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3.3 Obra, Série Literária Nacional, História Nacional

3.3.2 As obras como signos de seu tempo: avanços e limites

Para atingirmos o âmbito ideológico das obras sob análise, portanto, a questão central é verificar de que maneira o tratamento formal pós-moderno é incorporado nelas, pois, conquanto guardem um aspecto engajado, no sentido de escrever contra uma situação de alienação, as três obras não deixam de utilizar procedimentos estéticos atrelados à desilusão do pensamento de esquerda, que se afasta de sua origem marxista dos anos 1950 e 1960 para fixar-se em questões periféricas. Pretendemos desenvolver neste tópico essa tradição, e também como isso está presente nas obras em análise, as quais participam de um

sistema literário nacional, mas também dialogam com a série mais ampla da literatura de outros países, além de serem influenciadas pelo pensamento intelectual, crítico, acadêmico.

A tradição marxista de meados do século XX a que nos referimos vincula-se aos estudos culturais, identificados com Raymond Williams e com outros intelectuais de formação marxista, reunidos no movimento da New Left. O que nos interessa aqui é perceber de que modo aquilo que era um posicionamento de esquerda, acabou tornando-se um modo de esquivar-se do problema central do modo de produção capitalista. Inicialmente, Williams desloca a idéia do sistema hierárquico na construção da cultura de T. S. Eliot e o princípio de Leavis de que a cultura pertence a uma minoria − que teria a incumbência de preservar os valores humanos e difundi-los ao restante da população por meio da educação como forma de minimizar as conseqüências nefastas dos males da civilização moderna −, para propor a idéia de uma cultura de todos, portanto também das classes trabalhadoras, denunciando que a elite monopoliza a produção de bens culturais simplesmente porque se apropria e decodifica uma posse comum (por exemplo, a linguagem). Entretanto, a partir da década de 1960, as profundas transformações econômicas e políticas enfraquecem um projeto da esquerda de mudança social, dando espaço ao pensamento pós-moderno, com sua ênfase na diferença em oposição ao universalismo e, assim, valorizando as culturas, no plural. Conforme Cevasco (2003, p. 25), “Esse novo movimento, por um lado, deitou por terra as pretensões à neutralidade e à inocência da cultura. Por outro, estreitou a noção de político, reduzida agora a uma prática cultural e à defesa do particularismo de diferenças culturais”.

A luta de Williams pela cultura comum é coerente com o propósito marxista de uma sociedade em comum, sem divisões de classes, oposta às formas correntes de desigualdade, o que passa necessariamente por uma revisão do sistema capitalista. Entretanto, como as necessárias mudanças estruturais não aconteceram, defensores da cultura de minoria agora se apresentam não só entre aqueles que advogam um cânone literário imutável (Bloom),

mas também na roupagem dos debatedores das novas tecnologias − para nós, o que se deve questionar não são os meios tecnológicos de comunicação de massa, mas sim o que eles veiculam, e a interesse de quem, ou seja, sua ideologia.

De acordo com nossa proposta sociocrítica, consideramos que os objetos artísticos alteram-se com as transformações sociais, normalmente não no mesmo ritmo, daí por que estudá-los como formas sociais. Longe de considerar as manifestações artísticas como resultado mecânico das condições materiais de produção, consideramos que o relacionamento entre base e superestrutura é dialético, num movimento em que os elementos externos são internos porque estruturam as formas dos projetos que, por sua vez, articulam os significados e os valores da sociedade. É nesse sentido que entendemos que buscar apreender a dimensão política do diálogo entre ficção e história nos romances pertencentes ao nosso corpus esclarecerá a ideologia subjacente aos procedimentos estéticos utilizados nas obras.

Esta fase de capitalismo tardio (MANDEL, 1990), caracterizada pela industrialização universal generalizada, homogeneização, superespecialização e divisão do trabalho, estende sua lógica a todas as áreas da vida humana. A cultura vira produto de consumo, perdendo sua potencialidade de questionamento do sistema − justo ela, que sempre esteve ligada à dominação e controle social, expande-se agora com os meios de comunicação, levando a um processo de aculturação muito mais abrangente, da política à vida íntima.

