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O princípio da solidariedade

3 A ORDEM JURÍDICA COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE

3.1 O princípio da solidariedade

O dever fundamental de proteção do meio ambiente, assim como os demais deveres fundamentais, encontra esteio no princípio da solidariedade. A solidariedade assenta- se hoje como princípio geral de direito, para além de ser princípio de Direito Ambiental. A urgência na conservação dos bens naturais trata-se de uma realidade, que justifica e requer a elevação deste valor.

Sobre solidariedade, manifesta-se Ulrich Beck, com abordagem destacada para a questão ambiental. Tratando da existência de um sentimento de solidariedade entre as coisas vivas. Beck (2010, p. 91) destaca a circunstância de como o ser humano se percebe natural e frágil, ao constatar a agressão à natureza. Nas suas exatas palavras, com a morte das florestas, o ser humano percebe-se a si mesmo como "ser natural com pretensão moral", como coisa móvel e frágil em meio a outras coisas (...).

Seria como um despertar da consciência natural do ser humano. O momento em que o espírito percebe-se também corpo, solapando o dualismo e convidando-nos à

solidariedade entre todos.

Entre nós, assim como tantos outros, disserta sobre o tema com autoridade o professor Paulo Bonavides (2011, p. 59). Inspirado na lição de Karel Vasak, afirma que a consciência de uma divisão em nível mundial entre nações ricas e pobres deu ensejo ao surgimento da denominada terceira geração de direitos fundamentais lastreada mormente no valor fraternidade, normatizado como princípio da solidariedade.

Também para Ingo Sarlet (2014, p. 66), o princípio da solidariedade é afirmado como o "marco jurídico-constitucional dos direitos de terceira dimensão." Segundo seu entendimento, tendo em vista a insuficiência dos princípios da liberdade e da igualdade para fundamentar todos os valores que fundamentam as constituições do Estado de Direito contemporâneo, destaca-se o princípio da solidariedade como vetor propulsor da concretização, em sua integralidade, do projeto de Estado da modernidade.

Já para Beck (2010. p. 91), o fundamento que faz firmar-se a solidariedade como valor, na sociedade do risco em que vivemos, é, em última análise, o medo.

O autor considera que o móvel das pessoas para a solidariedade na sociedade de classes é a busca pela igualdade. Neste ponto, pois, ratifica o quanto dito por Bonavides: a solidariedade surge da tensão entre ricos e pobres. É o que ele denomina solidariedade da carência, que surge da empatia do rico em relação ao pobre.

Enquanto isto, na sociedade do risco, que, para o autor, é a que vivemos atualmente, este móvel é a busca pela segurança.

A sociedade de classes que busca a igualdade permite-se envolver pela solidariedade, porque se compadece ou experimenta a fome. Já a sociedade do risco é solidária, porque consciente da incerteza do futuro, tem medo. Por isso, o autor refere a uma mudança da solidariedade da carência para a solidariedade do medo.

Seja pelo fundamento da empatia com os pobres, seja em função do medo, o fato é que a solidariedade é o valor base e indispensável à legitimação desta terceira geração de direitos. Com efeito, trata-se de uma geração de direitos que transpõe a proteção específica dos direitos individuais ou coletivos. Incorpora-se, neste instante, ao discurso jurídico a noção interesses difusos, meta ou transindividuais. Pode-se dizer que se inaugura aqui a era da transcedência subjetiva dos direitos.

Segundo a lição de Bonavides, cuidamos aqui de direitos “dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade” (2011, p. 118). Seu destinatário precípuo seria o gênero humano considerado como um todo. No caso particular do meio ambiente, caminha-se para o reconhecimento da natureza mesma como suposta titular deste direito, inclusive.

O professor Paulo Bonavides assenta que os direitos de terceira geração surgiram “da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade” (2011, p. 118). O direito ao meio ambiente e ao desenvolvimento são apontados como direitos desta terceira geração, assim como um direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade também.

Paulo Bonavides faz referência ainda, na edição de 2011 já citada em nota de roda-pé, a Etiene-R. Mbaya, como sendo o jusfilósofo que cunhou a expressão direitos de solidariedade, ao invés de fraternidade para designar esta geração de direitos.De fato, consoante acentuam Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer (2014, p. 67- 69), é necessário conferir destaque ao Princípio da Solidariedade para cumprir o projeto político-normativo atual. Para os autores, a solidariedade não pode mais ser vista como um mero dever moral. Segundo afirmam, a solidariedade precisa ser admitida como pilar fundamental do plano jurídico- normativo de uma sociedade constituída com esteio nos valores que pautam a existência de um Estado Socioambiental de Direito.

