• Nenhum resultado encontrado

Como foi dito, no Abassá de Omolu e Ilê de Iansã o calendário semanal de atividades públicas é construído com base em dois ri- tuais: as saídas de santo e as giras. Trago aqui algumas caracterís- ticas desses dois rituais em decorrência de sua grande importância

para a compreensão das práticas mágico-religiosas dos ogãs. De acordo com os princípios da casa, nove orixás são cultuados ao longo do ano nas saídas de santo (Nanã, Omolu, Ogum, Oxum, Xangô, Iansã, Oxóssi, Iemanjá e Oxalá) e quatro linhagens de entidades são cultuadas, dando nome às giras (gira de exu, gira de preto velho, gira de mar e gira de caboclo). Assim, por exemplo, um calendário pode conter, nas quatro semanas de um mês, uma gira de exu, uma gira de mar, uma saída de Oxóssi e uma gira de preto velho.

Trata-se de dois momentos substancialmente distintos e que pedem dos ogãs e dos demais participantes do ritual posturas espe- cíficas, referentes aos aspectos ritualísticos e míticos relacionados às diferentes divindades. Enquanto as festas de saída de santo visam celebrar a “descida” de um Orixá específico, as giras têm como prin- cipal objetivo a possessão de entidades espirituais para a realização do trabalho mágico-religioso, um conjunto de “serviços prestados” pelas entidades às pessoas que vão ao terreiro em busca de curas físicas e espirituais, passes, limpezas, trabalhos de amor, problemas de alcoolismo, problemas financeiros. Além disso, visam o desenvol- vimento mediúnico de seus membros.

É preciso ressaltar que os ritos de cura, por exemplo, podem ocorrer nos dois momentos, tanto nas saídas de santo como nas giras. Entretanto, nas giras são publicamente ritualizados, ou seja, as enti- dades realizam ritos mágicos de forma explícita e com o auxílio de seus objetos, da fala, do toque, e do diálogo direto com as pessoas que as procuram. Já nas saídas de santo, uma cura pode ser realizada quando um filho de santo faz suas orações em particular para o orixá, sem que os demais participantes saibam. Em alguns momentos pode tocar em suas vestes com a mesma intenção, mas não há um ritual de cura compartilhado e publicamente encenado aos moldes das giras.

Os principais momentos das saídas de santo podem ser divi- didos da seguinte forma:

1) Saudação aos exus; defumação;52 ritual da pemba; ritos de abertura da gira contendo orações iniciais

52 “A defumação é a queima de determinadas ervas para se incensar o abassá e todos os pre- sentes à reunião. No culto omolocô, a composição do incenso queimado é composto por sete

(Orogogis53); saudação aos nove orixás cultuados na casa (sem incorporação) e saudação dos pais pequenos, mães pe- quenas, ekedis e ogã mão de couro (19:00 às 20:00);

2) Entrada do orixá incorporado (20:00 às 20:30) 3) Comida do orixá54 (20:30 às 20: 45)

4) Incorporação de entidades – giras (20:45 às 22:00). Os principais momentos das giras podem ser divididos da se- guinte forma:

1) Saudação aos exus; defumação; ritual da pemba; ritos de abertura da gira contendo orações iniciais (Orogogis); saudação aos nove orixás cultuados na casa (em giras de exu apenas o orixá Ogum é saudado) e saudação dos pais pequenos, mães pequenas, ekedis e ogã mão de couro (19:00 às 20:00);

2) Intervalo de cinco minutos – preparação para a incorpo- ração das entidades;

3) Incorporação de entidades – giras (20:05 às 22:00). Vejamos como estava organizado o calendário de atividades referente aos meses de outubro, novembro e dezembro de 2014:

ervas a saber: Alecrim, Benjoim, Alfazema, Erva-doce, Breu (Incenso de Igreja), Almesca e Mirra” (OMOLU, 2002, p. 157).