A dimensão ideológica dos romances em estudo, os quais não fazerem parte

stricto sensu dos bens difundidos pelos meios de comunicação de massa, ainda que possam

ser afetados por estes, dado o momento histórico vivido pelos seus autores, revela uma oposição a essa situação de alienação promovidas pelo sistema capitalista. Por outro lado, como são produtos sócio-históricos, portanto, signos dessa cultura, mesmo quando avançam contra a opressão suas opções estéticas podem acabar por incorporar elementos “alienantes”, cuja ideologia revela uma reconhecida incapacidade de alcançar a verdade, a essência (como

desenvolveremos no capítulo seguinte), e, no fundo, denota a descrença na possibilidade de

mudanças estruturais.

Desta vez começaremos pelo Catatau, por ser aquele que mais se caracteriza como uma obra de vanguarda, e permite perceber mais explicitamente a dimensão ideológica dos procedimentos estéticos utilizados. Abordaremos o romance inicialmente no plano formal e depois no plano do conteúdo, para mostrar que ambos estão coerentemente imbricados. Como já expusemos anteriormente, a obra explicita um irracionalismo, “representando” um mundo fragmentário; a linguagem deixa de fazer uma construção mimética do tipo organizado para ser auto-reflexiva, significar-se a si mesma, na medida em que o seu universo ficcional afasta-se da representação da realidade empírica, qual uma pintura abstrata, não figurativa, para colocar em primeiro plano uma matéria verbal não totalmente significante:

Maré, boré, jacaréacarajé! A laringelaranja arma a lesmória, espantanalho? Um ploma! O interpretérito desembrenha o aconhecimento, a alucilâmina apaziguezagua as cancramuscas. Oxaliás, o crifício não cancerne, o perfume ciclusulca... Espiralâmides trextram moluscofusculaturas, amassacramassam as pilhérnias que carcomascam os duélagos do ursucapiau! Marsup! Aurifúlgido, argenticerúleo dentorrostro. (LEMINSKI, 1975, p. 36)

Embora a linguagem se apresente de forma caótica (como em “O interpretérito desembrenha o aconhecimento”), lembrando mais o fenômeno do neologismo, inventando palavras que somente sugerem um significado já consolidado (como interpretar associado a pretérito em “interpretérito” ou acontecimento ligado a conhecimento em “aconhecimento”), isso se dá de maneira em certa medida racional, pois não só se reconhece a língua portuguesa no texto − ainda que em muitos momentos outras línguas sejam utilizadas, o latim, sobretudo −, como também se constata o respeito pela gramática: apesar das constantes alterações ortográficas, destinadas a formar os neologismos, mantém-se a sintaxe −

a sentença destacada possui sujeito, verbo e objeto; o sujeito e o objeto concordam em gênero e número com seus artigos; o verbo transitivo obedece a regência, e vem acompanhado de um objeto direto. O que mais acontece, portanto, são frases soltas, desprovidas de coerência no todo da narrativa − daí a forma irracional −, ainda que se possa deduzir com um mínimo de segurança um enredo: Cartésius, atormentado por Occan, aguarda Artichewski para explicar- lhe a realidade.

Entretanto, esse processo desarticulador aparentemente espontâneo perpassa toda a obra, revelando que há uma ordem, um princípio organizador da narrativa − essa característica paradoxal, justapondo ordem e desordem, também se encontra na organização gráfica do texto, como nesse fragmento, fac-simile do Catatau:

Que pensam os índices sôbre isso tudo? Índio pensa? Gê é gente? Aqui há dez anos, Artyczewsky mo dirá. Ocorre-me o seu pensa ainda... E não pensando mais? Com aquelas tatuagens tôdas, pensa ainda: Homem escrito pensa: Êsse pensamento por exemplo recuso, refuto, repilo, deserdo, rasuro, desisto. Índios comem gente. Pensamento, aqui, é susto. Êstes conceitos – eu os quero perpetuar, perpétuos em minha memória – êstes sucessos. Demasias. Êste mundo. Êste mato. Alvejaram-me com flechas do armazém de Zenão. Com gente, como será?

