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Vimos algumas linhas atrás, que com o aumento da socialização, a regra torna-se obrigatória à consciência, decorrendo, daí, o sentimento de respeito. Inicialmente, em função do próprio egocentrismo de que falamos, ela é considerada imutável e exterior ao sujeito (criança), o que corresponde a uma condição de heteronomia. Pela ausência de reversibilidade ao pensamento, e, portanto, de reciprocidade às relações, não há questionamento ou argumentação quanto às normas ou regras, apenas aceitação e submissão. O respeito, nesse

caso, é vivido unilateralmente e assimetricamente, de modo que as crianças reconhecem o dever de obedecer aos pais e aos mais velhos, o que não é diretamente extensivo às relações com seus pares. Atributos como a autoridade e o prestígio (dos pais e outros adultos com quem convivem), alimentam relações de coação. Embora compatíveis com determinado nível de desenvolvimento da inteligência e afetividade, permanecer circunscrito a esse tipo de relação traz sérios prejuízos ao progresso intelectual e ao estabelecimento de relações democráticas (metas tão caras aos princípios piagetianos).

Não somente a coação leva ao empobrecimento das relações sociais, fazendo com que na prática tanto o coagido quanto o autor da coação permaneçam isolados, cada um no seu respectivo ponto de vista, mas também ela representa um freio ao desenvolvimento da inteligência. (LA TAILLE, 1992, p. 19, grifo do autor)

Em outras palavras, tal evolução ocorre por uma necessidade endógena de equilibração majorante do próprio sistema cognitivo (por uma questão genética), muito embora, como se verá adiante, traga benefícios inegáveis à sociedade e, inclusive - o que vai ao encontro de nossa pesquisa - possa ser valorizada e estimulada em contextos coletivos.

O pensar da criança ao tornar-se operatório, se expande, se relativiza e amplia o universo das suas generalizações, ganha poder e autonomia: o pensamento formal da adolescência, como vimos, alcança a esfera dos ideais e do futuro. Mudanças correspondentes acontecem no plano afetivo (incremento da vontade e hierarquização de valores), incidindo sobre a esfera coletiva. O sentido e a imutabilidade das regras são questionados e a decisão de aceitá-las, ou não, também. Submeter-se a elas passará a ser uma questão de um querer autônomo (auxiliado, ou não, pela força de vontade): torna-se uma questão ética. Não se trata, no entanto, de ser livre para agir de qualquer maneira, mas de aceitar limites (assim como a lógica permanecerá vinculada à coerência): o que seria um retrocesso à posição egocêntrica. Como bem sintetiza La Taille (1992, p. 17): “longe de significar isolamento e impermeabilidade às idéias presentes na cultura, autonomia significa ser capaz de se situar

competentemente na rede de diversos pontos de vista e conflitos presentes na sociedade”. Por pressão da conquista da reciprocidade, o respeito passa a ser vivido enquanto obrigação mútua, condição para a idéia de justiça e para relações de cooperação. Esta última tem importância capital na teoria de Piaget e, em nossa pesquisa, constituiu um dos elementos essenciais para análise dos dados.

Iniciemos destacando dois pequenos trechos de Piaget (1994) sobre cooperação, feitos no mesmo livro sobre o juízo moral. À página 83, destaca que “podemos dizer que o respeito mútuo ou a cooperação nunca se verificam completamente. São formas de equilíbrio não só limitadas, mas ideais”. Enquanto na página 85, afirma: “podemos dizer que, sendo a cooperação um método, não vemos como se constituiria senão pelo seu próprio exercício”. Embora pareçam à primeira vista contraditórias, tratam de dois aspectos essências para compreensão deste termo. Para facilitar a compreensão do que diz o autor, recorreremos a duas outras referências sobre a mesma questão. Montangero e Maurice-Naville (1998) observam “pode-se distinguir a cooperação como fato empírico da cooperação ideal que constitui um fato normativo” (MONTANGERO; MAURICE-NAVILLE, 1998, p.123). E, na mesma direção, esclarece Macedo (2007) que “a cooperação é, ao mesmo tempo, um método e um princípio” (2007).

