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Importância das interações sociais

Como dissemos, a teoria de Piaget é uma teoria interacionista, isto é, fala de um sujeito que conhece mediado por constantes trocas com a realidade, e ao interagir com ela, torna-se capaz de conhecer cada vez mais e melhor.

O que significa interação? Por que uma teoria é interacionista? No caso da teoria de Piaget, isso decorre de sua visão de que conhecimento e vida só se realizam na dialética de suas conservações e transformações, em contextos de troca, em que elementos do “exterior” e do “interior” complementarmente são necessários ao sujeito que conhece e vive. (MACEDO, 2009b, p. 46, grifo nosso).

Dentre tais contextos de troca, o próprio Piaget afirma que as interações sociais desempenham um papel cada vez maior no curso do desenvolvimento humano. Em um texto direcionado ao exame de questões sociais e políticas mais amplas, como o direito a uma

educação pautada em princípios democráticos, ele sublinha essa questão.

O desenvolvimento do ser humano está subordinado a dois grupos de fatores: os fatores de hereditariedade e adaptação biológicas, dos quais depende a evolução do sistema nervoso e dos mecanismos psíquicos elementares, e os fatores de transmissão ou de interação sociais, que intervêm desde o berço e desempenham um papel de progressiva importância, durante todo o crescimento, na constituição dos comportamentos e da vida mental. Falar de um direito à educação é, pois, em primeiro lugar, reconhecer o papel indispensável dos fatores sociais na própria formação do indivíduo. (PIAGET, [1972], 1998c, p.29, grifo nosso). Sem definir estádios específicos ao tema das interações sociais10, mesmo assim é possível destacar momentos sucessivos e interdependentes neste campo, num percurso que caminha do egocentrismo a uma progressiva descentração e diferenciação em relação ao outro. Retomaremos brevemente alguns elementos do desenvolvimento cognitivo e afetivo, agora através desse novo recorte.

Nos primeiros dois anos, a inteligência é essencialmente individual, o sujeito - acriança - age centrado, preso, à atividade própria. Vive, ao mesmo tempo, numa fusão ou indiferenciação em relação à realidade (tanto física como social), incapaz de perceber tanto a si mesmo como ao outro. Observa Piaget ([1963], 1975): “a idade em que a criança é mais egocêntrica é também aquela em que ela mais imita, sendo o egocentrismo a indiferenciação do eu e do grupo ou a confusão do ponto de vista próprio com o dos outros” (PIAGET, 1975, p. 368, grifo nosso). Para ilustrar essa condição, o autor cria uma imagem peculiar, utilizando uma figura mitológica conhecida, e define esse momento como um narcisismo sem Narciso11 (PIAGET, 1994).

Durante o período pré-operatório, com o incremento de experiências físicas e sociais, a descentração se tornará imperiosa tanto ao pensamento, quanto às relações humanas. Como

10 A razão disso talvez seja ligada à dupla acepção do termo cooperação, que será discutida adiante.

11

Na Mitologia Grega, o belo Narciso é condenado a viver preso à sua própria imagem refletida num lago após desprezar o amor da ninfa Eco. Freud utiliza esse mito para ilustrar um momento do desenvolvimento psicossexual no qual a criança tem a si própria como objeto de amor. Piaget (2001; 2003) recorre ao mesmo tema, porém, no sentido sugerido em nosso texto, para enfatizar que o sujeito - a criança - vive uma indiferenciação com o mundo real, não tendo consciência de si.

não possui a propriedade de reversibilidade, o pensamento egocêntrico torna impossível um verdadeiro diálogo, pois cada sujeito se remete a uma referência própria, incapaz de trocar de ponto de vista com seus pares, constituindo o que o autor chama de monólogos coletivos (PIAGET, 2003). Numa situação de jogo, por exemplo, é perfeitamente aceitável para crianças desta faixa etária que haja vários ganhadores, sem a obrigatoriedade de uma hierarquia consensual. Além disso, como as idéias e conceitos ainda não se conservam, as opiniões afirmadas e defendidas num instante, podem ser facilmente modificadas e mesmo substituídas pelo seu inverso, sem que se perceba ou se cobre coerência, tanto de si mesmo, como dos outros. E a adesão a signos comuns será fundamental para que haja compreensão e trocas efetivas.

