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Antes de examinarmos o modo como a teoria do desenvolvimento de Jean Piaget concebe essa etapa evolutiva, faz-se necessária uma breve consideração sobre os limites entre o que se entende por puberdade e por adolescência. Para isso, recorreremos às raízes etimológicas dos dois termos. Ambos têm sua origem no latim (OSÓRIO, 1989), sendo que o primeiro - pubertate - significa exatamente sinal de pêlos, barba, penugem: o que expressa a dimensão biológica, das marcantes mudanças físicas ligadas principalmente aos caracteres sexuais e à formação de um corpo adulto capacitado para a reprodução. Mudanças que vão muito além das oscilações hormonais, provocando uma profunda reorganização do funcionamento cerebral (HERCULANO-HOUZEL, 2005). Já o segundo, tem sua origem em adolescere, que significa crescer: o que nos remete a uma visão bem mais abrangente quando se pensa na adolescência. Neste caso, o foco desloca-se do crescer biológico e incide sobre as complexas transformações psicossociais, acompanhadas por mudanças na organização mental e no próprio pensamento dos adolescentes (OSÓRIO, 1989; INHELDER, 1976). Se a primeira é universal, posto que intrínseca à espécie humana, a segunda se constitui em um “fato psicossociológico” (PALACIOS; OLIVA, 2004), sofrendo, portanto, necessariamente influência do contexto histórico-cultural.

Alguns autores, inclusive, questionam a idéia de que a adolescência corresponde a um período necessariamente de crise e turbulências emocionais intensas, fato esse que dependeria em grande parte dos contextos familiar e social em que se encontra o adolescente, sublinhando a dimensão intergeracional envolvida (PALACIOS; OLIVA, 2004; CAMPOS, 2006). Muito embora pesquisas nacionais sobre as concepções de professores e psicólogos a esse respeito indiquem o predomínio de uma visão individualista e pouco otimista, que identifica o adolescente enquanto rebelde, instável, agressivo, indisciplinado. Em número menor, verificaram a presença daqueles que reconhecem o papel fundamental da sociedade e da cultura nos modos como se desenrola e como é vivida essa etapa da vida, retirando o ônus exclusivo dos ombros dos adolescentes (OZELLA, 2003; COVAL, 2006).

Palacios e Oliva (2004) defendem a idéia da adolescência como uma transição evolutiva em relação à infância e à vida adulta, que inclui movimentos não apenas de ruptura, como por exemplo, em relação às mudanças físicas associadas à puberdade, mas também de continuidade, quanto a determinados traços de personalidade que já se achavam presentes de forma embrionária. Nos primeiros anos, as mudanças biológicas teriam uma influência maior, enquanto nos anos finais, as mudanças de caráter social se acentuariam. E também destacam que a adolescência engloba uma experiência pessoal e um fenômeno cultural, de maneira que “fatores tanto individuais como sociais podem produzir obstáculos nas trajetórias de alguns adolescentes” (PALACIOS; OLIVA, 2004, p. 314).

No livro “Da Lógica da criança à lógica do adolescente” escrito por Barbël Inhelder ([1955], 1976) em co-autoria com Piaget, os autores também distinguem os dois processos - puberdade e adolescência -, colocando ênfase na reestruturação da personalidade, constituída por uma tripla condição: intelectual, afetiva e social.

É preciso começar por eliminar um equívoco possível. Consideramos como característica fundamental da adolescência a integração do indivíduo na sociedade dos adultos. O critério da adolescência não deve ser dado,

portanto, pela puberdade. [...] Devendo-se lembrar que esta [referindo-se à integração na sociedade adulta] inclui uma reestruturação total da personalidade, na qual o aspecto intelectual acompanha ou complementa o aspecto afetivo. (INHELDER; PIAGET, 1976, p. 250)