É possível dizer, então, que a solidariedade ganha espaço como princípio de justiça, à medida que uma ética de colaboração social vai se inserindo no ordenamento constitucional. Ser solidário, do ponto de vista jurídico, é assumir como seus interesses do grupo em que o cidadão está inserido, e a partir dessa assunção, agir positivamente para a implementação desses interesses. No caso brasileiro, p. ex., o Princípio da Solidariedade já se encontra registrado logo no início do texto constitucional, no qual o art. 3º, I, elenca entre os objetivos da República, construir uma sociedade solidária.

Portanto, a observância de um princípio de solidariedade comunitária justifica que ao cidadão sejam imputados deveres junto à comunidade a que pertence, junto ao Estado ou ainda, numa visão que admita a existência de uma cidadania cosmopolita, junto à comunidade planetária.

Ademais desta amplitude espacial dos conceitos de comunidade e de cidadania, o dever de conservação da natureza enseja também uma ampliação temporal destes conceitos. Por isso se diz que, para além da solidariedade genérica, há que se considerar também o princípio da solidariedade intergeracional.

Consoante noticia Carla Amado (GOMES, 2012, p. 104), a solidariedade intergeracional implica na conservação de três elementos principais, a saber: (i) das opções das gerações vindouras; (ii) da qualidade dos recursos naturais e (iii) do acesso aos recursos naturais.

mesmos bens naturais das presentes, guardando-se a semelhança dos níveis de qualidade e acessibilidade desses bens.7

Essa vertente do princípio da solidariedade em matéria ambiental, que consiste na solidariedade intergeracional, é dizer, a solidariedade da geração presente para com as gerações futuras, embora já consagrada em textos constitucionais, como o brasileiro, p. ex., ainda chega a ser objeto de controvérsias acerca de sua natureza verdadeiramente jurídica.

Para Carla Amado (GOMES, 2012, 107), o princípio da solidariedade intergeracional é antes um preceito moral do que jurídico, e aponta alguns impedimentos para a configuração de uma natureza jurídica da solidariedade intergeracional.

Em primeiro lugar, refere-se à questão da ausência de representatividade política das gerações futuras. Com efeito, as gerações futuras não podem participar do processo democrático de tomada de decisão que se desenvolve no presente. Portanto, não consentem nem dissentem das ações políticas efetuadas. Ademais, na medida em que as ações políticas atuais sejam consentâneas com as decisões tomadas no processo democrático, sua legitimidade é evidente, ainda que se possa pressentir uma possibilidade de prejuízo a futuras gerações.

Um segundo obstáculo apontado é o de natureza jurídica e consiste na impossibilidade da geração futura de executar sanções jurídicas em face de uma geração pretérita, então já inexistente. Os atos contrários ao direito das gerações já passadas, muito embora causem efeitos no mundo material (irreversíveis até, por vezes), acabam por não gerar a consequência jurídica devida por quem de direito.

Para além destes dois impedimentos, Carla (GOMES, 2012, p.112) aponta ainda dois outros obstáculos: o científico e o social. Segundo diz, do ponto de vista científico, deve- se considerar que nem sempre é possível prever, com segurança, os efeitos de uma intervenção ambiental. Esta consideração já invoca a outra, de natureza social, que diz respeito ao risco de impedir a evolução tecnológica, sem ganho para a geração futura e à impossibilidade de antecipar quais serão realmente os interesses de uma geração futura.

Em face dessas tantas considerações, a autora sustenta que o princípio de solidariedade ambiental para com geração CONTEMPORÂNEA é um princípio jurídico, já um princípio de JUSTIÇA INTERGERACIONAL é apenas moral, mas não jurídico.

Esta posição, na verdade, trata-se de uma substanciosa crítica a uma possível natureza jurídica do princípio da solidariedade intergeracional (ou da justiça intergeracional),

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Consoante será visto mais adiante, pra alguns esta vertente do princípio da solidariedade intergeracional é, na verdade, um outro princípio, a saber, o da equidade intergeracional.

o qual, porém, vem ganhando espaço nos documentos jurídicos, como a Constituição brasileira, p. ex., naturalmente para que sua natureza jurídica seja reconhecida.

A coerência e a profundidade dos argumentos ora reproduzidos não pode ser negada. Por outro lado, é bem certo que o sentimento de justiça entre gerações contribui para a afirmação do dever fundamental de conservação da natureza e mesmo para o estabelecimento de um campo fértil ao nascimento de um possível Estado de Direito Ecológico ou Socioambiental.

Bem por isso, não é oportuno descartar a idéia de solidariedade intergeracional como princípio jurídico. Muito embora, ainda haja razões para questionar-lhe tal natureza, cuidando-se o direito do ambiente de um direito revolucionário e de vanguarda, é natural que esperemos o surgimento de novos institutos jurídicos. De fato, trata-se de uma nova realidade a ser disciplinada pelo Direito, demandando, pois, a descoberta de novos espaços de liberdade a serem explorados.

