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Desenvolvimento cognitivo e afetivo

Piaget [1964] (2003) descreve quatro estádios consecutivos do desenvolvimento cognitivo: sensório-motor, pré-operatório, operatório concreto e operatório formal. Pelo que se viu até aqui, o termo cognitivo não se restringe ao plano racional, mas tem uma acepção mais ampla, correspondendo a cognoscitivo, isto é, aos processos que envolvem o conhecimento. A cada estádio formam-se diferentes ferramentas mentais (estruturas), que se prolongam, integram e transformam, mantendo-se geneticamente inseparáveis e funcionalmente regidas pelo processo de equilibração majorante.

Quanto ao tema da afetividade, sabemos que não ocupou um lugar de destaque nos escritos de Piaget, e menos ainda, em seus experimentos. Mesmo assim, em diversas ocasiões não hesitou em afirmar que seu desenvolvimento é indissociável e corresponde ao da inteligência (PIAGET, [1954], 1994; 2003, 1976; e com INHELDER, [1976]; 1982). Piaget (2003) Assinala que a afetividade atribui valor às atividades e lhes regula a energia, enquanto que a inteligência lhes fornece meios e esclarece fins, concluindo que “a tendência mais profunda de toda a atividade humana é a marcha para o equilíbrio. E a razão - que exprime as formas superiores deste equilíbrio - reúne nela a inteligência e a afetividade” (PIAGET, 2003, p. 65).

Faremos uma breve síntese dos três primeiros estádios do desenvolvimento cognitivo, articulados às aquisições e características correspondentes no âmbito afetivo. O quarto estádio - operatório formal -, por relacionar-se com o momento da adolescência, será aprofundado em

(2001), traduzido do original da língua francesa stade para a língua espanhola como estadio. Além disso, há uma explicação do porque Piaget utilizava a palavra stade (estádio) e não Estágio como é frequentemente encontrada nas traduções dos textos de Piaget para a língua portuguesa. Segundo Macedo (2007) a escolha de Piaget pela palavra estádio para denominar as construções do desenvolvimento da criança “se refere ao espaço onde e ao tempo em que acontecem coisas importantes ao desenvolvimento de alguém ou de alguma coisa, ou ainda, o melhor do que podemos ser em um determinado momento de um processo”. Isto em oposição à palavra estágio que “caracteriza alguém por aquilo que ele não é que lhe falta ser”, portanto, “precisa de “aprendizado, exercício, prática”. (MACEDO, 2007).

um item específico, na sequência.

O estádio sensório-motor envolve os dois primeiros anosde vida7 e caracteriza-se por uma inteligência essencialmente prática, não verbal e não socializada. A criança, ou o bebê, relaciona-se com o mundo através dos órgãos dos sentidos e da motricidade, os quais se desenvolvem também em função dessa atividade. Através do contato com os objetos e pessoas e pelo exercício contínuo e crescente do próprio corpo formam-se os esquemas de ação, unidades elementares para o desenvolvimento do pensamento e da lógica. Nesse processo de percepção e conhecimento do mundo, a criança o organiza internamente, construindo pouco a pouco as categorias de objeto permanente, espaço, tempo e causalidade objetiva. Centrada em si mesma, presa ao momento presente e à ação orgânica, a criança neste estádio é mais do que nunca dependente do mundo que a cerca.

É no momento em que o sujeito está mais centrado em si próprio que ele menos se conhece; e é na medida em que ele se descobre que passa a situar- se em um universo e, por esse mesmo fato, o constitui. Por outras palavras, egocentrismo significa, simultaneamente, ausência de consciência de si e ausência de objetividade, ao passo que a posse do objeto como tal é paralela à aquisição da consciência de si. (PIAGET, [1963], 1975, p. 8).

O desenvolvimento, para Piaget, caminha no sentido do egocentrismo em direção à descentração (tanto no aspecto cognitivo, como afetivo e social), sendo que, a cada estádio, esse movimento adquire características específicas. Nesse primeiro momento, o bebê vive uma ausência de diferenciação entre o objeto e as impressões causadas por ele, de maneira que o grande salto em relação ao estádio seguinte será tornar-se capaz de “diferençar entre o objeto e a ‘experiência do objeto’” (ELKIND, 1982a, p. 90).

Do ponto de vista da afetividade, no período correspondente ao estádio sensório- motor, a criança é movida, inicialmente, por tendências instintivas inatas que correspondem às emoções básicas de medo, cólera e afeto. Aos poucos, pela diferenciação progressiva das

7 As idades mencionadas servem como referência, sem um apego rígido, pois, o que de fato importa são a

próprias necessidades e das formas de obter satisfação, surgem os afetos perceptivos. Como o nome sugere, relacionam-se às experiências de prazer e dor ligados às sensações e aos sentidos. Enquanto, no plano cognitivo, a criança constrói o real e se separa progressivamente do mundo que a cerca, ela se torna capaz de experimentar os afetos intencionais. Ou seja, torna-se apta para coordenar interesses diferenciados em relação a objetos e pessoas distintos, o que levou Piaget a referir-se a eles como os primeiros sentimentos interindividuais.

No plano cognitivo, ao mesmo tempo em que a criança adquire um maior controle e consciência dos movimentos corporais, de si mesma e dos objetos, ela desenvolve a linguagem, dando um passo definitivo rumo à socialização e ao estádio seguinte, o pré- operatório. A função simbólica permitirá que a criança se emancipe do momento presente, evocando objetos, pessoas e situações não apreensíveis pelos sentidos. Imitação, jogo simbólico e desenho são diferentes formas e igualmente importantes nesse processo de intensa diferenciação entre eu e o mundo.

