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3.2 A Política da Escrita

3.2.2 Afinal, que pode a literatura?

O axioma de Jacques Ranciére (1995) de que toda escrita é uma escrita

política resulta do fato de todo discurso possuir um emissor, o qual inevitavelmente coloca

em sua mensagem uma dimensão ideológica, mesmo que inconscientemente. O modo como essa mensagem será recebida − em outras palavras, se ela conseguirá atingir seu intento político −, depende do leitor. Neste trabalho, que procura investigar a dimensão política da literatura, não poderíamos deixar de pensar sobre essa questão: afinal, o que pode a literatura?

Claro que a literatura não tem poderes materiais imediatos; para Sartre (1968), a pergunta que deve ser feita é: o que um livro exige de alguém como leitor? Segundo o filósofo, não se deve esquecer que, sujeito livre, o leitor cria quando lê − é o intérprete que dá sentido ao texto. Possuidor das palavras da língua, o leitor entretanto busca um outro sentido que lhe escapa, e somente será encontrado no livro; nesta perspectiva, o livro também pode dar um sentido à vida, explicar a realidade, passar uma informação, etc, de uma forma que o leitor não teria sem ele.

Quanto à literatura comprometida, que nos interessa aqui mais particularmente, Sartre entende que ela não tem de falar da situação em si, mas a única maneira de ela atingir o seu intuito (acionar a conscientização, levar à reflexão) é o leitor realizar livremente as tensões colocadas pela obra. Para ele, viver com liberdade uma experiência na leitura, compreendendo bem ou mal os seus condicionamentos sociais (e outros), é o que pode a literatura; se o leitor viveu esse momento de liberdade, se escapou “às forças da alienação e da opressão, podemos ficar certos de que não se esquecerá” (SARTRE, 1968, p. 116).

Para nós, então, a função política da literatura somente será atingida se, em

última instância, o leitor captar as tensões emanadas pela obra, o que depende não só dos

conhecimentos prévios do receptor, individualmente, como também da recepção do texto em seu momento histórico.

O que nos parece fundamental é que a dimensão ideológica do discurso social no romance passa pelo leitor, pelas instituições que veiculam as obras (a crítica, a academia, as editoras, etc.) e também pelo contexto histórico, político, social, econômico em que vive o escritor, o qual também cria em razão de sua consciência da realidade, conformada pelo embate político do qual ele participa em maior ou menor grau. Talvez o contexto onde possamos melhor perceber as conseqüências políticas das opções estéticas, em nosso corpus, seja o africano.

Para exemplificar, abriremos um parêntesis para expor o pensamento de Appiah (1997, p. 115), para quem, enquanto o escritor euro-americano, o “ocidental”, mergulhado e instalado confortavelmente em sua cultura, está voltado para o eu, o escritor africano está centrado na dimensão pública de seu mundo, qual seja a relação geralmente complicada e ambígua de seu presente com a tradição – não a literária, mas a sócio-histórica, com problemas relacionados à identidade, como as questões étnicas, nacionalistas, sociais, políticas, raciais.

Appiah ressalta a necessidade de o intelectual (escritor) africano ver a África não como um subproduto do olhar ocidental “civilizado”, não o continente pan- africano ou negro, mas a partir de sua cultura, um olhar de dentro, com suas tensões, contradições, conflitos, heranças “autenticamente” africanas, mas também as ambíguas tradições européias às quais é impossível se furtar.

Apesar das diferenças entre as histórias das ex-colônias britânicas, francesas e portuguesas, há muitos aspectos em comum que auxiliam na constituição de uma identidade

africana (ainda apesar da alta pluralidade de diferenças, como já apontamos): o racismo europeu e o imperialismo explorador. Appiah (1997, p. 123) nega, portanto, uma unidade metafísica e mítica nas concepções africanas de identidade, mas considera que há um fundo comum de problemas que levam os escritores a formarem uma imagem de África, qual seja o histórico comum de colonização, as teorias e preconceitos raciais da Europa, a transição das fidelidades tradicionais para as modernas, e, mais recentemente, o crescimento da alfabetização e da economia moderna. Donde se conclui que essas transformações exógenas precisam ter um papel fundamental na idéia de pan-africanismo, portanto radicalmente oposta ao seu conceito original euro-racialista (Crummel), na realidade uma espécie de metafísica da comunidade.

O próprio escritor moderno, de resto, é um produto histórico, uma criação radicalizada na instituição da individualidade (eu, da palavra escrita) em oposição à coletividade (nós, das tradições culturais orais), só possível graças ao crescimento da alfabetização, do surgimento da imprensa, de um sistema literário (conforme a tríade autor- obra-público, de Antônio Cândido); o próprio escritor tem uma missão, de pensar e escrever seu universo, que é ideológica. Desprezar a dimensão histórica e política que o colonialismo teve na constituição do que é hoje a África demonstraria uma forte opção política.

Podemos fechar o parêntesis, pois julgamos que as considerações do filósofo africano já são suficientes para percebermos que o contexto sócio-histórico do escritor-intelectual consciente de seu papel político na sociedade marcará indelevelmente a sua obra. Frisamos que não se trata de fazer uma patrulha ideológica no ato criador, mas sim de constatar − a partir do princípio de que toda escrita é política − a dimensão ideológica das opções temáticas e estéticas, concretizadas na obra literária.

Não é o caso, portanto, de pensar na existência de uma “verdade da obra literária”, dado que a plurissignificação inerente à arte remete a uma riqueza inquestionável de

interpretações, o que, por outro lado, não impede que o leitor competente descubra, associado ao prazer estético, digamos, superficial ou inicial, um outro prazer, intelectual, um modo de conhecimento ou de problematização da realidade associado ao âmbito estético, inerente à literatura, que lhe permita atingir a totalidade em que está inserido. Com isso não estamos colocando em causa o valor da obra de arte, condicionando-o à sua perspectiva política (questão que será abordada no próximo capítulo); estamos, sim, e para ainda uma última vez responder à pergunta-título, defendendo que a dimensão política existente na socialidade do texto literário pode, por meio do âmbito estético, propiciar ao leitor − considerado aqui como sujeito ativo e responsável por esse processo dialógico − um conhecimento mais profundo da realidade.

Voltando a atenção para as obras objeto de análise deste estudo, avaliamos que, de uma maneira geral, o sentido político das três reside em escrever contra: contra uma situação de opressão que atravessa os séculos (A gloriosa família), contra a alienação nacionalista igualmente secular (As naus), contra uma ordem racional hegemônica (Catatau). Com a dimensão política potencializada por tratar-se de romances históricos, os três escrevem contra um discurso dominante, embora, ao mesmo tempo, em certa medida também coadunem com um discurso crítico hegemônico (como veremos ser o caso do pós- estruturalismo, desconstrucionismo, pós-modernismo), em graus variados (sobretudo a de Lobo Antunes e a de Leminski), sem, portanto, abordar as contradições essenciais do sistema capitalista, que são o foco da opressão e alienação criticadas; daí nossa tese da existência de