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O papel do ogã, cara, é segurar a gira, o equilíbrio da casa. Porque enquanto o tambor tá tocando, tudo que é energia tá circulando ali. É como uma grande corrente sanguínea. O tambor é o coração. O mé- dium é a veia, as veias do corpo. E a energia que passa é o sangue. Passa por mim, passa por todos. Passa por mim de novo. Vai pra lá de novo. É um círculo todo tempo (Francisco, setembro de 2013).

As reflexões sobre o papel do ogã nos trabalhos mágico-reli- giosos estão aqui embasadas em diversas considerações feitas por Mauss e Hubert sobre a magia. A categoria mana presente em al- gumas obras muito contribui para as reflexões propostas sobre as

energias espirituais manipuladas pelo ogã. Dessa forma, torna-se preciso fazer algumas observações sobre esta categoria e expor em que perspectiva nos interessa.

A noção de mana, em paralelo com a noção de energia, é uma categoria compartilhada entre ogã, o “mágico”, e os demais médiuns que participam dos rituais. Mais do que as técnicas musicais, as notas, os tempos e batidas, a energia é o elemento mais comparti- lhado entre ambos. Além de trabalharem juntos para manipulá-la a partir de práticas mágico-religiosas, vivenciam no cotidiano as inter- mitências dessa categoria. A ideia aqui é dar evidência ao que é feito em conjunto. É a partir da energia que o papel do ogã é compreen- dido e compartilhado por todos os participantes do ritual. Assim como a noção de mana, “teria a capacidade de condensar uma série de ideias em torno da eficiência dos poderes mágico-religiosos, refe- rindo-se ao poder atribuído a objetos, às pessoas e aos ritos, que os tornam eficazes” (MENEZES, 2003, p. 110-111).

A energia é citada no discurso dos clientes que vão ao terreiro em busca de soluções para seus problemas particulares. Diz-se: “pai Wanglê, preciso limpar minha energia”. Para grande parte dos mé- diuns do terreiro pesquisado não interessava, por exemplo, ter o do- mínio ou conhecimento sobre as técnicas musicais ou sobre a influ- ência banto90 nos toques executados pelos ogãs. Alguns não sabiam classificar entre os diferentes tipos de toques utilizados para con- vocar seus guias. O que é objeto da experiência, o que é sentido, fa- lado e compreendido é a influência dos ogãs sobre a energia neces- sária ao seu processo de incorporação, ao processo de cura, ao processo de limpeza. Falava-se em energia quente, fria, carregada, pesada. Pretendo aqui, portanto, compreender o que ogãs e médiuns de incorporação dizem sobre a função do ogã nos trabalhos mágico- -religiosos a partir dessa categoria agregada do pensamento coletivo. Aqui Mauss e Hubert (2003) nos auxiliam a olhar para as práticas mágico-religiosas do ogã a partir de posições teóricas e metodoló- gicas específicas, abrindo caminhos para a compreensão do objeto de investigação escolhido.

Segundo Maluf (2013) e Oliveira (1979) a noção de mana está fortemente vinculada ao fato de os textos centrais da Escola Sociológica Francesa considerarem que a análise sociológica e antro- pológica devem se debruçar sobre aquilo que define o mundo social, ou seja, suas formas de classificação, diferenciação e separação. Em paralelo com a noção de mana, é possível dizer que a energia também é “propriamente o que produz o valor das coisas e das pessoas, valor mágico, valor religioso e mesmo valor social” (MAUSS; HUBERT, 2003, p. 143). Também é preciso ressaltar que o potencial classificatório da categoria mana não deve ser compreendido de forma desconexa do fato de que Mauss está escrevendo também sobre Algumas Formas

Primitivas de Classificação (2001), escrito em parceria com Durkheim.

Sobre essa questão Pierre Bourdieu afirma:

Com Durkheim (e Mauss) as formas de classificação deixam de ser formas universais (transcendentais) para se tornarem [...] formas so- ciais, quer dizer, arbitrárias (relativas a um grupo particular) e social- mente determinadas (BOURDIEU, 2005, p. 10).

