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Tratar o ogã como mágico requer alguns esclarecimentos. Quando utilizamos os termos “magia” e “religião” encontramos um problema que sempre deve ser esclarecido. Tanto a umbanda quanto o candomblé podem ser consideradas religiões mágicas (PRANDI, 1991, 1996). Paula Montero (1990), ao estudar as práticas de cura na umbanda, as define como práticas mágico-religiosas. Pierucci (2001)

ainda ressalta a utilização do termo magia religiosa para religiões em que os dois universos estão presentes. Esses termos se devem ao fato de que “na ‘vida real’, na ordem dos fatos e não dos conceitos, a magia e a religião convivem, formam um ecossistema” (PIERUCCI, 2001, p. 99).

Haward Becker (2007) nos alerta sobre alguns problemas bem relevantes quando o assunto é a utilização de conceitos. Primeiramente os conceitos devem estar em diálogo contínuo com os dados empíricos. Se os conceitos são maneiras de sumarizar os dados, é importante que sejam adaptados aos dados que vamos su- marizar. Dessa forma, quanto mais seriamente consideramos um caso, quanto mais nos esforçamos para compreendê-lo por com- pleto, de modo que não haja nada sobre ele que precisemos esquecer, esconder ou ignorar, mais difícil se torna vê-lo como exatamente igual aos elementos que compõem o conceito. Aí teremos que com- plementá-lo, adaptá-lo. “Considere isso como uma escolha entre deixar a categoria conceitual definir o caso e deixar o caso definir a categoria” (BECKER, 2007, p. 162) Becker ainda complementa:

Deixamos a categoria definir o caso quando dizemos que o que estu- damos é um caso de x, digamos, de burocracia, modernização, organi- zação ou qualquer dos outros conceitos comuns que usamos para compreender o mundo social. Isso nos leva [...] a pensar que tudo que é importante sobre o caso está contido no que sabemos sobre a cate- goria. Assim, analiticamente, temos apenas de examinar o caso para ver se ele tem todos os atributos que um membro daquela categoria deve possuir, sendo, portanto, uma das coisas descritas por aquele conceito (BECKER, 2007, p. 162).

Nossa análise está aparentemente completa quando mos- tramos que o conceito de fato tem todos os traços que carrega e ex- plicamos por que não tem os que não estão presentes. Ignoramos aqueles elementos do caso cuja presença ou ausência a descrição da categoria ignora. Somos tentados a exemplificar em nosso caso exa- tamente o que o nosso conceito inclui e acreditamos que, assim, me- lhor funcionará nossa análise. Mas o mundo real quase nunca é en- contrado nesse estado. Essa similaridade tão rara só é encontrada em circunstâncias muito especiais. A estratégia de deixar o conceito de- finir o caso é capaz de muita coisa, mas tem um preço: não vemos e

investigamos aqueles aspectos de nosso caso que não estavam na descrição da categoria com que começamos. “As coisas que deixamos de fora, contudo, retornam para nos incomodar” (BECKER, 2007, 163). Diante disso, prefiro aderir a esse “truque de pesquisa”: deixar o caso definir a categoria.

Pierucci (2001) enfatiza a distinção entre a ordem dos fatos e a ordem dos conceitos73 em decorrência da necessidade metodoló- gica de se fazer a distinção entre magia e religião. Dito de outra forma, no que diz respeito à ordem dos conceitos, especialmente os elaborados por Weber a partir da construção de tipos ideais, Pierucci a defende como uma distinção relevante, mesmo que na ordem dos fatos magia e religião sejam encontradas em estado simbiótico. A partir de seis características básicas da magia dentre as onze siste- matizadas por Goode (1951), Pierucci reafirma a distinção clássica entre os dois universos. Se tomarmos como referência a umbanda, todas as seis características apresentam seus momentos de aproxi- mação e afastamento. Tomemos como exemplo duas delas: a magia visaria fins específicos; e a relação entre mago e as pessoas que o procuram é uma relação entre profissional e cliente que não pede o envolvimento a uma comunidade religiosa.

Reginaldo Prandi contribui para o esclarecimento:

No candomblé (e na umbanda) há uma população de clientes, mas ele só pode estruturar-se como instituição administradora do poder que vem do mundo sagrado (e que permite cuidar dessa clientela) com a constituição da população de devotos, o chamado povo-de-santo, or-

73 Há basicamente três utilizações para os termos magia e religião nos textos antropológicos e sociológicos. Consideremos inicialmente as duas primeiras: a ordem dos conceitos e a ordem dos fatos, para utilizar os termos de Pierucci. O primeiro diz respeito à ordem dos conceitos. Trata-se da utilização dos termos magia e religião como foram construídas por Frazer, Mauss, Malinowiski, Weber, John Good, Durkheim, dentre inúmeros outros, como auxílio para a compreensão de práticas tidas como mágicas ou religiosas. Na ordem dos fatos, magia e religião, como afirma Pierucci, convivem e formam um ecossistema. E sobre isso é preciso ressaltar que, muitas vezes, na ordem dos fatos, o que convive são os próprios conceitos antropológicos, ou seja, a magia e a religião da forma como entendem os antropólogos. Há ainda uma terceira dimensão. Nesse caso, os próprios grupos religiosos disputam pela definição legítima dos termos. São travadas verda- deiras guerras simbólicas de estigmatização. Nesse jogo, o primordial é compreender como se dá o que Bourdieu chama de os mecanismos de (di)visão (BOURDIEU, 1989). Nesse caso o mais re- corrente é a utilização do termo magia como o fizeram Negrão (1996) e Isaia (2011), com o obje- tivo de analisar a utilização dos termos pela sociedade brasileira.