Assim, com o desenvolvimento da capacidade operatória, da conservação e da reversibilidade, os pensamentos, conceitos e valores ganharão estabilidade e coordenações entre si. No plano afetivo e social, torna-se possível a construção de uma escala de valores compartilháveis e o estabelecimento de relações de reciprocidade, mais justas e cooperativas. A adolescência, portanto, se constitui no período por excelência em que ocorre esta mudança de referência.

O movimento evolutivo vai da adaptação da realidade ao “eu”, do início da adolescência, para a adaptação do “eu” à realidade da vida adulta. Assim sendo, a formação da personalidade supõe, para Piaget, a subordinação a um ideal coletivo. (DE SOUZA, 2003, p.67)

Elkind (1982a) assinala outro desdobramento das mudanças cognitivas da adolescência, que refletirão no modo como se relaciona com os outros. Ao se dar conta do caráter privado dos próprios pensamentos, percebe que pode dizer coisas, exprimir opiniões, que são diametralmente opostas aos seus pensamentos. E, da mesma forma que na relação entre fala e pensamento, é comum observarmos o adolescente fazer uma defesa inflamada de idéias e ideais, em sua maioria contrários à realidade, enquanto as atitudes nem sempre a

acompanham.

Piaget também analisa as interações entre os indivíduos e suas relações com a aquisição do pensamento lógico em um texto curto, embora denso, “As operações lógicas e a vida social” (PIAGET, 1973). A idéia central consiste que os progressos da lógica e da socialização (em direção à cooperação) constituem dois aspectos indissociáveis de uma única e só realidade, ao mesmo tempo social e individual. Como exemplo, afirma que ao se tornar capaz de discutir, ou seja, de expor ordenadamente e de modo compreensível seu argumentos a um interlocutor, o indivíduo também desenvolve a capacidade de discutir internamente consigo mesmo, o que corresponde à capacidade de reflexão.

Ele enumerar formas de desequilíbrio ocasionadas tanto egocentrismo intelectual como pela coação, que se mostram úteis ao nosso tema. No primeiro caso, três são as circunstâncias envolvidas. A falta de uma escala comum de conceitos suficientemente homogêneos, a falta de obrigação entre os parceiros (e, portanto, a não conservação das proposições) e a falta de uma reciprocidade regulada, onde cada um se mantém fixo e apegado ao que pensa, como se fosse o único possível. No segundo caso, dos desequilíbrios devido à coação, o autor alerta para a aparente estabilidade dos conceitos adquiridos dessa forma, recorrendo a uma sugestiva imagem: “os edifícios totalitários mais rígidos não são sempre os mais sólidos, e a livre operação conduz a uma mobilidade cuja flexibilidade é frequentemente garantia de maior resistência” (PIAGET, 1973, p. 188). Ou seja, mais uma vez defende que sem reciprocidade nas relações (o que ocorre no âmbito da coação), não é possível sustentar as trocas verbais necessárias à operatoriedade, uma vez que as percepções e intuições perceptivas não são intercambiáveis.

Em outro texto bastante conhecido e exaustivamente ilustrado com situações empíricas, Piaget (1994) tratou do desenvolvimento da moralidade, contexto em que, talvez mais que qualquer outro, cognição e afetividade se entrelaçam (LA TAILLE, 1992). O livro

baseia-se em observações e entrevistas com crianças de diferentes idades em um contexto lúdico, de jogos de regras. Nele, o estudo evolutivo das regras é feito baseado em dois aspectos: o modo como são praticadas e como se adquire a consciência sobre elas. Da mesma forma que o sistema cognitivo, as relações sociais carecerão, para se sustentarem, de mecanismos de regulação, como a construção de regras e sentimentos morais.

Logo, a regra outra coisa não é que a condição da existência do grupo social, e, se aparece como obrigatória à consciência, é porque a vida comum transforma essa consciência em sua própria estrutura, inculcando-lhe o sentimento de respeito. (PIAGET, 1994, p. 87)

O caráter social da regra de que fala Piaget depende diretamente do processo de descentração cognitiva e afetiva, impondo uma mudança qualitativa no pensamento e nas relações: “trata-se não de um acréscimo quantitativo, mas de uma mudança de sistema de referência, de uma inversão de tendências iniciais, que traz coerência e objetividade” (MONTANGERO; MAURICE-NAVILLE, 1998, p. 141). Para o presente trabalho, enfocaremos as diferenciações que Piaget estabeleceu entre os dois tipos de respeito (unilateral e mútuo) e entre relações de coação e cooperação.