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2.1 Reforma agrária e mecanismos de acesso à terra

2.1.2 Os mecanismos de acesso à terra

2.1.2.4 Quadro comparativo entre os mecanismos de acesso à terra

Os pontos discutidos a seguir são desenvolvidos a partir dos incentivos diferenciais produzidos pela estrutura de governança do Programa Cédula da Terra em relação aos da Reforma Agrária por desapropriação.

Acesso à terra

O mecanismo central de desapropriação da reforma agrária está fundamentado na função social da terra. São considerados desapropriáveis, os imóveis que ultrapassarem uma área mínima e que forem declarados improdutivos e aqueles, com área acima de um limite máximo (GROPPO, 1996; NAVARRO, 2009). Esse mecanismo pode criar um processo de obtenção de imóveis, mais sujeito ao risco de seleção adversa, seja pelas características próprias do imóvel ou devido às condições restritivas de acesso e de prestação de serviços, em função de sua localização.

Por sua vez, o mecanismo de redistribuição de terras do Programa Cédula da Terra, apresentado anteriormente, está fundamentado no acesso à terra por meio da aquisição de um imóvel tendo o mercado como instituição mediadora. As terras elegíveis excluem as desapropriáveis. A operação de financiamento para aquisição da terra articula crédito para aquisição do imóvel, instalações comunitárias e produtivas, a parcela referente ao subsídio e a ajuda para instalação imediata das famílias. É esperado que as regras estabelecidas para esta articulação promova um ajuste ótimo entre a seleção do imóvel em função de suas qualidades e preço, a seleção dos beneficiários dada a existência de relações sociais antes do ingresso no programa e, por último, a seleção do projeto produtivo a partir da combinação dos fatores anteriores. Para que isso aconteça é necessário que seu funcionamento seja de conhecimento comum e que os agentes envolvidos tomem as decisões conscientes dos desdobramentos da decisão inicial de aderir ao programa, momento em que é definido o montante da dívida, do subsídio e do apoio aos investimentos (SILVEIRA et al., 1999).

No Programa Cédula da Terra, a terra é comprada, portanto considera- se que os beneficiários, que serão seus proprietários, selecionarão áreas em condições de permitir geração de renda suficiente para o pagamento da dívida e compatíveis com a sustentabilidade econômica do processo produtivo. A forma associativa participando na própria aquisição, pode reduzir erros de avaliação individual e permitiria compatibilizar as características da terra às aptidões dos compradores, à disponibilidade de recursos e ao projeto de desenvolvimento (BUAINAIN et al., 1999a).

Uma vez que a terra não é arrecadada por via de desapropriação, e sim de aquisição no mercado, o preço pago pela terra pode diminuir, mas o custo total permanece ancorado no limite máximo por família, porque abre espaço para que o beneficiário utilize a maior parte do montante para os investimentos de instalação, os quais não participam da dívida.

Centralização e descentralização

Por um lado, a centralização do processo de desapropriação de terras promove maior controle político, maior controle do processo, das terras expropriadas e do processo de seleção dos beneficiários. Por outro, exige o desenvolvimento de um sistema burocrático maior e mais rígido, para garantir a própria realização do processo de desapropriação. Como consequência, as atividades gerenciais consomem maior parte do orçamento, a perda de agilidade dada a necessidade de comunicação e controle entre diferentes níveis, afeta o processos de desapropriação, a seleção dos beneficiários, a demarcação dos lotes etc. O processo de aquisição também pode sofrer atrasos e incrementar o custo total da operação devido à possibilidade de custos gerados por litígio jurídico (NAVARRO, 2009; MARQUES, 2007). A ausência de um mecanismo formal de participação dos beneficiários no processo de seleção das terras e de beneficiários, em comparação ao mecanismo de aquisição no mercado, elevaria o risco relativo de seleção adversa das terras e dos próprios beneficiários (BUAINAIN et al., 1999a). Em parte, a correção para este ponto tem sido o processo de ocupação, que embora ilegal, garante legitimidade social ao grupo e ao processo de seleção do imóvel. A descentralização do Programa Cédula da Terra atribui aos beneficiários, organizados em associação, a responsabilidade pela seleção dos pares, da terra, a definição dos

projetos produtivos, enquanto os governos estaduais tem a função de executar o programa, supervisionando os beneficiários e oferecendo assistência técnica. A descentralização requer uma estrutura burocrática menor e confere agilidade e flexibilidade na seleção de terras e beneficiários – as famílias beneficiárias não precisam esperar por todo o trâmite legal necessário à desapropriação (SILVEIRA et al., 1999; SPAROVEK, 2009). Por outro lado, a descentralização permite ao estado, que se furte da responsabilidade sobre a assistência técnica e parte da supervisão, atribuindo o serviço a agentes terceirizados. A autonomia dos beneficiários, juntamente com a aquisição da terra, são aspectos fundamentais para a operacionalização do programa e podem gerar resultados positivos, desde que as consequências do processo a partir da adesão, sejam previsíveis para os agentes envolvidos (SILVEIRA et al., 2001).