53 Segundo Caio de Omolu, “Orogogis significam preces, e como ato litúrgico são as orações efe- tuadas para abertura dos trabalhos” (OMOLU, 2002, p. 159).

54 Nesse momento é servida a comida característica do orixá cultuado. Assim, em giras de Iemanjá, por exemplo, são servidos frutos do mar.

Figura 6 – Calendário de atividades do terreiro55

Fonte: Leonardo Oliveira de Almeida, 2014.

Observamos a alternância entre as giras das quatro linhagens citadas e as saídas de santo (festa de Iansã e Oxum), sendo os exus cultuados na primeira terça-feira de cada mês. No dia 28 de no- vembro, há a indicação de uma deitada, o ritual de obrigação para os iaôs (noviços). A deitada acontece ao longo de três dias: sexta, sá- bado e domingo. Os iaôs farão suas primeiras obrigações aos orixás, enquanto que os demais médiuns realizarão ritos de confirmação e atualização de suas primeiras obrigações. O nome deitada remete ao fato de que os iaôs devem permanecer reclusos na casa durante os três dias, permanecendo grande parte de seu tempo deitados em es- teiras de palha, dispostas no chão do terreiro, com o objetivo de es- treitar vínculos com seus respectivos orixás.

55 Os calendários são expostos no compartimento 6. Ver mapa da casa apresentado no início deste capítulo.

A temática da deitada surge aqui como uma boa oportunidade para fazer algumas considerações sobre o processo de pesquisa. Trata-se de um ritual fechado ao público, destinado apenas aos fi- lhos da casa. Apesar disso, me foi dada a permissão para participar de alguns momentos ao longo dos três dias. Pai Wanglê e mãe Milena, uma das mães pequenas da casa, permitiram minha presença, justi- ficando que eu era conhecido por todos, estava há muito tempo con- vivendo com a família de santo e que me consideravam “quase um filho do terreiro”. Participei de um “toque pro santo”, almocei com os iaôs e demais médiuns da casa e, em alguns momentos, fui solici- tado para que fosse ao mercado situado próximo ao terreiro para comprar ingredientes para as refeições, dentre outros produtos, já que os demais membros do terreiro encontravam-se ocupados com as tarefas ritualísticas.

Pai Wanglê me fez apenas duas exigências: eu não poderia tirar fotos e deveria vestir roupas brancas. Diferente das giras, os rituais ocorridos durante uma deitada não contam com a presença de obser- vadores, de pessoas que não participam diretamente dos rituais. Por esse motivo, meu lugar durante os rituais não seria o de um obser- vador, sentado na assistência. Pai Wanglê fez questão que eu ves- tisse branco, assim como todos os filhos da casa, e permanecesse ao lado da porta de entrada do terreiro, assim como fazem todos os noviços do Abassá de Omolu e Ilê de Iansã. Geralmente uma mãe pequena ou o próprio pai Wanglê escolhem o lugar dos noviços. A partir da indicação, devem iniciar todos os rituais na mesma posição, compondo o que chamam de “corrente mediúnica da casa”.

Tais orientações, bem como outras conversas que tive com pai Wanglê e com outros filhos do terreiro, confirmaram que, além de pesquisador, eu era compreendido como um aspirante a filho de santo. Pai Wanglê afirmou por diversas vezes durante os últimos meses de pesquisa: “ainda vou te ver vestindo farda na minha casa”. Acredito que algumas portas que me foram abertas e informações que me foram confiadas só se tornaram possíveis em decorrência da pos- sibilidade de me tornar um membro do terreiro. Em alguns momentos, os acessos que me foram dados não tinham exclusivamente a intenção de colaborar com minha pesquisa, mas visavam meu envolvimento com a religião. Quando me explicavam sobre os objetos dos orixás ou

sobre as características dos guias, pareciam motivados a instruir um noviço. Em complemento, nunca me mostrei fechado à religião.