A opção pelo termo reestruturação sinaliza que compreender a adolescência dentro desta perspectiva teórica significa considerá-la parte de um continuum, cujas aquisições específicas guardarão relação indissociável com as anteriores. Ou seja, que as estruturas cognitivas e afetivas características dos estádios anteriores, não desaparecem, mas, muito ao contrário, permanecem ativas e necessárias, complementando as múltiplas realizações e conquistas que virão. Distante da noção de crise, a teoria de Piaget analisa as mudanças qualitativas que tornarão possível aos adolescentes a construção de uma “nova forma de enfrentar cognitivamente as diversas tarefas e conteúdos que lhes são propostos” (PALACIOS; OLIVA, 2004, p. 313), lembrando que o desenvolvimento cognitivo se dá por uma combinação constante de movimentos de conservação e transformação, o que não poderia ser diferente nessa etapa da vida. Foi nesta perspectiva que desenvolvemos a presente tese, incluindo como tema essencial dentre tais tarefas e conteúdos propostos o fortalecimento de relações interindividuais fundamentadas na cooperação, o que demanda um enfrentamento tanto cognitivo como sócio-afetivo. Passemos, portanto, à apresentação das principais características da adolescência segundo a perspectiva piagetiana.

O período da adolescência, diferentemente do que pode parecer numa primeira aproximação das idéias piagetianas, não conclui o processo de desenvolvimento. Como pretendemos ilustrar nas próximas linhas, ela inaugura uma nova organização mental e afetiva que, embora corresponda ao último estádio proposto pelo autor, continuará sendo aperfeiçoada até o fim da vida.

A grande conquista cognitiva do adolescente é o pensamento formal, isto é, a capacidade de pensar por meio de hipóteses, utilizando deduções e projeções futuras, ferramentas de uma nova lógica, a lógica das proposições. Sua relação com o mundo concreto

e advindo das experiências sensoriais e objetivas ganhará uma complexidade e uma liberdade impossíveis até então, através de uma inversão essencial em que o real é colocado, como setor particular, no conjunto das combinações possíveis (INHELDER; PIAGET, 1976). Por mudanças gradativas, o adolescente desenvolverá recursos cognitivos e lógicos para compreender que ao invés de o “possível se manifestar simplesmente sob a forma de um prolongamento do real ou das ações executadas sobre a realidade, é, ao contrário, o real que se subordina ao possível.” (INHELDER; PIAGET, 1976, p. 189).

Amplia-se sua visão de mundo e sua condição de contribuir com ele, pois se torna capaz de pensar sobre seu próprio pensamento, um pensamento de segunda potência, o que é indispensável para a construção de qualquer teoria. O aparecimento das estruturas formais, bem como das estruturas dos estádios anteriores, não corresponde nem à emergência de formas inatas, nem à incorporação de representações coletivas pré-existentes, mas resultam de construções baseadas nos intercâmbios com o mundo físico e social.

Formas de equilíbrio que se impõem pouco a pouco ao sistema de intercâmbio entre os indivíduos e o meio físico, e ao dos intercâmbios entre os indivíduos - e esses dois sistemas constituem, aliás, apenas um, visto de duas perspectivas diferentes (distintos apenas para a análise). (INHELDER; PIAGET, 1976, p.252, grifo nosso)

E, considerando tais formas de equilíbrio enquanto os complexos processos de equilibração que descrevemos acima, a tarefa do adolescente é, sem dúvida, árdua e desafiadora.

As mudanças no plano cognitivo favorecem uma nova organização afetiva e de valores e um novo posicionamento do adolescente perante o grupo social. A reversibilidade cognitiva estende-se ao campo das relações interindividuais, na forma de relações de reciprocidade, causando, muitas vezes, turbulências. Isso porque, num primeiro momento, devido ao egocentrismo característico dessa fase (não mais ligado às ações como no período sensório- motor, mas às idéias), predomina uma postura de confronto com os valores da sociedade (e

seus representantes, como pais e professores) e tentativas de reformá-la. Este modo de pensar e agir, com seu colorido messiânico e prepotente, não deve ser qualificado por características negativas ou patológicas9, uma vez que, como assinalou Piaget, se justifica pela própria natureza do processo de desenvolvimento cognitivo.

A ampliação indefinida da reflexão que permite esse novo instrumento que é a lógica das proposições leva, inicialmente, e uma indiferenciação entre esse poder novo e imprevisto que o eu descobre e o universo social ou cósmico que é objeto dessa reflexão. Em outras palavras, o adolescente passa por uma fase que atribui um poder ilimitado ao seu pensamento. (INHELDER; PIAGET,1976, p.257, grifo nosso).