Seleção dos beneficiários

No modelo de acesso à terra por desapropriação, as informações sobre os candidatos estão no cadastro sob controle centralizado. O cadastro individual não favorece acesso aos pares, para conhecer ex-ante qual é a capacitação, interesse e disposição do candidato para dedicar-se ao negócio. A ausência de informação contribui para o risco de ineficiência seletiva, mesmo sob a definição de critérios rigorosos e detalhados de escolha dos beneficiários, como os programas de colonização e irrigação conduzidos sob o regime da ditadura. A seleção do público alvo em programas dessa natureza apresenta um conflito de escolha quanto às regras: um excessivo rigor nos critérios de identificação do público alvo ex-

ante eleva seu custo, mas reduziria, hipoteticamente, o custo de monitoramento posterior. Por

outro lado, pode ocorrer um viés de seleção do público alvo, uma vez que aqueles que mais necessitam ser atendidos pela redistribuição de ativos ou mesmo de fundos para elevar sua dotação inicial, são justamente os menos capacitados para entrar no programa.

Os processo de auto-seleção pode apresentar vantagens, seja como forma de reduzir os custos de identificação do público alvo e custos de monitoramento pós- seleção, seja para reduzir eventuais erros de seleção. No Programa Cédula da Terra, a aquisição da terra via mercado geraria um “conjunto de oportunidades” aberto a todos os indivíduos previamente definidos como público alvo do programa, sujeitas a um “conjunto de

restrições”, como a de pagar os empréstimos tomados. Estabelecidas as condições, espera-se que apenas aqueles indivíduos com perfil adequado ao aproveitamento destas oportunidades e dispostos a cumprir as obrigações assumidas se associariam para adquirir a terra. Como o acesso à terra dá-se por meio de uma operação mercantil, por meio de uma associação, apenas indivíduos com capital humano, poupança prévia e conhecimentos adequados ao aproveitamento das oportunidades se auto-selecionariam para participar do programa. A eficiência do processo seletivo é condição indispensável para uma maior eficiência econômica na condução da gestão das novas estruturas produtivas (SILVEIRA et al., 1999).

Eficiência alocativa e produtiva

A estrutura de governança do Programa Cédula da Terra apresenta dois componentes que, de início, contribuiriam para gerar incentivos e condições para uma alocação eficiente e sustentável dos recursos: (i) a seleção de terras adequadas ao perfil e aptidões dos produtores e aos projetos a serem implementados reduziria os problemas de ineficiência associados à qualidade da terra e do seu entorno; (ii) a seleção de beneficiários com características pessoais e condições socioeconômicas em condições de explorar as oportunidades criadas pelo acesso à terra (PIRES, 2000). A formação de grupos no processo de auto-seleção permitiria uma forma de monitoramento pelos pares que reduziria o risco moral ex-post, seja no processo de tomada de crédito, seja na definição, pelas famílias, do esforço que cada um deveria alocar para o sucesso do projeto (BARDHAN; UDRY, 1999). A partir de (i) e (ii), é possível assumir que tanto os investimentos como os projetos escolhidos pelas associações tenderiam a ser tecnicamente adequados à disponibilidade e às características dos recursos e compatíveis com a sustentabilidade do projeto.

A maior debilidade das unidades familiares é seu fracionamento e, devido às restrições de acesso e disponibilidade de recursos, uma escala de produção que, na maioria dos casos, não chega a atingir o nível que permite enfrentar individualmente o mercado sem sofrer as desvantagens associadas ao fracionamento e escala (GUANZIROLI et

al., 2001). O Programa Cédula da Terra estimula o associativismo como pré-condição para ter

acesso ao ativo terra. A compra associativa no mercado, por hipótese, deve ser desdobrada em um conjunto de ações coletivas na condução do negócio, sem que isto represente a perda de

estímulo individual (pela má definição de direitos de propriedade, como no caso do arrendamento). Esta ação coletiva deveria emergir como um comportamento endógeno e como um resultado ex-post, embora seja uma exigência burocrática.

A forma associativa pode facilitar o acesso aos mercados e o estabelecimento de contratos, pode facilitar o acesso às externalidades (como o aproveitamento de recursos naturais que exijam um nível elevado de investimentos), pode reduzir os custos de transação e de gestão e elevar o esforço individual, em particular devido ao monitoramento pelos pares do conjunto das atividades implementadas na área do projeto, tanto individuais como associativas. Permite ainda, a redução de decisões individuais incompatíveis com a sustentabilidade do projeto e a redução à aversão ao risco por meio da distribuição do risco entre os sócios de empreendimento (SILVEIRA et al., 1999).

Pode-se considerar que a forma associativa poderia desenvolver ações solidárias que contribuiriam para reduzir ou minimizar as desigualdades no interior do grupo, e para reduzir a insegurança alimentar que afeta as famílias de baixa renda, especialmente em áreas sujeitas a secas como o Nordeste brasileiro (BUAINAIN et al., 2002).