Sepultarem-nos nome e coração – um corpo, e me vem de súbito a fome de vorar Artyczewsky. Chegarei a tempo de ter seus pensamentos? (LEMINSKI, 1975, p. 26-27)

A margem esquerda é respeitada, mas a direita, não, o que, por sinal, em vez de abalar a uniformidade, acaba por harmonizar mais a leitura, pois a ausência de separação de sílabas deixa o texto mais fluido. O mesmo acontece com a ausência de marca de parágrafos: é uma desordem, todavia, como perpassa todo o texto, acaba por ser um princípio organizador; apontamos, também, na maioria do texto, a grafia da linguagem de acordo com o padrão culto da língua portuguesa, obedecendo à correção no uso da ortografia, da acentuação e da pontuação, manifestando uma organização por trás do todo caótico.

No plano do conteúdo, entendemos que o primeiro livro de Leminski não constrói um enredo realista por ser um romance-idéia, como o próprio autor o caracterizou com o subtítulo; não se encontrará no Catatau, portanto, a reconstituição de dados factuais, mas sim a abordagem de dois campos semânticos. De um lado, o debate de questões teóricas relacionadas à construção do conhecimento humano (“Não está na loja A LÓGICA – filial do empório A DEPREDAÇÃO DA REALIDADE que só explórica os ramos mais baldios do negócio de Generalidades' ”, LEMINSKI, 1975, p. 163), especialmente em torno da razão racionalista, do diálogo entre ficção e história, renovando o gênero literário romanesco, por meio de um trabalho estético que resulta em uma prosa poética, indicando a atenção com questões genológicas − para usar um termo, segundo Cristina Mello (1998), criado por Paul Van Thiegem −, as quais apontam a maneira como tensões oriundas da realidade são absorvidas pela estética, resultando em transformações nos modos e gêneros literários.

De outro lado, a problematização sobre questões políticas relacionadas à identidade americana e sua postura antropofágica em face da mundividência do opressor (simbolizado por Renatus Cartésio):

O rio está roendo a pedra até entupir o leito, donde vem chamarem-no Tolete, mas o que o tapa é seu próprio pulo, o recanto mais aprazível dêstes parques não se chama Buraco do Metesetemedos, que lhe pôs Maurício para não lhe bolinarem nas mudas de carnívoras que engordam com moscas batavas para não estranharem a dieta que terão que suportar quando chegar o momento culminante de enviá-las Atlântico acima para as côrtes da Europa pasma que não lhe pouparão aplausos às suas mandíbulas florescidas de tanto mascar mosquitos, transmitindo as diversas espécies de peste que contraíram nos canfundós... (LEMINSKI, 1975, p. 158)

Em ambos os campos semânticos evidencia-se a expressão mais cosmopolita do discurso social do romance de Leminski, o qual, entretanto, pode ser situado na história de seu país como um discurso contra o status quo, como mostraremos agora.

O Catatau foi publicado em 1975 (em edição independente do autor), tendo levado oito anos para ser escrito, ou seja, teve seu projeto definido na década de 60, quando Leminski publicou o conto “Descartes com lentes”, protótipo de seu romance-idéia. Naquela época, fazia sentido político muito mais engajado esse tipo de desconstrucionismo, pois diante da voga de autoritarismo que varria o mundo, com conflitos entre as duas maiores potências mundiais (Guerra Fria), ditaduras militares violentas que proliferaram na América Latina e um colonialismo tardio na África, de que Angola é o nosso exemplo, independente apenas em 1975.

Não é necessário retroceder muito na história para lembrar que a vida dessas nações do Terceiro Mundo, como ficou conhecida a parte pobre do planeta, foi feita de arbítrio e opressão como instrumentos da espoliação capitalista. No Brasil, 1822 é o ano da Independência, mas até 1889 o Imperador estava no poder, quando se instaura a República − tal advento, conforme parodia Machado de Assis em Esaú e Jacó, não passou de uma “mudança de tabuleta”, na medida em que as oligarquias do país continuaram fundamentalmente as mesmas. Com a industrialização e a imigração há o surgimento de uma classe proletária urbana, o aparecimento dos sindicatos que, entretanto, não têm acesso ao poder. A “Revolução” de 30 alça ao primeiro plano o primeiro Getúlio, carregado nos ombros por uma parte da elite econômica para instaurar a primeira ditadura civil republicana brasileira, que dura até 1945. Após uma onda de abertura política, em que a massa se sente mais politizada, os artistas e a intelectualidade de esquerda podem expressar a sua ideologia e se fazer ouvidos, por volta das décadas de 40 e 50, vem 1964, o golpe militar, 1968, censura, perseguições políticas, tal foi a época em que o Catatau começou a ser gestado.