Nessa mesma direção, ao caracterizar o egocentrismo típico dessa fase, Elkind (1982) sublinha a indiferenciação entre aquilo que o adolescente pensa e os pensamentos alheios, o que sustenta sua crença em uma “audiência imaginária” e um exemplo característico são as reuniões entre os adolescentes “no sentido de que cada jovem é, simultaneamente, um ator para si mesmo e uma audiência para os demais” (ELKIND, 1982a, p. 107). Ao crer que os outros compartilham de suas idéias e sentimentos, pode tentar monopolizar as atenções ou tornar-se excessivamente suscetível à crítica alheia e a sentimentos de vergonha. Um aspecto importante desse movimento é que, no transcorrer da própria adolescência, as idéias que atribui aos outros passarão a ser tratadas como hipóteses a serem verificadas, aproximando-o de uma visão mais realista, diferenciada e integrada em relação a si mesmo, aos outros e ao mundo. O grupo de pares se constituirá como um lugar privilegiado de trocas cognitivas e afetivas, proporcionando ao adolescente o fortalecimento de idéias, valores e sentimentos

Para Inhelder e Piaget (1976), o principal fator que irá impulsionar a reaproximação necessária, trabalhosa e lenta, entre o pensamento e a experiência concreta será o trabalho. Através dele os ímpetos idealistas por reformas podem transformar-se em realizações criativas

9 Não desconsideramos que esse quadro pode se intensificar, levando a situações, de fato, patológicas. O que se

quis enfatizar, é que, dentro de certos limites (nem sempre facilmente definíveis) é esperado e, mesmo, necessário ao amadurecimento.

e úteis. “A metafísica própria ao adolescente, assim como suas paixões e megalomanias, são preparativos reais para a criação pessoal” (INHELDER; PIAGET, 1976, p.64).

Do ponto de vista do desenvolvimento afetivo, as importantes aquisições nessa fase - e que se desdobrarão indefinidamente, como já apontamos – concernem à consolidação dos afetos normativos (que já haviam lançado suas raízes em período anterior) e ao aparecimento de sentimentos relativos a ideais, extensivos às pessoas. No primeiro caso, o que se observa é uma presença maior e mais consistente de atos de vontade. Como agora tem ao seu alcance ferramentas para fazer hipótese e proposições, o adolescente possui mais argumentos para empreender as negociações internas em favor de objetivos menos imediatos, porém mais sólidos. Planejar um futuro profissional e pessoal, escolher uma carreira ou desenhar os contornos de uma vida afetiva adulta são situações que dependerão do quanto for capaz de abrir mão de gratificações imediatas, projetando-se confiante e persistentemente num projeto virtual. Ao enfrentar a tarefa de estabelecer um programa de vida para si, a relação não só com o trabalho, mas também com o grupo social será essencial para dar suporte real aos planos e idéias.

No segundo caso, dos sentimentos relativos a ideais, o que se observa é a possibilidade de refletir sobre conceitos inapreensíveis diretamente e que dependem de operações cognitivas e afetivas complexas: noções de justiça, ética, pátria, solidariedade ocupam pensamentos solitários e debates acalorados entre grupos de adolescentes. E, como insiste Piaget, essa vida social estimulará, precisamente, uma descentração que é também intelectual, além de moral: “é principalmente nas discussões com os colegas que o criador de teorias freqüentemente descobre, pela crítica às dos outros, a fragilidade das suas” (INHELDER; PIAGET, 1976, p. 257). Considerar a opinião do grupo não significa de modo algum mera repetição ou sujeição à opinião alheia (o que, no entanto, pode ocorrer), mas poder enriquecer-se de maneira autônoma e responsável. Aprofundaremos a questão das trocas

interindividuais no próximo item.

Concluindo, o adolescente caminha em direção ao estabelecimento de uma escala de valores formada por elementos de lógica e de afetividade normativa, e que dará fundamento às construções sociais, à elaboração de um plano de vida e à formação da personalidade.

A personalidade é o eu descentralizado. [...] É a submissão do eu a um ideal que encarna, mas que o ultrapassa e ao qual se subordina; é a adesão a uma escala de valores, não abstrata, mas relativa a uma obra; portanto, é a adoção de um papel social, mas não preparado como uma função administrativa, e sim de um papel que o indivíduo irá criar ao representar. (INHELDER; PIAGET, 1976, p.259, grifo nosso).

Os destaques neste último texto retomam uma das idéias centrais para a compreensão do desenvolvimento humano segundo Piaget - a autonomia - e que será aprofundada, junto a outros conceitos, na perspectiva das interações sociais.