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O que mais importa para a reflexão que me proponho a fazer é o teor esclarecedor e reflexivo, mesmo que de forma provisória em alguns momentos, que a obra de Mauss e Hubert pode dar às práticas mágico-religiosas dos ogãs. Ela contribui para melhor identificar e compreender os “elementos da magia” em separado e ao mesmo tempo unidos por uma massa, uma espécie de rejunte e substrato da credulidade pública, do prestígio, do domínio e manipulação de uma categoria agregada do pensamento coletivo: a energia.

A foto seguinte foi tirada durante uma gira de mar (gira desti- nada às entidades da linhagem do mar). A imagem mostra uma mé- dium já incorporada por seu guia espiritual se preparando para rea- lizar um trabalho mágico com o objetivo de solucionar um problema específico de seu primo biológico. Vi esse pequeno rito se repetir por diversas vezes ao longo de cerca de quatro meses. Esse foi o período de duração desse trabalho em particular. O caso em questão será descrito na última seção. Aqui deve ajudar no esclarecimento de al- gumas questões levantadas até o presente momento.

Figura 8 – Contato físico entre ogã e médium durante uma gira de mar

Fonte: Leonardo Oliveira de Almeida, 2013.

A foto mostra apenas uma das etapas do trabalho mágico. A médium incorporada vai ao encontro do ogã e segura sua mão para receber as energias espirituais necessárias ao trabalho que será reali- zado logo em seguida. Também podemos observar que uma das mãos do ogã permanece sobre a pele do tambor, que também possui impor- tância crucial no processo, já que é o principal instrumento mágico do ogã, além de ser cultuado como uma divindade. Para a dupla em questão, bem como para os médiuns que a cercam, um rito de com- partilhamento de energias está sendo realizado. Ao contrário dos casos em que o toque de tambores é suficiente para a transmissão das energias espirituais; nesse caso específico, o rito é complemen- tado pelo contato físico. Após permanecer nessa posição por alguns segundos, o processo se encerra e a médium caminha em direção ao seu primo, que já a espera em pé ao lado dos tambores. Enquanto a médium e seu cliente estão envolvidos na solução do problema que os motivou a realizar a prática mágica, já em um lugar mais reservado do terreiro, o ogã permanece tocando tambor, emanando e fazendo circular as energias espirituais necessárias ao sucesso do trabalho.

Costumava chegar ao Abassá de Omolu e Ilê de Iansã por volta das 18h30min, o que me permitia escolher um bom lugar no terreiro. Escolhia sempre uma posição que me permitisse ver de perto os tam- bores e as expressões faciais dos ogãs, bem como os médiuns (e suas expressões faciais) quando iam em direção aos instrumentos para dançar e soltar seus pontos. Por sorte, o primo da médium sentava sempre ao lado dos tambores e, consequentemente, ao meu lado. Pude, assim, acompanhar os momentos em que ele dobrava sua atenção à espera da entidade incorporada pela prima.

Como sabemos, o ogã é o responsável por chamar e transmitir as energias espirituais durante as giras. É ele quem vai fazê-las cir- cular nos corpos dos médiuns e em todos os espaços da casa. No momento acima não há toques, não há batidas, não há ritmos musi- cais. Vemos emergir a “ideia compósita de força”, a noção de que há um manipulador legítimo de uma noção agregada pelo pensamento coletivo. O trabalho mágico realizado pela médium encontra seu substrato na energia previamente recebida por intermédio do ogã, e que permanece sendo transmitida durante todo o trabalho a partir dos toques que, como vimos anteriormente, seguem dois parâmetros básicos fortemente interligados: a linhagem das entidades cultuadas e o objetivo da gira, o que, como apresentei anteriormente, resultam em algumas combinações de toques.

Observamos a chamada magia contagiosa. A partir dela a mé- dium modifica sua condição. “É fundamental na magia o contato fí- sico. Tão fundamental que demarca todo um setor do universo do magismo” (PIERUCCI, 2001, p. 68). A médium, após receber a energia fornecida pelo ogã, além de ver seu estado modificado, agora possui os atributos necessários à realização do trabalho mágico. A energia que confere o poder mágico agora é por ela possuída totalmente.

Há casos em que o trabalho tem êxito sem intermédio de algum médium incorporado, pois as energias emanadas pelos tambores e pelo ogã já são suficientes para, por exemplo, tirar um “mau olhado”. Nesses casos, é importante retomar o termo utilizado anteriormente a partir das considerações de Amaral e Silva (1992), segundo os quais os ritos ocorrem a partir da construção de uma “atmosfera” em que diversos elementos simbólicos são combinados. Assim, as energias são trazidas e feitas circular pelo ogã, mas todos participam ativa-

mente da reunião dos elementos necessários às práticas mágico-reli- giosas: danças, cantos, cores, roupas, tom de voz, entre outros.

Após participar por dois anos da dinâmica do terreiro, pude observar o prestígio a que é submetido o ogã confirmado da casa, suas relações de amizade, suas obrigações e a responsabilidade que possui para a condução dos rituais. O resultado disso é que a música por ele conduzida está acompanhada de outros elementos com fortes relações de interdependência para que a eficácia das práticas má- gico-religiosas seja alcançada. Compreendo que atribuir o poder má- gico apenas à música se traduz pelo que Giumbelli (1994) chama de “caráter compartimentado dos elementos mágicos”.

Em sintonia com as funções que a música desempenha no con- texto ritual, tal como apresentadas por Amaral e Silva (1992) ou Angela Lühning (1990), por exemplo, ressalto um agente e suas in- tenções, suas práticas. O campo de pesquisa específico a que me re- firo mostra que por trás de uma música que chama a entidade, há um agente, um objetivo, um saber, um conhecimento, um prestígio, há uma crença coletiva em sua eficácia e suas técnicas. Pensar com Mauss (1979) que este mágico passou por rituais de iniciação, por processos de aprendizado, adquiriu uma função específica no ter- reiro e, portanto, é objeto de fortes sentimentos sociais, é pensar também que a ele é destinada, de forma legítima, a tarefa de con- vidar as energias espirituais e utilizar-se da música para a realização de purificações e descarregos. A música, assim, é aqui evidenciada como instrumento, meio, participante, agente, mas não como fim em si mesma.

Afastamentos e aproximações: teorias sobre