Na seqüência da exposição que vínhamos fazendo, a cooperação aproximava-se da idéia de uma forma de equilíbrio, um fato normativo, um princípio. Isto é, como uma meta para qual se dirige o desenvolvimento humano, na sua concepção mais ampla, e não apenas cognitiva. Sintetiza, portanto, tudo o que foi explorado nos capítulos anteriores: o significado de inteligência, associado aos processos de equilibração, que evolui através de integrações e superações, dialeticamente, abrindo-se a todos os possíveis (donde o caráter ‘ideal’ da cooperação). No caso da investigação a que se vincula esta tese, este ângulo de abordagem da

cooperação não foi objeto direto de estudo12. Esteve virtualmente presente, enquanto nossa intenção e inspiração, e não pretendíamos, nem seria possível, alcançá-la plenamente. A segunda perspectiva sobre a cooperação nos aproximará do contexto da nossa pesquisa.

A cooperação é, também, um método e um fato empírico. O que isso quer dizer? Que, além de alimentar nossas expectativas e ideais, ela se torna presente, se realiza, nas ações e nos procedimentos de colocamos em prática. Desde os primeiros meses, podemos dizer, por exemplo, que as diferentes partes do corpo de qualquer bebê precisam desenvolver coordenação entre si, num nível embrionário de cooperação, para que a locomoção (seja de gatinhas, seja nos dois pés) tenha êxito. No plano social, ainda mais complexo, para que uma conversa aconteça é necessário que as duas pessoas cooperem (operem junto): aguardem o tempo da fala de cada um, utilizem palavras com significados comuns, compartilhem da intenção, do interesse e da vontade de dialogar. Durante um jogo, como o futebol, quantos inúmeros exemplos, da sua presença ou ausência, podem ser extraídos! Na linguagem popular, há expressões que remetem exatamente à idéia de método: o jogador individualista que só pensa em ser ele a fazer o gol, em ser o artilheiro, menosprezando o contexto de grupo... Não por acaso, assim como outros, o futebol integra os esportes coletivos. São três pequenos exemplos de como a cooperação pode ser observada empiricamente, pois envolve resultados reais. Sob esse ângulo, constata-se que ela é construída de maneira indissociável e complementar às condutas anteriores (egocentrismo e coação, por exemplo).

O respeito mútuo e a cooperação são intimamente relacionados, de modo que só é possível cooperar se houver consideração pelo outro. Numa visão sistêmica, significa ter em conta que todas as partes envolvidas (onde, do ponto de vista do pensamento formal, se inclui virtualmente toda a humanidade) são igualmente importantes, desaprovando-se situações de humilhação, discriminação, preconceito.

12 Um exemplo, certamente interessante, mas diferente do nosso, seria um estudo focado nas representações dos

A cooperação, fundada na igualdade, é uma forma ideal de relações entre indivíduos. Ela implica o respeito mútuo, o princípio de reciprocidade e a liberdade ou autonomia de pessoas em interação. Piaget valoriza a cooperação porque se trata de uma forma de equilíbrio nas trocas, e da forma superior de equilíbrio onde o todo e as partes conservam-se mutuamente (sem que um domine em detrimento do outro). (MONTANGERO; MAURICE-NAVILLE, 1998, p. 122, grifo nosso) Nesta tese, o estabelecimento de relações cooperativas entre os adolescentes constituiu uma referência importante para a análise das situações observadas nas oficinas de jogos: tanto na perspectiva das intervenções da pesquisadora, como no das interações entre os adolescentes.

Passaremos a um último recorte relativo às idéias de Piaget, em que a cooperação é retomada no contexto das relações pedagógicas, um universo pouco explorado, mas nem por isso negligenciado por ele.

Mencionamos na Introdução que, em um texto menos conhecido dentro de sua vasta produção, Piaget ([1935], 1998b) argumenta em favor da técnica de trabalho por grupos (ou “equipes”). Afirma que ela se desenvolvia visivelmente àquela época, por uma conjunção de fatores sociológicos (por exemplo, pela importância crescente dada ao fator coletivo em diferentes ideologias políticas) e psicológicos. É sobre estes últimos, relativos ao desenvolvimento infantil, que articula suas idéias.

Em oposição à escola tradicional, baseada em “povoar a memória e treinar o aluno na ginástica intelectual” (PIAGET, 1998b, p.138), na qual o mestre detém o conhecimento ao qual a criança deve se submeter, o autor defende uma escola em que a criança seja ativa e incentivada a conhecer o mundo através do desenvolvimento de seus próprios recursos. Sua tarefa, neste caso, é totalmente outra. Se naquela as relações baseiam-se na heteronomia e os contatos entre os alunos são desprezados, pois implicariam em perda de tempo e outros prejuízos, nesta, o objetivo é a construção da autonomia intelectual, baseada em um pensamento crítico e investigativo e em relações de intercâmbio e cooperação entre os

colegas.

