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2.1 Reforma agrária e mecanismos de acesso à terra

2.1.2 Os mecanismos de acesso à terra

2.1.2.2 Acesso à terra por desapropriação

O modelo de reforma agrária implementado no Brasil, em sua maior parte, baseia-se na desapropriação de propriedades consideradas improdutivas e no assentamento de famílias sem terra ou de minifundistas, com o objetivo de fazer cumprir a determinação constitucional da função social da terra. A legislação, fundamentada no Estatuto da Terra, na Lei 6.829, de 25/02/1993 e na Lei Complementar nº 76, de 16/07/1993, assegura aos proprietários desapropriados uma indenização correspondente ao valor de mercado das propriedades, sendo que a terra é paga em títulos da dívida agrária de longo prazo e as benfeitorias à vista e em dinheiro. As famílias assentadas recebem a terra, uma doação para instalação, habitação e tem acesso ao crédito do Programa Nacional de Agricultura Familiar (PRONAF), com taxas subsidiadas e em condições especiais. O INCRA é ainda responsável pela demarcação dos lotes individuais e implantação da infraestrutura produtiva e social do assentamento (estradas vicinais, escola, posto de saúde etc.). Os beneficiários são considerados emancipados após a implantação da infraestrutura quando os assentados estiverem em condições de manter-se por conta própria (BUAINAIN et al., 2002).

O quadro jurídico para esse modelo de intervenção fundiária foi criado no início do governo militar, em 1964 com posteriores ajustes, particularmente para agilizar o processo de desapropriação. Criado sob o regime autoritarista, o quadro jurídico fundamentado no Estatuto da Terra, de um lado, carece de mecanismos jurídicos e operacionais para a resolução de conflitos, de outro, confere uma legislação suficiente para atender aos interesses daquele regime, representado pelo conjunto de programas associados à criação do próprio Estatuto da Terra, dirigidos à ocupação das áreas de fronteira agrícola, nas Regiões Norte e Centro-Oeste. Entre os programas especiais de desenvolvimento regional, os projetos de colonização, criados a partir dos anos 1970, encontram-se: Programa de Integração Nacional (PIN) de 1970; Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e Nordeste (PROTERRA) de 1971; Programa Especial para o Vale do São Francisco (PROVALE) de 1972; Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia (POLAMAZÔNIA) de 1974; Programa de Desenvolvimento de Áreas Integradas do Nordeste (POLONORDESTE) de 1974 (SECOM, 1997).

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) foi criado em 1971, sob o regime de autarquia, para a realização dos programas da política agrária militar. A reforma agrária foi conduzida a partir do seguinte conjunto de regras (BUAINAIN

et al., 2002):

(i) As terras destinadas à reforma agrária podem ser terras públicas (artigo 9º do Estatuto da Terra) e terras privadas que não estejam cumprindo sua função social, as quais são passíveis de desapropriação, conforme o artigo 4º, que classifica o latifúndio delimitando, de um lado um limite máximo absoluto para o tamanho do latifúndio e de outro, atribui ao INCRA a qualificação do imóvel como improdutivo, dado um conjunto de indicadores com critérios determinados regionalmente; (ii) A desapropriação é feita sob o pagamento do valor da terra em Títulos

da Dívida Agrária (TDA), resgatável no prazo de vinte anos. Nos anos 1990, as TDA tornaram-se elegíveis para a participação no processo de privatização das empresas públicas (NAVARRO, 2009);

(iii) São componentes adicionais do assentamento das famílias, os recursos para instalação comunitária, sem necessidade de reembolso, e o acesso ao crédito rural particularmente destinado aos beneficiários da reforma agrária. O PNRA contou com apoio do Programa Especial de Crédito para a Reforma Agrária (PROCERA) de 1985 a 1998 e posteriormente, do PRONAF, criado em 1996 e estendido às associações de assentamentos da reforma agrária, a partir de 1999; (iv) O título da concessão de uso direito de posse sobre o lote recebido,

prevê a proibição de negociação do mesmo pelo prazo de 10 anos; (v) O processo de seleção dos beneficiários é realizado de acordo com a

listagem de candidatos, sob responsabilidade do INCRA. São elegíveis os candidatos que são trabalhadores rurais sem terra, sendo que são priorizadas as famílias mais numerosas no processo de seleção;

(vi) As terras da reforma agrária são destinadas ao desenvolvimento de atividades de natureza agropecuária, extrativista ou agroindustrial;

(vii) No assentamento pode-se organizar a exploração coletiva, na forma de associação ou cooperativa.