Teoricamente esta estrutura de governança produziria uma alocação eficiente dos recursos e estimularia atitudes positivas dos beneficiários que contribuiriam para a superação da pobreza e a sustentabilidade dos empreendimentos individuais e associativos. Todavia, o funcionamento dessa estrutura de governança enfrentaria um conjunto de problemas. Uma parte deles estariam relacionados ao processo de distribuição de ativos, como os três pontos a seguir.

Primeiro, o beneficiário pode desviar-se da qualidade de reclamante residual por sua elevada rejeição ao risco e por ter um nível de riqueza tão baixo, que nenhum projeto seria financiado. Essa situação, derivada das restrições impostas na prática pelos próprios executores do Programa Cédula da Terra com o objetivo de viabilizar o combate à pobreza, tornaria o processo de monitoramento dos pares, base do funcionamento da coletividade, excessivamente custoso. Este custo seria derivado do elevado risco de “desvio” por parte dos beneficiários, no que concerne à alocação do esforço responsável pelo ganho coletivo (HOMEM DE MELLO, 2000).

Como segundo ponto, o processo de negociação da terra, considerado a base do incentivo à ação sustentável dos projetos, pode ser afetado pela captura operada pelo

poder local (SILVEIRA et al., 2000). Quanto maior as quantias envolvidas e quanto mais intenso for o processo de desenvolvimento econômico em uma determinada região (em proporção ao produto bruto da economia local ou regional), maior o risco de captura do processo pelas elites locais. Seu predomínio pode inclusive inverter a sequencialidade esperada pelo programa. O vendedor daria início à transação, antes das associações, condicionando assim o processo de seleção, de compra e consequentemente, comprometendo a continuidade do processo de exploração produtiva do imóvel (SILVEIRA et al., 1999).

Por último, sustentabilidade dependeria das decisões de investimento comunitário e da articulação do programa com outras fontes de financiamento. A lógica associativa poderia criar um nexo coerente entre o processo de distribuição de riqueza, a formulação de projetos e o monitoramento comunitário que são a base de sustentação do programa.

Um contraponto em relação a esse último item, é que nos assentamentos originados a partir da desapropriação, a estrutura de governança alternativa, também opera no sentido de eliminar as restrições que o nível insuficiente de riqueza das famílias impõe para que se tornem reclamantes residuais plenos. A melhor estrutura de governança do Programa Cédula da Terra estaria então dependente de forma quase integral de sua capacidade de realizar um processo de seleção de ativos e de beneficiários, superior ao do modelo por desapropriação.

Condicionantes políticos

Para Navarro (2009) a complementariedade entre os mecanismos de acesso à terra não está nas condições técnicas, operacionais e administrativas de cada mecanismo, mas sim nas condições políticas para a execução de ambos. Os imóveis rurais sujeitos à expropriação são enquadrados sob as determinações legais do Estatuto da Terra, enquanto os imóveis que podem ser negociados sob o segundo mecanismo não sofrem muitas restrições.

Um dos problemas da desapropriação é que parte das determinações legais encontram-se desatualizadas pelo próprio desenvolvimento do desempenho na agricultura brasileira, em particular os índices de produtividade, referência operacional para o

enquadramento das terras no processo de desapropriação. Marques (2007) considera que o mecanismo de aquisição de terras no mercado ganha vez, dada a impossibilidade de desapropriação com base nos índices mínimos de produtividade. Mais do que um problema operacional, a desatualização dos índices mínimos de produtividade compromete o próprio cumprimento da função social da propriedade. Marques (2007), na mesma linha de outros autores, considera que o rito sumário de desapropriação contribui para a morosidade e a susceptibilidade dos processos à impugnações legais, promovendo como efeito colateral, a elevação dos custos do processo.

A justificativa do governo para a implantação dos programas para aquisição de terras por meio do mercado, para Sauer (2003) e Mattei (2003), era dar maior agilidade à realização da reforma agrária, com menor custo para os cofres públicos, sem conflitos sociais e disputas judiciais, além de servirem de instrumento auxiliar no combate à pobreza rural. Mattei (2003) considera que parte do problema está em considerar-se esse mecanismo como uma “nova reforma agrária”, transferindo-se à sociedade, o ônus de solucionar um problema histórico. Portanto, este mecanismo deveria ser considerado apenas como um instrumento de apoio à política agrária fundamentada nas desapropriações.

Pereira (2006) considera que os instrumentos de acesso à terra apoiado no mercado transportam uma agenda do Banco Mundial para a transformação do papel do Estado para as políticas de reforma agrária, a partir de quatro pontos: (i) a complementariedade entre Estado e mercado; (ii) o abandono da ideia de Estado mínimo em favor de um Estado eficaz; (iii) a centralidade das instituições e; (iv) o combate à pobreza.

O ponto comum para Sauer (2003), Pereira (2006), Mattei (2003) e Navarro (2009) é o questionamento sobre a capacidade de pagamento da dívida por agricultores familiares pobres, com inserção parcial no mercado. Ainda que as condições de financiamento fossem consideradas boas, os agricultores não teriam condições de liquidar sua dívidas, situação que pode ser considerada mais grave, quando leva-se em conta o baixo nível de rentabilidade dos produtos agropecuários, característica típica do setor.