ganizado em terreiros fortemente estruturados em cargos e hierar- quias baseadas na senioridade (PRANDI, 1991, p. 28).

Os clientes têm sido sempre importantes para a umbanda como religião, isto é, como grupo de culto organizado. Mas essa clientela a procura como serviço mágico, magia que lida com a mani- pulação do mundo para solução de problemas de forma prática e objetiva, sem formação de vínculos religiosos. A produção, circu- lação e o consumo de bens e serviços religiosos são atividades eco- nômicas submersas e invisíveis na sociedade brasileira, vindo a fazer parte da economia informal do país (PRANDI, 1996). Por outro lado, ao passo que estabelece relações em que clientes buscam so- lução para problemas do cotidiano, a umbanda também oferece es- paço para que o cliente transforme-se em sacerdote, podendo aderir à religião tornando-se um membro da comunidade.

É por isso que, para Reginaldo Prandi (1996) e para diversos outros estudiosos do tema, a umbanda e o candomblé surgem como alternativas de mobilidade e visibilidade social para pessoas que di- ficilmente encontrariam outra forma de inclusão que não por vias religiosas. Além do sacerdócio que prevê processos de iniciação e ocupação de um lugar no quadro hierárquico de uma comunidade religiosa, há ainda a necessidade de reconhecimento para fora dos terreiros que garanta um fluxo de clientes cujo pagamento por ser- viços mágicos permita a constituição de um fundo econômico. Assim, o autor fala em sacerdotes feiticeiros.

Este pai de santo e esta mãe de santo são sacerdotes de uma religião em que as tensões entre magia e prática religiosa estão descartadas. Pode-se finalmente ser, ao mesmo tempo, o sacerdote e o feiticeiro, numa situação social em que cada um destes papéis reforçará o outro. [...] Ao se realizar como instituição legitimada de prática mágica, o can- domblé na metrópole faz parte publicamente do jogo de múltiplos as- pectos através do qual cada grupo ou cada pessoa, individualmente, é capaz de construir sua própria fonte de explicação, de transcendência e de intervenção no mundo (PRANDI, 1996, p. 36).

Essa é a realidade que Pierucci chama de “a ordem dos fatos”. Religião e magia caminhando juntas sem que seja possível dizer o que é mais mágico e o que é mais religioso. Becker ainda colabora

com outra afirmativa: “[...] suponha que você tem x critérios para um objeto e chama os objetos que tem todos os critérios x de O. Que nome você dá aos objetos que tem x – 1, x – 2, ou x- n dos critérios?” (BECKER, 2007, p. 169). Estamos aqui diante de uma questão mais complexa do que dizer apenas que a umbanda possui elementos re- ligiosos e elementos mágicos em suas práticas. É preciso deixar claro, quando da utilização dos conceitos, em qual momento estes nos auxiliam e em qual momento limitam nosso olhar etnográfico.

Quando estamos diante da “ordem dos conceitos”, aqueles que utilizamos da teoria antropológica e sociológica para a compreensão da realidade social, algumas observações devem ser feitas. É preciso levar em consideração que, quando procuramos o auxílio de teorias clássicas que afirmam essa distinção (magia e religião), algumas ob- servações são extremamente necessárias em decorrência da forma como foram construídas. Utilizar teorias clássicas sobre a religião ou magia que reforçam a distinção entre ambas, seja pelos motivos con- textuais no caso de Marcel Mauss, seja por motivos metodológicos da construção de tipos ideais à exemplo de Weber, como fez Pierucci, significa deparar-se com limitações que, se não esclarecidas, “amarram” o campo em um esquema de raciocínio que não permite incluir elementos importantes e que fazem parte da própria identi- dade religiosa. Muitas vezes a ordem dos fatos e a ordem dos con- ceitos encontram-se confusamente misturados nas análises antropo- lógicas. Se queremos utilizar conceitos, precisamos esclarecer alguns de seus limites.

