• Nenhum resultado encontrado

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 Tecnologia Apropriada: um ponto de partida para a tecnologia social

2.2.3 Marco analítico-conceitual da tecnologia social

2.2.3.1 Tecnologia social versus tecnologia convencional

Essa vertente parte do pressuposto de que as tecnologias convencionais ou capitalistas (TC), aquelas que são produzidas e utilizadas pelas empresas, são inadequadas para o propósito da inclusão social, principal objetivo da Tecnologia Social (TS). De fato, algumas características imanentes às TC possuem o condão de limitar sua eficácia para a inclusão social. Dagnino (2004; 2010b) mostra que, de modo geral, a TC pode ser definida a partir de um conjunto de características que a distingue da TS. O autor leciona que a TC: 1) é inerentemente poupadora de mão de obra; 2) é mais intensiva em insumos sintéticos do que seria conveniente; 3) possui escalas ótimas de produção sempre crescentes; 4) possui cadência de produção dada pelas máquinas; 5) é ambientalmente insustentável; 6) possui controles coercitivos que diminuem a produtividade.

A história da tecnologia e a história da produção do conhecimento mostram uma trajetória de economia do trabalho humano. O fato é que o lucro das empresas é inversamente proporcional à quantidade de mão de obra incorporada ao produto ou

do tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-lo, de modo que será considerada mais produtiva aquela empresa que consegue diminuir o denominador da fração produção por mão de obra ocupada, elevando, consequentemente, o indicador de produtividade.

O tempo de trabalho socialmente necessário para produzir um determinado bem equivale ao seu valor de troca que, por sua vez, é composto por três elementos que vão a ele se incorporando no decorrer do processo de trabalho: o valor do trabalho morto sobre o qual trabalha o produtor direto (meios de produção), o valor do trabalho vivo (salários) e o lucro apropriado pelo capitalista. Ao capitalista, enquanto proprietário dos meios de produção, é facultado o controle do processo de trabalho, podendo nele introduzir novas tecnologias de modo a apropriar-se de uma parcela maior do valor da mercadoria (DAGNINO, 2009).

O lucro corresponde ao excedente do tempo de trabalho necessário para remunerar o trabalho morto e o trabalho vivo, sendo considerado, segundo a visão da economia neoclássica, a remuneração ao capitalista pela sua capacidade de organizar a produção. Desse modo, tão maior será o lucro auferido quanto menor for o valor necessário para remunerar os meios de produção e o trabalhador direto. Ocorre que, via de regra, os custos de remuneração ao trabalhador direto mostram- se superiores ao custo de adoção das TC, ocasionando a substituição do trabalho humano pelo mecanizado e gerando processos de exclusão social.

Por outro lado, assevera Dagnino (2004; 2010b), a TC possui escalas ótimas de produção sempre crescentes, de forma que a cada nova safra a escala de produção é cada vez maior. Para ilustrar melhor essa situação o autor menciona que um empreendedor que deseje instalar, no estado da arte, uma fábrica de automóveis para produzir cinco unidades por semana, não irá encontrar tal tecnologia. Isso decorre do fato de que essa fábrica existia no início do século XX e atualmente, início do século XXI, não mais existe ou, se existe, não é mais a que se consideraria no estado da arte.

Assim, os pequenos empresários, aqueles que possuem uma menor disponibilidade de capital financeiro, sempre estarão em desvantagem com relação àqueles que dispõem de recursos suficientes para adquirir a última tecnologia, tornando o uso da TC quase um impedimento à sustentabilidade do pequeno empreendimento na medida em que compromete a sua competitividade. Tal insustentabilidade se potencializa por ser a TC intensiva em insumos sintéticos

produzidos por grandes empresas, submetendo o pequeno produtor a uma dependência muito grande.

O capitalismo também não considera os custos da deterioração ambiental em sua contabilidade, sendo o meio ambiente uma mera “externalidade”, de modo que as tecnologias que lhe dão suporte tornam-se, em regra, ambientalmente insustentáveis. Mais do que isso, a concepção ou projeto da tecnologia no capitalismo não considera uma série de parâmetros, pois

Não é só o meio ambiente que é reputado como “externalidade”. Obrigar o trabalhador a fazer durante 30 nos uma tarefa repetitiva e insalubre, condenar milhões de pessoas (...) ao desemprego, como não custa nada, não pode ser internalizado no cálculo técnico-econômico que as empresas usam para desenvolver tecnologia (DAGNINO, 2010b, p. 56).

Outra característica é que a cadência de produção da TC é dada pela máquina e não pelo produtor direto. Quando a propriedade do trabalho morto (meios de produção) é de um ator que não realiza diretamente a produção, ou seja, não é também o detentor do trabalho vivo, a produção será, invariavelmente, um resultado da combinação desses dois atores. No entanto, dentro de um sistema de produção capitalista há uma tendência natural (um valor imanente) de maximização dos lucros, geralmente obtido através da redução do tempo de trabalho necessário para obtenção de um determinado produto, o que implica, em regra, numa alteração na forma como se realiza o trabalho vivo ou na forma como se realizou o trabalho morto incorporado nos insumos e equipamentos utilizados no processo de produção.

