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8.1 Intervenções da Pesquisadora

8.1.2 Promover atitudes favoráveis à cooperação

8.1.2.1 Descentração

8.1.2.1.2 Frente ao outro

Em uma situação grupal, desenvolver a capacidade de descentração no contexto das interações com os outros, sejam colegas ou profissionais que conduzem as atividades51, configura uma condição fundamental para a construção da cooperação. Como vimos na fundamentação teórica, Piaget (1996, 1998a, 1998b) destaca o valor das trocas e do trabalho em grupo para o desenvolvimento intelectual, moral e afetivo, aspectos essenciais do trabalho com oficinas de jogos. Uma condição para isso consiste de tornar-se capaz de perceber e ouvir o outro, articulando progressivamente movimentos de diferenciação e integração. A seguir, serão comentadas cinco intervenções da pesquisadora visando promover tal atitude.

A primeira cena ilustra uma situação na qual o grupo reage sem se envolver com um problema formulado por alguns de seus membros. Verifica-se um pedido explícito de três adolescentes para que os colegas lhes explicassem um jogo, o qual é desconsiderado pelos outros que permanecem centrados em seus próprios interesses, apoiados em uma postura não colaborativa. A pesquisadora intervém no sentido de, inicialmente, observar a reação do grupo e, em seguida, destacar o pedido e implicar diretamente o grupo, o que mobiliza um adolescente a auxiliar os colegas.

- Excerto 30:

Danilo, Lia e Rafael faltaram na oficina anterior e não conheciam o jogo (Can-Can). Perguntam como ele funciona, mas o grupo responde que eles aprenderiam jogando, sem muita paciência para incluí-los. Eles insistem que não conhecem as regras, mas o grupo parece ignorar o que dizem e os três ficam ‘boiando’.

P1, depois de esperar alguns minutos a reação do grupo, pergunta como poderiam resolver essa questão colocada por Lia e Júlio se oferece para explicar as regras. (RO. 4)

Outro tipo de situação que expressa falta de descentração perante o outro ocorre quando não se examina, ou não se valoriza uma sugestão dada por um colega. No trecho seguinte, Júlio demonstrava dificuldade de realizar a tarefa de Construção do Jogo Quarto. Sua colega de mesa Lia tenta ajudá-lo, mas ele não considera sua atitude. Após observar o desenrolar da situação, a pesquisadora intervém destacando o movimento positivo da adolescente. Na sequência, Júlio mostra uma mudança em sua postura, mais centrado e receptivo.

- Excerto 31:

Lia mantém-se concentrada e envolvida com a tarefa da construção do jogo quarto. Ela está sentada na mesma mesa que Júlio, que demonstra mais dificuldade de entender.

P1 está próxima da mesa, observando a dupla, e Lia tenta sugerir para Júlio um modo de riscar as peças, mas ele não dá atenção.

P1 reforça o que Lia havia dito: "Júlio, você percebeu que a Lia te deu uma idéia boa para conseguir riscar as peças?"

Júlio reclama: "Mas eu não consigo!"

Lia, já com certa impaciência: "Ô, Júlio, assim não dá, né? Você tem que se esforçar!" Júlio, tentando se concentrar: "Tá bom, vai, me explica de novo […]

E observa como Lia risca as peças. (R.O 4)

Em vários momentos os adolescentes demonstraram dificuldade de escuta e de atenção ao outro, numa atitude predominantemente egocêntrica (de falar) e pouco descentrada (de

ouvir). Selecionamos uma cena em que o comentário de um dos adolescentes (Amanda) incide exatamente sobre essa questão, provocando reações diversas. A pesquisadora intervém no sentido de destacar e valorizar a percepção que parecia pertinente e implicar o restante dos colegas. O riso de alguns parece indicar que eles se reconheceram na situação e a atitude de Robson reforça esta percepção, da necessidade de mudança na atitude do grupo.

- Excerto 32:

Após assistirem a trechos da filmagem da oficina anterior, P1 estimula o grupo para comentar o que acharam do que viram.

Amanda, que não estava na oficina filmada, desabafa: "Gente! Que confusão, vocês falam demais! Não dá para ninguém se ouvir!"

Júlio ri e fala: "Deu para ouvir, sim! […] (claramente provocando a colega). Amanda: Nada a ver Júlio, tava muito confuso.

Danilo e Vítor concordam: "É, tava".

P1: "Parece que a maioria percebeu que o grupo precisa se ouvir mais, que todo mundo só quer falar, né?" Vários parecem concordar com a colocação, rindo (Júlio, Danilo, Vítor, Robson).