A necessidade de provas e de verificação, a objetividade da observação e da experiência, a coerência formal das afirmações e dos raciocínios, em suma, a disciplina experimental e dedutiva, são ideais que a criança tem de adquirir, pois não os possui de antemão. (PIAGET, 1998b, p.139)

Insiste que o desenvolvimento da razão e o da cooperação social andam juntos, pois para uma como para outra o ponto de vista e o desejo pessoal, até então considerados como absolutos, devem ser relativizados, confrontados e coordenados com os dos outros. Muitas das idéias que fundamentam este texto já foram tratadas por nós em capítulos anteriores. O que nos pareceu importante destacar é a dimensão de aprendizagem que está em jogo, embora o autor não a tenha explicitado em nenhum momento. Argumentando a favor do grupo como facilitador da aprendizagem cognitiva e social, funcionando ao mesmo tempo como estímulo e órgão de controle. Os conflitos de opiniões e os erros tornam-se situações favoráveis à tomada de consciência, ao progresso cognitivo, ao crescimento, enfim. Pois, como afirma Piaget, “pode-se por tanto dizer, a nosso ver, que a cooperação é efetivamente criadora ou, o que dá na mesma, que ela constitui a condição indispensável para a constituição da plena razão” (PIAGET, [1935], 1998b, p. 144, grifo nosso).

Para finalizar o tratamento do tema da cooperação, recorreremos ao texto, “Observações psicológicas sobre o self-government”13 (PIAGET, 1998a), em que o autor analisa as relações escolares sob o triplo ponto de vista: do egocentrismo dos indivíduos, da coerção dos mais velhos e da cooperação entre iguais. Embora retome elementos já abordados aqui, ele acrescenta aspectos que nos interessam destacar, relativos a alguns tipos de deformações que podem ocorrer no desenvolvimento de relações responsáveis, solidárias e cooperativas. No campo social, a pressão do grupo pode prevalecer sobre a cooperação, tornando a criança ou o adolescente dependente do adulto e submetido a uma disciplina

imposta por eles. Ou então, pode ocorrer uma afirmação excessiva do indivíduo, rompendo o equilíbrio necessário a ela. No campo da educação intelectual, o desenvolvimento do respeito mútuo favorece a compressão recíproca e a discussão objetiva e, neste caso, duas deformações possíveis são a tagarelice e a primazia da palavra sobre a ação. Diante desse quadro, longe de desanimar ou retroceder na sua defesa dos benefícios de um ambiente cooperativo e auto- regulado, Piaget evoca o valor do exercício e da repetição cotidiana como instrumentos fundamentais para “uma preparação para a vida de cidadão, tanto melhor quanto mais o

exercício concreto e a experiência mesma da vida cívica substitua a aula teórica e verbal”

(PIAGET, 1998b, p. 128, grifo nosso).

Finalizando, Piaget (1998a, 1998b) destaca novamente, nestes dois últimos textos, o paralelo entre as aquisições de ordem cognitiva e sócio-afetiva na realização de tarefas coletivas. De modo que o equilíbrio entre o trabalho pessoal e o controle mútuo, próprio dos grupos de trabalho, é o meio mais propício para o estabelecimento de outro equilíbrio, que caracteriza o desenvolvimento da razão infantil. Na época em que foram escritos, na década de 1930, a noção de equilibração majorante ainda não fora aprofundada e ampliada da forma como expusemos anteriormente. Sendo assim, entendemos que a ênfase progressivamente direcionada para o entendimento da equilibração cognitiva como um processo de articulação entre conservação e transformação e de coordenação entre compensações e construções também pode ser estendida à forma de equilíbrio que Piaget atribui ao trabalho em grupo.

Consideramos que um processo de oficinas de jogos, como será descrito nos capítulos relativos aos Fundamentos metodológicos e ao Método, constitui um ambiente propiciador do exercício de relações cooperativas, compreendidas na perspectiva da equilibração majorante e do aperfeiçoamento pessoal.

4 FUNDAMENTAÇÃO METODOLÓGICA

Neste capítulo, apresentamos os fundamentos metodológicos do presente trabalho divididos em duas partes. Na primeira, caracteriza-se a pesquisa qualitativa, inspirada em uma perspectiva epistemológica construtivista. Na segunda, apresentam-se as referências do trabalho com oficinas de jogos, desenvolvido no Laboratório de Psicopedagogia do Instituto de Psicologia da USP.