Para Dagnino (2009b) essa redução pode ocorrer de duas formas: ou mediante um aumento da energia física ou mental do trabalhador direto durante o processo de produção do produto (intensificação do ritmo de trabalho) ou mediante a substituição de trabalho vivo por trabalho morto, ou seja, a utilização no processo de produção de meios de produção que tragam uma maior quantidade de trabalho morto. Em qualquer das formas, o ritmo de produção é determinado exclusivamente pela máquina. Disso decorre mais uma característica da TC: o controle coercitivo que diminui sua produtividade. Obviamente que atualmente essa coerção não mais ocorre de forma física como em outros tempos (regimes escravocratas), mas o capitalismo traz consigo a capacidade de incutir no trabalhador direto a consciência de que a forma como produz já não pode mais ser controlada por ele, submetendo-se a um controle externo.

A resistência da classe operária, muitas vezes explorada e submetida a um processo de trabalho que a penaliza, é algo natural e frequente ao longo da história, razão pela qual

(...) a tecnologia capitalista tem de incorporar controles coercitivos para evitar que esse boicote possa ser efetivado, e isso implica um custo de produção maior do que o que ocorreria se ela fosse adequada para a produção autogestionária (DAGNINO, 2010b, p. 56).

A elevação dos custos de produção decorrentes dos meios necessários para inibir o poder do trabalhador direto de rebelar-se contra o capitalista, o detentor do trabalho morto (meios de produção), implica em custos adicionais que resultam na elevação do denominador da fração que caracteriza o indicador de produtividade, representando, em termos práticos, a sua diminuição.

Ademais, a TC reúne características como: ser segmentada, não permitindo que o produtor direto exerça controle sobre a produção; ter como objetivo principal a maximização da produtividade, ainda que isso gere efeitos negativos sobre o nível de emprego; ser alienante, pois reprime a criatividade e potencialidade do produtor direto; possuir padrões orientados pelo mercado externo de alta renda; ser hierarquizada, pois exige que haja a posse privada dos meios de produção e o controle sobre o trabalho; ser monopolizada pelas grandes empresas dos países ricos; e impor padrões que são orientados pelos mercados de alta renda (DAGNINO, 2004; 2010; NOVAES; DIAS, 2009).

Levando-se em conta as considerações acima expostas, torna-se factível concluir que a TC pode ser vista como um elemento responsável pela gradual erosão da democracia. Isso se deve, sobretudo, ao fato de que os valores imanentes à TC reforçam a dualidade capitalista na medida em que submetem os trabalhadores diretos aos proprietários dos meios de produção, reforçando as já assimétricas relações de poder na sociedade.

Logo, por oposição ou negação dessas características, a TS caracteriza-se por: ser adaptada a pequenos produtores e consumidores de baixo poder econômico; não promover o tipo de controle capitalista, segmentar, hierarquizar e dominar os trabalhadores; ser orientada para a satisfação das necessidades humanas; incentivar o potencial e a criatividade do produtor direto e dos usuários; ser capaz de viabilizar economicamente empreendimentos como cooperativas populares, assentamentos de reforma agrária, a agricultura familiar e pequenas empresas. Além disso, a TS estaria

mais imbricada às realidades das comunidades locais, gerando respostas mais adequadas aos problemas inerentes a um determinado contexto (NOVAES; DIAS, 2009). Nesse sentido, uma síntese das principais características de ambos os tipos de tecnologia pode ser visualizada no quadro 8.

Quadro 8 - Características da Tecnologia Convencional e da Tecnologia Social

Tecnologia Convencional Tecnologia Social

Mais poupadora de mão de obra do que seria conveniente;

Ambientalmente insustentável;

Alienante, não utilizando o potencial do produtor direto;

Hierarquizada

Intensiva em insumos sintéticos produzidos por grandes empresas;

Possui padrões orientados pelo padrão externo de alta renda;

Segmentada, não permitindo controle do produtor direto;

Intensiva em capital;

Monopolizada pelas grandes empresas dos países ricos;

Intensiva em mão de obra; Ambientalmente amigável;

Liberadora do potencial e da criatividade do produtor direto;

Não hierarquizada;

Intensiva em recursos naturais locais; Orientada pelo mercado interno;

Não segmentada, valoriza a cultura e as potencialidades locais;

Baixo custo de implantação e manutenção;

Capaz de viabilizar economicamente

empreendimentos autogestionários e

pequenas empresas;

Fonte: Elaborado pelo autor com base na revisão de literatura

Diante do exposto, notável se faz a necessidade de reverter essa tendência imposta pela TC, essa lógica muitas vezes responsável pelo fomento das desigualdades em todos os níveis, da exclusão social e da precarização das relações de trabalho, através da produção de tecnologias com base na democracia e na participação, ampliando os conceitos de solidariedade, consciência comunitária, inclusão social e sustentabilidade sendo este o desafio da TS. O segundo ponto de reflexão para construção do marco analítico-conceitual da tecnologia social é a incorporação do marco analítico-conceitual de sua antecessora, a tecnologia apropriada.