Por sua própria diferenciação, a acomodação e a assimilação adquirem, portanto, o poder de integrarem-se em novos sistemas, mais complexos que as ações sensório-motoras e que se constroem pela extensão destas últimas ao domínio do imperceptível. (PIAGET, 1990, p. 352).

Amplia-se a possibilidade de representar os objetos e suas qualidades pela formação de imagens mentais e pelo pensamento, inicialmente, egocêntrico e intuitivo. Começa a ocorrer uma diferenciação entre o ponto de vista do sujeito, influenciado pela percepção e pela atividade sensório-motora, e as relações entre os objetos reais. A ação é interiorizada através de um pensamento que a representa, ainda que não reversível. No entanto, se por um lado, a capacidade de representação liberta a criança pequena do seu egocentrismo em relação aos objetos, por outro, ela se vê presa a um novo egocentrismo com respeito aos símbolos, numa dificuldade de diferenciação entre eles e aquilo que representam (ELKIND, 1982a).

No plano das relações interindividuais, a inteligência, apoiada na linguagem e na função simbólica, também expande enormemente as possibilidades de intercâmbios afetivos. Os afetos, agora denominados intuitivos (numa referência ao tipo de pensamento correspondente), adquirem certa estabilidade, não mais dependentes dos sentimentos experimentados nas situações imediatas, assim como a inteligência pôde se emancipar das ações práticas. Eles se associam aos primeiros valores subjetivos que definem simpatias e antipatias. Tais sentimentos espontâneos entre as pessoas nascem de uma troca cada vez mais rica de valores da mesma forma que, através da linguagem, ocorrem intercâmbios relativos a signos verbais. Esse movimento possibilitará a emergência dos sentimentos semi-normativos. Eles possuem essa condição intermediária, por se sustentarem em relações assimétricas, como no sentimento de respeito unilateral, reservado a pessoas mais velhas e/ou consideradas superiores a si. Neste tipo de respeito, combinam-se afeição e temor, formando a base para o sentimento de dever. Estas primeiras normas e sentimentos morais ainda não se generalizam, pois são vinculados a situações (ou pessoas) específicas.

A partir dos sete e oito anos, a construção da noção de reversibilidade formará a base para o estabelecimento da capacidade operatória que dá nome ao terceiro estádio: das operações concretas. As operações, portanto, consistem não apenas de ações interiorizadas, mas ações articuladas em sistemas fechados, com invariantes independentes das situações concretas que as geraram. São generalizáveis a situações análogas e permitem inversões. Os estados passam a ser concebidos como resultado de transformações, de maneira que o pensamento operatório concreto “se caracteriza por uma extensão do real na direção do virtual” (INHELDER, 1976, p. 187). Há um ganho inquestionável em relação aos estádios anteriores, porém o pensamento ainda não consegue operar por meio de hipóteses, uma vez que, do ponto de vista da forma persiste uma subordinação direta dos dados reais e do conteúdo, pois as operações concretas restringem-se a cada domínio específico: “é essa

ausência de diferenciação entre suposição e fato que constitui o egocentrismo do período operacional concreto” (ELKIND, 1982a, p. 94).

No terceiro estádio, que se estenderá até por volta dos sete até por volta dos onze anos, mais uma vez ficam claras as correspondências entre os avanços da inteligência e as transformações no plano afetivo. Assim como as operações mentais engendram a coordenação entre ações, conservam-se, são reversíveis e generalizáveis, da mesma forma o sujeito passa a contar com uma nova e poderosa aliada no exercício de sua afetividade: a vontade. Conceito nodal para Piaget, ela aparece quando há conflito entre tendências, consistindo o ato de vontade em fazer triunfar uma tendência superior e fraca sobre outra, inferior e forte, tal qual uma regulação a segunda potência.

A vontade é uma regulação de segundo grau, uma regulação das regulações, da mesma maneira que no plano intelectual a operação é uma ação sobre as ações. Em outras palavras, a expressão da vontade é a conservação dos valores e o ato de vontade consiste em subordinar a situação dada a uma escala permanente de valores. (PIAGET, 1994, p.277, tradução nossa)8

À medida que os valores ganham maior estabilidade, a reciprocidade - irmã gêmea da reversibilidade operatória - prepara o terreno sócio-afetivo para o estabelecimento de relações igualitárias, fundadas no respeito mútuo. A moralidade até então heterônoma posto que dependente de uma consciência externa caminha em direção à autonomia. Esta, vinculada à cooperação, criará condições para uma forma de equilíbrio superior à moral da simples submissão, característica do período anterior.

Concluindo, o desenvolvimento da afetividade pressupõe, tal como o da inteligência, reorganizações sucessivas, que ganham em qualidade e extensão e possibilitam, acima de tudo, uma qualidade de descentração cada vez melhor. Não há dúvida que os diferentes afetos

8La voluntad es una regulación de segundo grado, una regulación de regulaciones, de la misma manera que en el

plano intelectual la operación es una acción sobre las acciones. En otras palabras, la expresión de la vonluntad es la conservación de los valores y el acto de voluntad consiste en subordinar la situación dada a una escala permanente de valores. (PIAGET, 1994, p.277)

(emoções básicas, afetos perceptivos, intuitivos, intencionais e normativos) tornam-se sucessivamente mais complexos e abrangentes. O pensamento formal, característica do quarto estádio do desenvolvimento cognitivo que se inicia a partir de 11 ou 12 anos, considerará a virtualidade, a incompletude e a combinatória das relações lógicas, encontrando correlatos no plano dos afetos e das relações sociais. É precisamente na adolescência que essas mudanças decisivas ganharão força.