Dois fatos ocorridos durante a deitada exemplificam os papéis de pesquisador e de aspirante a filho de santo por mim ocupados. O primeiro diz respeito ao momento em que almoçávamos na tarde de sábado. Os filhos de santo encontravam-se dispersos pela casa. Os iaôs deveriam permanecer no terreiro, sentados em suas esteiras. Os demais médiuns tinham liberdade para caminhar pela casa e almoçar em outros compartimentos. Se fosse necessário algum auxílio, os iaôs deveriam chamar outro médium, de preferência a mãe pequena, mãe Milena.

Decidi almoçar sentado em uma cadeira de madeira, bem pró- ximo a uma das portas do terreiro. Ao meu lado, mãe Milena descan- sava em uma rede, em um lugar que lhe permitia ver os iaôs dentro do terreiro.56 Em determinado momento, após terem concluído o al- moço, dois iaôs saíram de suas esteiras e foram à cozinha para deixar seus pratos e para pegar uma garrafa de refrigerante. Mãe Milena, ainda deitada em sua rede, imediatamente os advertiu afirmando que não deveriam sair do terreiro e, em complemento: “Vocês são muito teimosos. O Leonardo vai colocar isso na pesquisa dele, viu?!”. Aqui eu era pesquisador, avaliador do ritual.

Em um segundo momento, já durante um toque para o santo, os iaôs iriam receber os axés dos seus orixás e dançar de acordo com os movimentos característicos das divindades. Trata-se de um mo- mento especial para cada um deles, afinal, dançarão pela primeira vez com seu orixá. Permanecendo no meu lugar, ao lado da porta, um dos iaôs pediu que eu filmasse sua dança e colocou em minhas mãos seu smartphone. Após a dança, pai Wanglê atravessou o terreiro e se dirigiu a mim e ao iaô. Fomos incisivamente advertidos na presença dos outros 15 filhos de santo que participavam do ritual. Se quisés- semos filmar, deveríamos ter pedido sua permissão. Após proferir as advertências, pai Wanglê aproximou-se de mim e disse: “te tornarei um filho obediente”. E retornou ao altar do terreiro. Demonstrando certa empolgação, imediatamente o iaô veio até mim e perguntou:

“tu vai entrar pra corrente?”. Não tive oportunidade de respondê-lo, pois fomos sugados pela retomada das danças dos orixás. Aqui, assim como em outros momentos da pesquisa, fui tratado como um aspirante a filho de santo. Acredito que a forma como fui tratado por pai Wanglê, muitas vezes publicamente, fez com que, ao longo do percurso investigativo, não recebesse exclusivamente colaborações para uma pesquisa, mas ensinamentos para um iniciante.

O certo é que o pesquisador é pressionado a esclarecer inten- ções para si mesmo e para seus colaboradores. Tais intenções estão em constante mutação, desde o momento em que se inicia a pesquisa até o momento em que ela é abandonada. Como lembra Sergio Ferretti (2009, p. 40), “é necessário uma atitude equilibrada e cautelosa para não ferir suscetibilidades”. Nesse aspecto não tive problemas, pois, além de não ter sido pressionado a aderir à religião, não me neguei a participar de limpezas, passes, descarregos e conversas com as enti- dades. Posso dizer que não neguei nada do que me foi sugerido, apenas não tomei algumas iniciativas diante das portas que me foram abertas. De qualquer forma, o processo de pesquisa sempre gera transformações, mudanças de mentalidade, mudanças no ser.