A eficiência, viabilidade e sustentabilidade desse modelo foi objeto de debates e críticas, principalmente quando da emergência dos mecanismos de acesso à terra apoiados no mercado, na segunda metade dos anos 1990. Buainain et al. (2000), Gasques e Conceição (2000), Gasques e Villa Verde (2000), colocam como principais questões, as seguintes:

(i) Sua concepção data dos anos 1960 e reflete a situação estrutural e conjuntural daquele momento histórico;

(ii) Foi concebido durante o regime militar e reflete uma concepção ao mesmo tempo paternalista do papel do Estado, já que a emancipação não é obrigatória;

(iii) Apresenta limitações na institucionalidade vigente, com operação centralizada e susceptível juridicamente a impugnações legais;

(iv) Aos custos burocráticos decorrentes dos processos de seleção de beneficiários e de seleção e demarcação de terras, adiciona-se os custos do litígio jurídico. Gasques e Conceição (2000) indicaram que, em 1995, apenas 46% do orçamento da reforma agrária referiam-se aos custos diretos de aquisição dos imóveis rurais;

(v) O preço pago pela terra desapropriada tende a ser alto porque não sofre pressão de mercado, particularmente nos anos 1990, foi oferecida voluntariamente pelo proprietário dada às restrições macroeconômicas que afetavam o desempenho da agricultura (GASQUES; VILLA VERDE, 2000).

Além do elevado custo da desapropriação (SHIKI; NEDER, 1998), é necessário levar em conta que a distribuição de terras, desassociada de instrumentos de apoio e de uma estrutura de incentivos adequada, não parece ser suficiente para iniciar um processo virtuoso de superação da pobreza e das desigualdades (DE JANVRY; SADOULET, 2004; SILVEIRA et al., 1999). Portanto a eficiência e a sustentabilidade dos projetos de assentamentos, podem ser afetadas ainda por outros fatores (BUAINAIN et al., 2000), entre os quais:

(i) As dificuldades para promover a emancipação dos beneficiários, cuja dependência do poder público pode estender-se por muitos anos; (ii) As dificuldades associadas à centralização do processo, principalmente

de caráter operacional que levam à necessidade de um sistema burocrático superdimensionado;

(iii) O longo tempo entre a identificação das terras e a implantação do assentamento;

(iv) Os estímulos indiretos à ocupação e ao conflito, justificados pela pouca agilidade do processo;

(v) A pressão ao atendimento das demandas sociais pressionam o planejamento para implantação dos assentamentos, desviando o foco do desenvolvimento produtivo do assentamento;

(vi) A falta de planejamento e o caráter emergencial da intervenção, em respostas aos processos de ocupação, por pressão dos movimentos sociais;

(vii) O processo de desapropriação tende a ser dirigido para terras de baixa qualidade para o desenvolvimento das atividades agropecuárias;

(viii) A ausência de apoio financeiro e técnico, vigente nas condições operacionais do modelo de desapropriação até a primeira metade dos anos 2000, quando observou-se o incremento sistemático da dotação orçamentária destinada à reforma agrária.

As dificuldades observadas em relação ao mecanismo de desapropriação servem de base para uma reflexão sobre como redesenhar institucional e operacionalmente os instrumentos no sentido tanto de adequá-lo ao novo contexto dado ao final dos anos 1990 – maior demanda social por terras, necessidade de maior rapidez e eficiência das intervenções, restrições fiscais do setor público etc. –, como para gerar incentivos positivos que conduzam os beneficiários a um processo de acumulação sustentável (SILVEIRA et al., 1999).

A hipótese que vem orientando a criação de novos modelos de programas de políticas públicas, é a busca de estruturas de governança mais eficientes,

sobretudo nos casos em que os problemas estejam ligados à superação das fricções e falhas de mercado decorrentes da assimetria de informação (HOFF, 1998).