Para dar um exemplo, essa é uma das principais críticas feitas à sociologia da religião de Pierre Bourdieu. Segundo Hervieu-Léger (2008), a concepção de campo religioso apresentado por Bourdieu é pensada estritamente em termos institucionais. Como afirma Oliveira (2003), a abordagem limitada ao domínio institucional também se mostra pelo fato de que em Bourdieu o “modelo implícito para a te- oria do campo religioso é a decadente cristandade europeia [...] e não um cristianismo dinâmico como o da América Latina, por exemplo” (OLIVEIRA, 2003, p. 193).74 Isso pode ser visto nas suas reflexões

74 Oliveira (2003) em “A teoria do trabalho religioso em Pierre Bourdieu” discute a teoria do tra- balho religioso proposta por Bourdieu.

sobre os “protagonistas do sagrado” e da divisão do trabalho reli- gioso, embasados na teoria da religião de Max Weber (sacerdote, mago e profeta) que, segundo Arribas (2012),75 aparecem na socio- logia da religião de Bourdieu de forma restrita, não conseguindo dar conta da complexidade e diversidade dos agentes nas dinâmicas re- ligiosas variadas, tais como as religiões afro-brasileiras.

É consciente dessas possíveis limitações que pretendo fazer algumas observações a respeito da teoria sobre a magia. Se qui- sermos, portanto, utilizar a teoria de Mauss e Hubert (2003), é pre- ciso avaliar até que ponto esta favorece a compreensão das práticas mágico-religiosas dos ogãs. É preciso ter em vista que a umbanda apresenta elementos da magia e da religião entrelaçados e que a te- oria de Mauss e Hubert está situada em um contexto específico que estabelece distinções entre ambas, ainda que tenha tentado apro- ximá-las, em oposição às teorias sobre a magia produzidas em sua época. Afinal, “os conceitos são generalizações empíricas que cabe testar e refinar com base nos resultados empíricos da pesquisa – isto é, no conhecimento do mundo” (BECKER, 2007, p. 167).

Como disse anteriormente, Mauss estava preocupado em de- finir o caráter coletivo de práticas tidas como individuais e é a partir de tais práticas que Mauss constrói seu pensamento. Apesar de ter aproximado a magia da religião a partir da indicação de elementos comuns e de apontar o que de social existe nas práticas mágicas, a teoria de Mauss e Hubert ainda possui um teor individualizante em decorrência das discussões que rondavam a Escola Francesa em sua época. Com isso posso ter dado um teor individualista e personalista às práticas mágico-religiosas do ogã na umbanda. Além disso, posso ter conferido certa passividade aos médiuns que também participam intensamente dos trabalhos mágico-religiosos. Como a teoria de Mauss não engloba outros agentes que não o mágico durante a prá- tica mágica, é preciso agora esclarecer esta questão. Dessa forma, acho conveniente afirmar que a umbanda se caracteriza pela pre-

75 Arribas (2012), no trabalho intitulado “Pode Bourdieu contribuir para os estudos em Ciências da Religião?” busca tracejar um possível modelo bourdieusiano de análise da religião, a fim de verificar até que ponto Bourdieu pode contribuir para a produção de conhecimento na área das ciências da religião.

sença de uma divisão do trabalho mágico-religioso. O substrato da relação médium-ogã, a energia, também é o substrato das relações comunitárias existentes no terreiro. A cura de uma doença, por exemplo, comporta a manipulação das energias espirituais por parte de diversos agentes, cada um deles realizando essa tarefa de forma distinta, dependendo de sua posição hierárquica ou funcional na casa. Os médiuns relacionam-se com as energias para incorporar as entidades e, a partir daí, proferirão a cura ao cliente com a utilização de palavras, objetos, músicas, a manipulação de objetos, entre ou- tros procedimentos. As cambonas os auxiliarão fornecendo objetos, perfumes, bebidas e, no decorrer da cura, permanecerão cantando e fazendo suas orações para o sucesso do trabalho. Os ogãs, a partir de seus conhecimentos e habilidades, manipularão as energias espiri- tuais e com isso proporcionarão aos médiuns um “fornecimento con- tínuo”. Ekedis cuidarão da coordenação das incorporações indicando qual entidade pode soltar sua reza diante dos tambores, uma após a outra, para que não haja choques físicos entre os médiuns ou para que não entoem as rezas simultaneamente. Pai de santo, mães e pais pequenos sacudirão o adjá com o objetivo de facilitar processos de incorporação e desincorporação. O certo é que um mesmo trabalho (a cura, por exemplo) mobiliza o grupo de agentes, pessoas e ob- jetos, dispostos a manipular as energias espirituais necessárias ao sucesso da prática mágica.

Além do caráter de divisão do trabalho mágico-religioso, é ne- cessário evidenciar o caráter processual dessas práticas. Primeiro a divindade é saudada, em seguida convidada e incorporada, realiza trabalhos com os clientes, e mais outras etapas se sucedem até o rompimento do vínculo, seja qual for, entre o cliente e a divindade, entre o cliente e o terreiro. Antes e depois dessas etapas citadas, várias outras podem existir. O caso da médium que realizou um tra- balho com seu primo se prolongou por cerca de quatro meses. O primordial a se perceber é que diversas etapas são seguidas para que uma cura seja realizada e que não só um indivíduo mágico participa desse processo, como posso ter deixado a entender ao utilizar a te- oria de Mauss e Hubert (2003) sobre a magia.

A lógica mágico-religiosa