Esse esboço é apenas para se ter uma idéia do contexto em que nasceu a obra de Leminski, e contra o que ela se posiciona, contra a ordem dominante, a barbárie, a

opressão, tudo isso em sua raiz: mais do que a lógica do sistema capitalista, a lógica dessa racionalidade ocidental, que o autor vai buscar na razão racionalista.

Como na década de 1960 a vanguarda está ocupada com as descobertas da linguagem (Leminski é filho do Concretismo, tendo publicado seus primeiros poemas na

Revista Invenção, ao lado de Haroldo e Augusto de Campos), o Catatau se volta para essa

questão e mostra que a linguagem permeia a relação do homem com o mundo de forma ontológica, deixando de ser algo abstrato que serve para representar o concreto do mundo para ser o próprio mundo, uma vez que não existe real sem ela (perspectiva pós-estruturalista, a que se filia o romance-idéia).

Desço de nôvo a formas larvares de existência através de uma atritude súspita, tudo e tudo como' Davantagem' A glória do nome: nada mais mingau e pelado de verdadeira natureza que os desmandos das coisas em volta de sua presença' (LEMINSKI, 1975, p. 164)

No âmbito do conhecimento humano, a discussão refere-se à racionalidade − não é à toa que o narrador autodiegético é Renatus Cartesius. Afirmando-se como uma paródia do pensamento do filósofo francês, o Catatau realiza essa intertextualidade por meio da negação do próprio método cartesiano, presente nas Meditações, em que Descartes coloca a necessidade de se limpar o espírito de todo o passado para que a dimensão intelectual pudesse operar em toda a sua plenitude, atingindo, assim, o desiderato do cogito.

O Catatau, por sua vez, explicita o fato de que a compreensão humana e a construção do conhecimento se dão pela presentificação do passado, realizada pelo sujeito do conhecimento, considerado como um construtor do conhecimento mediante a interpretação da tradição, como mostrou Hans-Georg Gadamer em seu estudo sobre a hermenêutica intitulado

O efeito se prosta aos pés da Causa e a adora, deusa boba que não olha a frente donde pisa, paçoca onde as salamandras engendram caraminholas que com elas mais se assembleiam' E o cu com as causas? Hermeneu, a Pedra dos Intérpretes, rocha avulsa em presença duma aberração incógnita delata seus processos, num icasmo passageste' A Fonte das Vêzes. (LEMINSKI, 1975, p. 177)

Outra oposição paródica presente no romance-idéia relaciona-se ao método de exposição para atingir a verdade: enquanto Descartes julgava necessário um raciocínio bem concatenado, ordenado do mais simples para o mais complexo, a enunciação do Catatau é composta de contradições, oposições, paradoxos, tudo oposto à linearidade racional cartesiana.

Olá da ilha' Quem se atrevisca para lá – dá na linha? Cai no sólido o bólide arquimédio, deixando no depósito um primóide de compassos espasmódicos. Simetrias o perseguntam, formas retas que restaram o restauram no ângulo da onda, aparece um, passa uma situação adiante, propõe um arrângulo. O gengisgonço é metódico, método sendo a manobra mais farisaica de escrever torto por ficções jurídicas. Mancho meu devaneio por intermédio de paralelíadas, isósceles mas se aproxeguem: jôgo de paciência, consigo. (LEMINSKI, 1975, p. 162-163)

Enquanto para Descartes é necessário um distanciamento do sujeito em relação ao objeto do conhecimento, para que a verdade possa ser conhecida sem a ação da subjetividade, de maneira que é mais o objeto que se apresenta ao espírito de forma clara, no