Retomando as considerações sobre as giras e saídas de santo, nos ritos em que os protagonistas sagrados são os orixás, que guardam maior influência das práticas ritualísticas do candomblé, observamos uma grande necessidade de seguir rígidos padrões ritu- alísticos. Mais do que apenas seguir padrões, eles estão sempre acompanhados de uma grande carga de tensão e expectativa por parte dos filhos de santo. As roupas devem permanecer firmes no corpo do médium até o final da cerimônia, os movimentos, a dança, os acessórios e as diversas outras sutilezas devem seguir o esperado segundo cada divindade. O não sucesso no alcance dos padrões pode ser motivo de choro e lamentação. Não por acaso o momento poste- rior a uma saída de santo é marcado por uma grande preocupação em perguntar para os que viram seu orixá: “E aí? Eu fui bem?! Deu tudo certo?! Estava com medo de que não ficasse bom”. Enquanto pesquisador, muitas vezes compreendido como sendo o “avaliador” dos rituais, por incontáveis vezes fui indagado pelos filhos de santo sobre o desempenho de seu orixá. Muitos apresentavam suas princi- pais dificuldades como justificativa para algum problema que eu po-

deria supostamente ter identificado. Os olhares que homenageiam, reverenciam, pedem curas e celebram a chegada tão esperada do orixá também são olhares que avaliam. O ato de seguir padrões está fortemente vinculado ao respeito, ao “dar o que o meu orixá me- rece”, a mostrá-lo como ele realmente é, com suas características que são belas, dignas de apreço e ansiosamente esperadas. Os padrões garantirão que o axé dos orixás homenageados naquela noite seja melhor sentido e transmitido. Todos os esforços visam formar uma “atmosfera” que marca a identidade do orixá (AMARAL; SILVA, 1992).

Figura 7 - Festa de Iansã

Fonte: Leonardo Oliveira de Almeida, 2013.

Na foto acima podemos observar uma das filhas da casa repo- sicionando a vestimenta de Iansã. Naquela noite, apenas quatro mé- diuns foram escolhidas para sair com seus orixás. Enquanto o orixá dança, os demais espectadores celebram a chegada da divindade, fazem suas orações e tocam em suas vestimentas. O pai ogã conduz as cantigas relacionadas a essa divindade, tanto em português como em dialeto africano.

Por outro lado, quando os protagonistas sagrados são as enti- dades, o rito não é marcado pela tensão em alcançar rígidos padrões,

nem litúrgicos e nem musicais. Mesmo que as entidades possuam características particulares, que também seguem padrões ritualís- ticos, não é sobre tais características que todos os olhares se voltam. Os esforços estão voltados prioritariamente para o trabalho mágico- -religioso, para a ritualização das curas, dos passes, das limpezas, da expulsão das más energias, para o desenvolvimento mediúnico.

Vale ressaltar que os rituais de incorporação duram cerca de duas horas e trinta minutos, sendo a primeira hora destinada à li- nhagem de entidades que dá nome ao ritual. Assim, em uma gira de exu, a primeira hora é destinada à incorporação dos exus e lebaras, as exus femininas. Concluída a primeira hora, “vira-se a banda”, como é chamada o processo de mudança dos grupos de entidades, e são iniciadas as incorporações das demais entidades compatíveis (energias compatíveis) com a linhagem de exus. Da mesma forma, a primeira hora das giras de caboclo é destinada à incorporação dos caboclos. Em seguida, observamos um processo de transição para os juremeiros, boiadeiros e erês.

A participação do ogã em ambos os rituais é fundamental, pois “os vários matizes da música acompanham as várias etapas do rito, sublinhando-as e estimulando uma empatia entre a subjetividade dos ouvintes e os acontecimentos cerimoniais” (AMARAL; SILVA, 1992, p. 1-9). Porém, rituais distintos pedem uma prática mágico- -religiosa distinta. Dois fatores contribuem para que o caráter dessas práticas se diferencie: objetivos distintos (de um lado, os orixás e, de outro, as práticas mágicas) e formas distintas de ritualização do co- tidiano, das particularidades e dos elementos biográficos dos mé- diuns e clientes que participam dos rituais.

Apresentadas as características básicas do omolocô e de seus dois principais rituais públicos, na próxima seção evidencio a contri- buição dos trabalhos antropológicos e etnomusicológicos que buscam compreender o papel da música em religiões afro-brasileiras, e de que forma colaboram para a compreensão das práticas dos ogãs.

A contribuição dos estudos