As classificações passam a ser elementos socialmente determi- nados e particulares. São por excelência instrumentos de integração social, pois, enquanto instrumentos de conhecimento e comuni- cação, tornam possível o consenso acerca do sentido do mundo so- cial. Assim como a noção de energia,

A noção de mana, como a noção de sagrado, não é senão, em última análise, a espécie de categoria do pensamento coletivo que funda seus juízos, que impõe uma classificação das coisas, separando umas, unindo outras, estabelecendo linhas de influência ou limites de isola- mento (MAUSS; HUBERT, 2003, p. 155).

Na dinâmica do terreiro pesquisado, a categoria energia está fortemente vinculada à classificação de lugares, à exclusão de objetos, ao afastamento entre espaços, à realização de ritos que visam expulsá- -las ou trazê-las para perto. A energia surge como elemento presente em todas as instâncias do universo mágico-religioso do terreiro, espe- cialmente na vida cotidiana de seus membros. É manipulada, transfe- rida, retirada, colocada. A energia energiza, é sentida e gera calor. É ao mesmo tempo um adjetivo, um verbo e um substantivo.

A energia pode ser particular, pessoal, pois cada linhagem de entidades possui a sua. Incorpora-se uma entidade quando se con- segue “acasalar” com as energias. Imaginar-se dentro de uma senzala ou sentir as ondas do mar são indicadores de energias diferentes, de entidades diferentes.

A energia do mar tem uma força tão grande! A mãe Valdívia falava isso pra mim também: Minha filha não se deixe tomar por essa energia porque senão você vai “simbora”. É como se você tivesse en- trando no mar, e indo embora, e o mar lhe levando. Do mesmo jeito. Tão interessante, quando eu comecei a sentir a energia dela, antes de eu incorporar, eu sentia o cheiro da maresia. Quando chamava as correntes do mar, eu sentia o cheiro da maresia todinho (Rosinha,

outubro de 2013).

Em outros momentos é possível referir-se a energia de forma completamente impessoal, desligada de qualquer entidade espiritual específica, pois apenas um pensamento ruim pode gerá-la. O simples fato de sair de casa, de ir ao trabalho pode propiciar o contato com diversos tipos de energia. Pode ser força benéfica ou maléfica. Algumas, quando identificadas, devem ser imediatamente expulsas.

A energia é também o grande substrato das demandas.91 Faz-se demanda com o auxílio da energia das entidades. Para quem for diri- gida, a energia negativa pode ser sentida e gerar consequências inde- sejadas na vida cotidiana. É, portanto, classificada em energias boas, más, leves, pesadas, amenas, desejáveis, indesejáveis; ao passo que classifica lugares, pessoas, objetos e dá objetivo aos rituais. Mais adiante evidenciarei que há também uma classificação nativa sobre a compatibilidade entre elas e que pode ser melhor observada a partir da construção do calendário mensal das giras.

Diversos autores contestaram a universalidade da noção de mana. Vale lembrar as críticas feitas por Lévi-Strauss (1974) na in- trodução da coletânea de ensaios de Mauss. Por outro lado, discutir

a universalidade da noção de mana não contribui para as reflexões que proponho.

A riqueza do pensamento de Mauss não está em pensar o mana como algo em si, mas como uma categoria de pensamento coletiva que orga- niza e classifica objetos e pessoas. A magia e a religião são sistemas de conhecimento. Enquanto crenças, a magia e a religião envolvem pen- samentos, símbolos e formas de comportamento. Traduzem maneiras únicas de ser um grupo humano e na infinita possibilidade de ser (GUERRIERO, 2003, p. 40).

Aqui a noção de mana está atrelada aos demais elementos da magia como recurso para compreender praticas mágico-religiosas específicas. Dessa forma, a discussão sobre a universalidade ou não universalidade da noção de mana dá lugar a uma construção teórica que visa iluminar e colocar, mesmo que de forma provisória em al- guns casos, alguns trilhos para a compreensão da prática mágico- -religiosa dos ogãs.