneficiar-se-ia de um acordo objetivando reduzir a emissão de gases poluentes. Uma segunda premissa do trabalho seria a de que algumas nações não seriam beneficiadas com um acordo ótimo do ponto de vista mundial. Citam os Estados Unidos e possivelmente também a China entre as nações não beneficiadas.

Segundo sustentam Posner e Cass (2007, p.13), os países pobres sofrerão mais com a mudança climática decorrente da poluição, seja porque os países ricos possuem maior capacidade de adaptação às mudanças, seja pelo fato de que as economias dos países industrializados dependem muito menos da agricultura – que é um setor fortemente atingido pela mudança climática, seja porque em geral estão localizados em zonas mais frias em altas latitudes.

Com base nestas considerações, a par de outras cujo destaque é dispensável para o desenvolvimento do raciocínio aqui exposto a propósito do tema específico do acesso igualitário aos bens ambientais, são abordados pontos como justiça distributiva e justiça corretiva.

Para Posner e Cass, atribuir aos Estados Unidos maiores ônus em razão da emissão de gases poluentes não é um bom instrumento de realização da justiça distributiva. Os autores valem-se de múltiplos argumentos neste sentido.

Dentre outras assertivas, afirmam que, tanto nas nações que denominam "wealthy" (aqui traduzidas livremente ora como ricos ora como desenvolvidos) como nas nações pobres, há populações ricas e populações pobres. Assim, não se pode garantir que uma transferência de recursos estaria indo realmente dos mais ricos dos Estados Unidos para os mais pobres da Índia, por exemplo.

Dizem mais que as populações pobres dos países desenvolvidos poderiam, em última análise, acabar suportando os custos de uma "tributação" sobre a emissão de gases poluentes, por meio de contas de energia mais caras, perdas de emprego etc.

Por fim, ressaltam que algumas populações, mesmo pobres, beneficiar-se-iam com uma mudança climática em suas regiões. Cita os locais extremamente frios na Rússia e na China, que possivelmente aumentariam a sua produção agrícola, caso houvesse uma

elevação da temperatura média na região.

Com esteio em tais argumentos, pode-se concluir que os autores pregam o que se pode denominar de uma filosofia do liberalismo ambiental. É dizer, a justiça socioambiental será realizada naturalmente, desde que se preserve a liberdade de atuar das nações, sendo de se esperar que cada país encontre sua própria compensação em face das conseqüências do aquecimento global (ou outra forma de agressão ambiental a ser considerada).

Há uma idéia subjacente de que é justo que cada nação seja onerada em diversas proporções, levando-se em conta o critério da capacidade, que se expressa pela produção de riqueza, e não somente o da necessidade.

Para além de tudo mais, há a afirmação de que a justiça distributiva não deve ser aplicada para amenizar as conseqüências da mudança climática, decorrentes de uma atividade industrial mais intensa dos países ricos, mercê da inexistência de um método efetivo de transferência da riqueza desigualmente adquirida para as populações realmente necessitadas.

Argumentos e conclusão caminham ambos em rota de colisão com o princípio do acesso igualitário aos bens ambientais. A tutela jurídica ambiental ideal é preventiva. Antecipa-se à ocorrência do dano. Entretanto, verificado este, impõe-se a compensação.

A atividade industrial gerou avanço tecnológico, fez surgir comodidades, bem como proporcionou o enriquecimento de pessoas, grupos e nações, à custa do intenso consumo de bens ambientais.

Gerou benefícios para uns, enquanto outros suportaram prejuízos, restando clara a desigualdade daí resultante.

É preciso que se encontre uma fórmula para amenizar essa desigualdade. Isto pode ocorrer por meio da facilitação do acesso dos próprios recursos ambientais ou por medidas compensatórias que permitam àqueles que ficaram privados destes recursos encontrarem substitutos que lhes garantam razoável qualidade de vida.

Há maneiras de assegurar que transferências de recursos sejam dirigidas a determinadas camadas populacionais, bastando para isso que se vincule o recebimento do quanto transferido a projetos socioambientais específicos em funcionamento junto às nações beneficiadas.

Por outra parte, também é possível encontrar instrumentos de política fiscal, tributária ou social mesmo, que evitem onerar de maneira desproporcional as populações pobres das nações ricas, em função da aplicação de instrumentos da justiça distributiva direcionados ao amparo de nações mais pobres.

países eventualmente beneficiados é pontual e não pode se sobrepor ao interesse geral que, no caso específico do artigo em referência, volta-se contra o aquecimento global e, numa perspectiva mais ampla, dirige-se à proteção da natureza e ao combate à degradação ambiental.

No mesmo artigo ora em análise, Posner e Cass (2007, p. 24) sustentam que não há que se falar em Justiça corretiva, pois, assim como os americanos, o mundo inteiro também se beneficiou com a atividade poluente dos Estados Unidos, a qual tanto gerou custos ambientais ao resto do mundo, quanto lhes trouxe benefícios em forma de produtos e tecnologias que são consumidos por todo o planeta.

Afirmam, então, que há um problema de identificação entre vítimas e malfeitores, no que diz respeito à questão da mudança climática, argumento que pode ser transportado para a degradação ambiental como um todo.

Isto porque os beneficiários imediatos, que tiveram algum ganho concernente a avanços tecnológicos ou enriquecimento, estão disseminados pelo mundo. De outra parte, muitas "vítimas" ainda não são sequer determináveis, porque seriam provavelmente das futuras gerações.

A situação descrita dificultaria a aplicação de uma "justiça corretiva", que se baseia na lógica de que o infrator assuma a responsabilidade perante a vítima, em razão da conduta lesiva que o beneficiava e a ela prejudicou.

Diversamente do que ocorre em relação aos argumentos contra a justiça distributiva, todos já refutados, os argumentos concernentes à inconveniência da aplicação de uma justiça corretiva estão construídos sobre premissas mais racionais.

Assim é que, embora seja difícil localizar geograficamente vítimas x malfeitores, se não apenas pelas razões já alinhadas, mas também em função do intenso processo de globalização econômica, há algo que não se pode negar que é a desigualdade existente de acesso aos bens ambientais.

Portanto, ainda que não seja por motivos de justiça corretiva, ou que não seja apenas ou principalmente por esses motivos, esta desigualdade socioambiental deve ser combatida e reduzida.

Num mundo globalizado e mormente tratando-se de questões concernentes ao equilíbrio ecológico, a ação pontual é inefetiva. Ou se assegura a proteção do bem ambiental em nível mundial, de forma universal e impessoal, ou não se está assegurando realmente esta proteção.

Assim é que, impõe-se sobre todos os argumentos contrários lançados e analisados a observância do princípio do acesso igualitário aos bens ambientais.