Sarlet e Fensterseifer (2014, p. 71) insistem que a solidariedade destaca-se como princípio informador da Justiça Ambiental, em face da reconhecida necessidade de se assegurar uma redistribuição justa e equânime do acesso de todos aos recursos naturais.

Com esta influência decisiva em matéria ambiental, a solidariedade é um princípio que precisa ser observado não somente sob o ponto de vista das relações entre cidadãos de uma mesma comunidade, como também entre cidadãos de diferentes comunidades, bem como de gerações e espécies diversas.

É preciso atentar para o fato de que há uma conexão entre as nações, que as põe a todas no mesmo pé de igualdade quando se trata dos riscos decorrentes da questão ecológica. Considerando que os efeitos dos danos ambientais não são localizados, mormente quando se constata uma "crescente interdependência econômica, política, ecológica e cultural" entre as nações, a dimensão do princípio da solidariedade somente pode ser global, sob pena de não ter qualquer proveito.

A solidariedade propõe-se a conter os excessos da liberdade individual, quando seu exercício esteja ameaçando o usufruto lídimo e regular de direitos fundamentais de outras titularidades. As responsabilidades e os deveres de natureza ambiental mormente, em razão do fortalecimento e da disseminação do princípio da solidariedade são dirigidas agora também à comunidade e ao cidadão individualmente considerando, não sendo mais encarados como tarefa exclusiva do Estado.

De sua vez, o princípio da solidariedade intergeracional, também denominado justiça intergeracional, estabelece que as gerações presentes devem considerar os interesses

das gerações futuras para sua tomada de decisão. Os interesses das gerações futuras são, sob a perspectiva deste princípio, fatores de legitimação das ações referentes ao meio ambiente dos entes públicos e privados.

Assim é que, não sem reconhecer uma certa vulnerabilidade às gerações futuras, que não participam dos processos de tomada decisão aptos a influenciar e determinar sua condição de vida, é preciso afirmar a solidariedade intergeracional como princípio jurídico. Este é um passo importante para a efetivação de uma tutela jurídica do meio ambiente.

De mais a mais, deve imputar-se às gerações atuais uma obrigação, um dever de assegurar a qualidade de vida no planeta para as gerações vindouras. Essa só circunstância, a nosso pensar, já justificaria a natureza jurídica, e não apenas moral, do princípio da solidariedade entre as gerações.

Se se trata de um princípio jurídico com contornos irregulares, é porque inserido no cenário vanguardista do direito ambiental, cujos institutos jurídicos precisam ser adaptados à disciplina dos mais atuais anseios sociais típicos da matéria.

É preciso investigar novas possibilidades de sanções ou de reconhecimento de legitimidade democrática das escolhas populares e governamentais. Enfim, mecanismos que tornem possível, em um futuro que se espera próximo, uma garantia mais efetiva do bem estar das gerações futuras, resguardando sua possibilidade de acesso aos indispensáveis bens naturais.

Calha aqui uma referência a uma suposta diferença entre um princípio da solidariedade intergeracional e um outro da equidade intergeracional.

Embora haja quem sustente tratar-se de meros aspectos de um só princípio, como referimos em Carla Amado linhas atrás, pode-se também diferenciar os dois princípios: solidariedade e equidade entre as gerações.

Assim é que, por força da solidariedade intergeracional, hão de ser considerados os interesses das gerações futuras, consoante já se afirmou.

Já em razão da equidade intergeracional, requer-se que se mantenha um equilíbrio do capital natural de geração para geração. É dizer, o estoque de recursos naturais que uma geração recebe ao habitar o planeta não deve ser maior do que aquele que ela deixa para a próxima geração. A herança ambiental que ela recebe dever ser equivalente à que ela transmite.

Trata-se de uma vertente muito vinculada ao tema da gestão racional de bens. Inicialmente, um aspecto da solidariedade que se exerce contemporaneamente, é dizer, em face da geração da qual se faz parte, a gestão racional, por força da equidade, expande-se de

uma geração a outra.

Em assim sendo, observa-se que da vigência do princípio da solidariedade em matéria ambiental, decorre o mandamento de que devemos gerir os bens ambientais, cuja natureza é coletiva, como se um bem individual e subjetivo fosse. É dizer, impõe-se o dever de cuidar do que é comum a todos como se próprio fosse. E, em verdade, o bem ambiental não deixa de ser de certa forma próprio, posto ser meu também.

Baseado no fundamento jurídico da solidariedade, insere-se o dever de proteção ambiental no direito nacional, seja mediante tutela jurídica infraconstitucional, seja mediante tutela jurídica constitucional direta.

Sendo certo, então, que o princípio da solidariedade vem inspirando a edição das normas disciplinadoras da proteção do bem ambiental, impõe-se a análise de tais normas, mediante abordagem do cenário internacional, comparado e nacional.