Robson comenta: "Vamos, aí, pessoal, vamos ficar quietos!" (RO. 6)

No próximo trecho, o mesmo tema da dificuldade de ouvir o outro é colocado pela pesquisadora, que busca ajudar o grupo a identificar uma situação concreta que acabara de ocorrer. Novamente é Robson quem assume o papel de tentar mobilizar o grupo para uma mudança de atitude.

-Excerto 33:

P1 é interrompida várias vezes por Fernando e ela fala para ele esperar um pouco e aproveita para mostrar a situação do grupo: "como é difícil eles ouvirem".

P1: "Pessoal, às vezes para eu falar uma frase, demora 2, 3 minutos, até todos ouvirem […] É muito barulho, muita agitação, não?"

ouvir a Heloisa!"

E o grupo fica um pouco mais calmo. (RO. 10)

A última situação de intervenção da pesquisadora ilustra mais um aspecto do desenvolvimento de uma atitude descentrada frente ao outro: a necessidade de se expressar perante ele. Ela é protagonizada por Júlio, que durante a proposta de modalidade do Jogo da Onça entre equipes, apresenta bastante dificuldade de se comunicar com os colegas e coordenar sua ação com as dos demais, gerando reclamações de um deles (Robson). A pesquisadora intervém destacando esse comentário, sem, contudo, provocar mudança em Júlio. Na sequência, ela faz uma nova intervenção buscando diferenciar aspectos da situação com o adolescente, tentando, novamente sem êxito, evitar sua saída do jogo. No final, P1 aproveita a situação para fazer um contraponto, valorizando e identificando com o grupo que, no caso da outra equipe, houve uma postura de receptividade (descentração) e colaboração, influenciando sua vitória. Embora não se tenha verificado uma mudança na atitude de Júlio durante o jogo, o fato de ter ido conversar com a auxiliar de pesquisa no final indica que ele foi receptivo às intervenções, o que consideramos um passo importante em direção a uma mudança efetiva.

- Excerto 34:

Na segunda partida do Jogo da Onça entre as equipes, Robson reclama algumas vezes para Júlio, que movimentara as peças sem consultar os colegas de equipe: "Meu, você não devia ter feito assim! Tem que falar antes com a gente!" Ele parece perder a paciência diante da persistência de Júlio, que não parece escutar o que o colega de equipe diz.

P1 retoma o que Robson dissera: "Júlio, você ouviu o que o Robson disse para você? Que tem que conversar sobre as jogadas com a equipe".

O jogo prossegue. Júlio fica emburrado e afasta o tabuleiro de si, dizendo Então, tá. Vocês é que sabem.

P1 intervém: "Mas Júlio, você não precisa parar de jogar […] O que falta é vocês se organizarem melhor como equipe e tentarem se comunicar".

Júlio se afasta da mesa, abandonando o jogo, mas mantém-se ligado à atividade e chama a atenção de P1 perguntando sobre as regras do jogo que jogariam na seqüência (Pingo no ‘i’): "Heloisa, esse jogo tem que formar palavras com as cartas, não é?"

P1: "É, Júlio. Mas agora nós estamos terminando esse jogo. Vem para cá!"

Júlio continua distante da mesa, falando e não se integra no grupo. Ao final do jogo, a equipe de Carlos, Vítor e Roberto vence.

P1 comenta: "Parabéns prá essa equipe! Vocês conseguiram trabalhar juntos, conversaram entre si, o que ajudou a vencerem".

O Vítor foi o que manteve a maior concentração do começa ao fim. Vítor agradece, fazendo uma reverência, com humor mais satisfeito com o comentário. No final da oficina, Júlio vai falar em tom queixoso com P2, dizendo que ele acha difícil falar sobre as jogadas. Ela retoma com ele que isso é um aprendizado mesmo, mas que era importante insistir, tentar e não desistir e abandonar a situação como ele fez. Ele se despede e sai pensativo. (RO. 20)

A seguir, apresentamos um quadro que sintetiza os temas das situações analisadas relacionadas à promoção de atitude de descentração.

Situações em que ocorreram intervenções visando à Descentração

Frente às propostas Frente ao outro

- Apreensão superficial da proposta - Resistência a aspecto secundário - Resistência a aspecto principal - Reação negativa superficial

- Não envolvimento com problema alheio - Não consideração da sugestão alheia - Falar muito e ouvir pouco

- Dificuldade de se expressar para o outro

Quadro 5: Lista de situações relacionadas a atitudes de Descentração Fonte: Dados da pesquisa