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Sobre o papel da música e os toques em terreiros de can- domblé, Béhague (1999) afirma:

No candomblé, os cantos religiosos (ou cantigas) e os toques de acom- panhamento possuem o poder dinâmico do som, como agente con- dutor do axé, a ‘força que torna possível a existência dinâmica’, pois eles transmitem o poder de ação para mobilizar a atividade ritual (BÉHAGUE, 1999, p. 42).

O poder dinâmico do som conduz axé, força vital, mas também, no caso do terreiro pesquisado, conduz primordialmente as energias espirituais do mundo. A compreensão da categoria energia perpassa inegavelmente (o campo nos pede isso) pela compreensão da música enquanto categoria nativa.92 Trago aqui o que alguns membros do Abassá de Omolu e Ilê de Iansã têm a dizer sobre o assunto.

92 O conceito de música é discussão clássica da etnomusicologia e, como afirma John Blacking, é problemático. Também é necessário considerar o que os grupos compreendem por música e, por esse motivo, o autor utiliza o termo entre aspas para enfatizar seu caráter relativo. “Para compre-

Levemos em consideração inicialmente que o termo “música”, como é comumente conhecido e compreendido como categoria oci- dental, apresenta suas limitações quando utilizado para designar as rezas cantadas em terreiros de religiões como umbanda e candomblé. Prandi (2005) evidencia essa reflexão a partir do candomblé.

Para os negros-africanos a música tem talvez um sentido mais amplo do que aquele que lhe é atribuído no Ocidente. Não é simplesmente consumo estético para a fruição de sentimentos e emoções. É isso também, mas também é mais. O antropólogo Kasadi wa Makuna ex- plica que para o africano o som é movimento, comunicação: “A música fornece um canal de comunicação entre o mundo dos vivos e o dos espíritos e serve como meio didático para transmitir o conhecimento sobre o grupo étnico de uma geração para outra” (Makuna, apud Barbara, 2011, p. 125). A música africana é ritmo, ritmo de tambor, é som provido de sentido. Susana Barbara explica que “o som, no can- domblé, é o resultado de uma interação dinâmica entre as vibrações que se propagam do tambor percutido pelos alabê (sacerdotes-mú- sicos); o som então é entendido como condutor de axé (força sagrada), vislumbrando-se a força simbólica dos instrumentos musicais conside- rados sagrados. Entramos, assim, no campo das percepções estéticas que são opostas às do ocidente, onde se entende o conceito de ritmo e de transformação em movimento apenas como uma organização temporal da música ou da poesia (PRANDI, 2005, p. 5).

Em entrevista, referindo-me aos pontos cantados durante os rituais como “músicas”, fui advertido por pai Wanglê. A advertência surge no discurso nativo também como uma reivindicação:

Não. A música, não! A reza. A reza, a louvação. Não tem música dentro da religião. Existem rezas e louvações dentro do ritual da reli- gião. E não é pecado algum as pessoas falarem música, mas aqui dentro do ritual da religião não é uma palavra correta. É a reza ou a louvação. Quando se louva pra Ogum, se canta, correto? Cantar, o

ender a ‘música’ como uma capacidade humana, como um quadro específico das capacidades cognitivas e sensoriais, devemos começar tratando sua definição como problemática, e é por isso que coloquei o conceito entre aspas. Além de incorporar numa teoria geral da música as caracte- rísticas de todos os diferentes sistemas musicais, ou ‘musicais’, devemos também levar em conta as diferentes maneiras pelas quais os indivíduos e os grupos sociais produzem sentido daquilo que eles ou qualquer outro considera como ‘música’” (BLACKING, 2007, p. 203). Sobre esse as- pecto Jean Molino (1975, p. 17) afirma: “What music is remains open to question at all time and in all places”.

povo fala que canta música, correto? Canta-se música, correto? Mas dentro do nosso ritual, dentro da nossa casa, cantam-se louvações, cantam-se rezas aos orixás (Pai Wanglê, março de 2012).

A advertência, portanto, apresenta-se a partir de dois ângulos. Por um lado, por motivos óbvios, compreendemos que a categoria música, como é comumente utilizada, não nos permite enxergar a energia espiritual que conduz. É preciso olhá-la de outra maneira, para além dos ritmos, notas, acordes, melodias e compassos. O ponto possui, além de tudo isso, energia. Mais do que isso, a pre- sença da energia também não se restringiria à música. Está presente em diversas instâncias do universo mágico-religioso.

Em um segundo momento a advertência e a ênfase na inade- quação do termo surgem do próprio discurso nativo, que reivindica a existência de algo além dos ritmos, notas, melodias e letras: existe a energia dos espíritos, a energia dos orixás. Mais do que isso, existe a energia de seus guias, de seus orixás (ressaltando os pronomes possessivos) que permeiam processos de incorporação e estão sempre acompanhadas de fortes sentimentos sociais. Trata-se de uma mescla entre experiência religiosa, respeito ao sagrado e afir- mação de identidade grupal.

Em entrevista, quando conversávamos sobre as diferenças entre a música e o ponto, adentramos em uma discussão recorrente no universo dos ogãs de diversas denominações religiosas: tocar ins- trumentos percussivos no terreiro e tocar em grupos musicais de pagode, axé e outros gêneros musicais.

O instrumento que eu toco mesmo é só esse aí mesmo. Não que eu não queira tocar outro. Mas eu gosto mesmo disso aí e o meu toque é mais pra religião mesmo. Porque às vezes tem muito cara que toca em terreiro que toca em pagode. Mas eu sempre me abstive dessas coisas que são mundos diferentes. Aí pra você conciliar uma coisa e outra... Mas uma coisa que eu aprendi mesmo antes de eu abraçar a umbanda com unhas e dentes, que eu fiz isso com 10, 11 anos de idade, é uma passagem da bíblia que diz assim: ou você adora a deus ou adora outra coisa. Você não pode servir a dois senhores. Ou você adora um e despreza o outro. Ou despreza um e adora o outro.

Então eu não vou tá tocando tamtam no pagode depois vou tá no terreiro tocando tambor que não é a mesma coisa. Não é nunca. Não se iluda que não é. Por isso que eu me abstive. Eu fiz uma escolha e segui meu caminho com a convicção que eu tenho que ter. Pra que eu possa ser útil em alguma coisa. Não é a mesma coisa (Francisco,

novembro de 2011).

Somando-se ao depoimento anterior dado por pai Wanglê, o depoimento de Francisco apresenta duas distinções que, como es- pero, tomarão corpo neste trabalho e ficarão claramente delimitadas ao final dele. Por um lado, temos a distinção entre música e ponto, por outro, e de forma complementar, temos a distinção entre tocar tambores em grupos de pagode e tocar tambor no terreiro, conduzir energias espirituais.