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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 Tecnologia Apropriada: um ponto de partida para a tecnologia social

2.2.3 Marco analítico-conceitual da tecnologia social

2.2.3.3 Adequação sociotécnica

A Adequação Sociotécnica (AST) emerge nesse contexto como um conceito tributário de todas as abordagens até aqui discutidas, aportando-se ao marco analítico-conceitual da TS como uma dimensão processual, uma visão ideológica e um elemento de operacionalidade delas derivadas. Segundo Dagnino (2014) uma das origens do conceito de AST é a necessidade de criar um substrato cognitivo- tecnológico a partir do qual atividades não inseridas no circuito formal da economia poderão ganhar sustentabilidade e espaço crescente em relação às empresas convencionais.

O pressuposto básico do construtivismo social da tecnologia é a concepção de artefatos tecnológicos a partir de um processo de negociação entre grupos sociais

relevantes, com interesses e preferências distintos, que vão definindo suas características até chegar a uma situação de estabilização ou fechamento – o processo de Construção Sociotécnica. A AST, por sua vez, pode ser entendida como um processo inverso ao da construção, em que um artefato tecnológico sofreria um processo de adequação aos interesses políticos de grupos sociais distintos daqueles que o originaram. “(...) seria um guia para a desconstrução e posterior reconstrução (ou reprojetamento) de artefatos tecnológicos (...)” (NOVAES; DIAS, 2009, p. 44).

De fato, trata-se de uma ideia que se desenvolveu no contexto da necessidade de adaptação das TC oriundas dos países centrais às condições técnicas, sociais, econômicas e ambientais dos países periféricos que as recebem. Nesse sentido, visível se faz que a proposta da AST se opõe às visões deterministas que ora concebem a mudança social como um elemento que, por si só, leva a geração de uma tecnologia com ela compatível (determinismo social), ora idealizam que tecnologias com características definidas ex ante são capazes de promover, de per si, a mudança social (determinismo tecnológico).

No contexto da preocupação com a TS, Dagnino, Brandão e Novaes (2010) defendem que a AST teria por objetivo adequar a TC aplicando critérios suplementares aos técnico-econômicos usuais em processos de produção e circulação de bens e serviços em circuitos não-formais, destacando-se, além daqueles oriundos do movimento da TA, a participação democrática no processo de trabalho, o atendimento de requisitos relativos ao meio ambiente, à saúde dos trabalhadores e dos consumidores e à sua capacitação autogestionária. Assim, em última análise, a AST pode ser compreendida como

Um processo que busca promover uma adequação do conhecimento científico e tecnológico (esteja ele já incorporado em equipamentos, insumos ou formas de organização da produção, ou ainda sob a forma intangível e mesmo tácita) não apenas aos requisitos e finalidades de caráter técnico- econômico, como até agora tem sido o usual, mas ao conjunto de aspectos de natureza socioecômica e ambiental que constituem a relação CTS (DAGNINO; BRANDÃO; NOVAES, 2010, p. 100).

Nessa linha, a proposta da AST constitui-se numa ponte que estreitaria a relação entre os movimentos sociais e a comunidade de pesquisa e colocaria as demandas sociais como fonte primeira de questões para investigação científica, o que demandaria uma nova política de ciência e tecnologia na qual a participação social seria um elemento essencial. Com vistas a operacionalizar o conceito de AST, tendo

em vista tratar-se de um processo que abarca uma infinidade de situações, Dagnino, Brandão e Novaes (2010) cuidaram de definir um rol exemplificativo composto por sete modalidades de AST, das quais as três primeiras referem-se a mudanças de software e orgware e as demais a mudanças de hardware, conforme apresentado no quadro 9.

Quadro 9 - Modalidades de Adequação Sociotécnica

USO: o simples uso da tecnologia (máquinas, equipamentos, formas de organização do processo de trabalho etc.) antes empregada (no caso de cooperativas que sucederam a empresas falidas), ou a adoção de TC, com a condição de que se altere a forma como se reparte o excedente gerado, é percebido como suficiente.

APROPRIAÇÃO: concebida como um processo que tem como condição a propriedade coletiva dos meios de produção (máquinas, equipamentos), implica uma ampliação do conhecimento, por parte do trabalhador, dos aspectos produtivos (fases de produção, cadeia produtiva etc.), gerenciais e de concepção dos produtos e processo, sem que exista qualquer modificação no uso concreto que deles faz.

AJUSTE DO PROCESSO DE TRABALHO: implica a adaptação da organização do processo de trabalho à forma de propriedade coletiva dos meios de produção (preexistentes ou convencionais), o questionamento da divisão técnica do trabalho e a adoção progressiva do controle operário (autogestão).

REVITALIZAÇÃO OU REPOTENCIAMENTO DE MÁQUINAS E EQUIPAMENTOS: significa não só o aumento da vida útil das máquinas e equipamentos, mas também ajustes, recondicionamento e revitalização do maquinário. Supõe ainda a fertilização das tecnologias “antigas” com componentes novos.

ALTERNATIVAS TECNOLÓGICAS: implica a percepção de que as modalidades anteriores, inclusive a do ajuste do processo de trabalho, não são suficientes para dar conta das demandas por AST dos empreendimentos autogestionários, sendo necessário o emprego de tecnologias alternativas à convencional. A atividade decorrente dessa modalidade é a busca e a seleção de tecnologias existentes.

INCORPORAÇÃO DE CONHECIMENTO CIENTÍFICO-TECNOLÓGICO EXISTENTE: resulta do esgotamento do processo sistemático de busca de tecnologias alternativas e na percepção de que é necessária a in corporação à produção de conhecimento científico-tecnológico existente (intangível, não embutido nos meios de produção), ou o desenvolvimento, a partir dele, de novos processos produtivos ou meios de produção, para satisfazer as demandas por AST. Atividades associadas a essa modalidade são processos de inovação de tipo incremental, isolados ou em conjunto com centros de pesquisa e desenvolvimento (P&D) ou universidades.

INCORPORAÇÃO DE CONHECIMENTO CIENTÍFICO-TECNOLÓGICO NOVO: resulta do esgotamento do processo de inovação incremental em função da inexistência de conhecimento suscetível de ser incorporado a processos ou meios de produção para atender às de mandas por AST. Atividades associadas a essa modalidade são processos de inovação de tipo radical que tendem a demandar o concurso de centros de P&D ou universidades e que implicam a exploração da fronteira do conhecimento.

Fonte: Dagnino, Brandão e Novaes (2010, p. 102-103)

Nitidamente percebe-se que o conceito de AST permeia diversos outros conceitos, a exemplo do de inovação social, razão pela qual nos deteremos na

próxima seção à análise dessa relação com vistas a ofertar uma contribuição original no campo do marco analítico-conceitual da TS.