Catatau o sujeito declara-se envolvido pela realidade do novo mundo que não consegue

compreender:

Novo mundo todo diante, frase no bolso: o oeste, dando nas folhas desse inverno, fala francês pelas costas, que tal eu falaria. Recuso-me terminantemente a ser puro espírito, também precisa, o derrapadeiro dia, ser sã e ser salva a carne. Vinde a mim, como a um oráculo: curiosos se danem. Pretenda. Calcino, congelo. Fixo, dissolvo. Digiro, distilo. Sublimo, preparo: dirijo os catás alquímicos. Incinero, fermento. Multiplico, projeto. Converto, materializo. Longa data. Esmaganadora maioria. Proponho um brinde: pym na zdrowy' E toca a catar canjica. Qual foi o movimento? Philosophica Poranduba, Amphitheatrum Cartesianum. (LEMINSKI, 1975, p. 203-204)

Pelo distanciamento, Descartes pressupõe uma forma o mais límpida possível, para não macular a supremacia do conteúdo, considerado como fim; no romance- idéia, por sua vez, o conteúdo é a forma, o que permite que Occan interfira não somente na racionalidade do narrador-personagem Cartesius, mas também na nossa, como leitores, que também nos sentimos perdidos num “labirinto de enganos deleitáveis”, conseqüência da diminuição da distância épica. Além disso, há de se considerar a metalinguagem onipresente no Catatau, a tal ponto que faz parte mesmo da estrutura de composição da obra.

Batiza rios, riachos, bichos, diachos. Sabe lá com quantos adjetivos formei meu primeiro substantivo? Nenhum! Do verbo se faz o sobrenome que hamurabihitita entre nossas casas subliminares. Um jeito muito pronunciado. Sou folgado. É só dar folga, estou folgando e me afogando em volta: minha recompensa, uma expectativa frustrada. Um mero objeto de prazer. Sujeito. Verbo. Objeto. Um esquema e tanto. Estou que é ver Brasília: matracas batráquias, troncos áureos, falópios amarrando as trompas, prestaportô. Brasíliocartériomaquias! Concordo a lombardo; adalborto aberto ' Cismas na bruma, a proa urina. Aquarela do Japão. Juncos singram Singapura. A planta do incenso pinga uma lógica novinha em cada folha, insania pingens. (LEMINSKI, 1975, p. 199)

Ainda uma outra oposição revelada pelo Catatau: enquanto o cartesianismo advoga a distinção das idéias, o afastamento das perturbações, para que o espírito possa estar puro para receber a realidade de forma clara, o romance-idéia aproxima-se do pensamento Zen, que postula a “grata aceitação” de tudo o que há no universo, inclusive o que é ininteligível, exigindo uma atitude antiintelecual no conhecimento da realidade, admitindo, portanto, a perturbação e a dubiedade para uma experiência imediata abarcada em sua totalidade, diferente do método analítico racional de Descartes. Nesse sentido, notamos que o processo de composição do Catatau confere com o ideograma, na medida em que o texto é formado por fragmentos justapostos, signos imagéticos do cosmos que se relacionam sem linearidade ou causalidade.

O próprio título da obra confirma a aproximação do romance-idéia com a mundividência da corrente oriental Zen, professada pelo autor curitibano, tradutor de Bashô e praticante de algumas artes dos samurais, como a poesia hai-kai e a arte marcial (judô): não só, de acordo com o dicionário Aurélio, “catana” − espada dos guerreiros seguidores da filosofia zen −, como também pela possibilidade de leitura indicada por Salvino (2000, p. 126) como “cata ao Tao (Caminho)”, a busca pelos caminhos do zen, os quais, como o Tao chinês, estão em sintonia com a idéia de que “a ordem ativa do Espaço-Tempo regida pela compreensão de que a transformação e a mudança alicerçada numa contínua interação de opostos são princípios naturais do cosmos”.

No plano da estética, o processo de composição do Catatau utiliza o tempo todo as colagens, com associações às vezes mais claras, outras vezes mais obscuras, com intertextos já metamorfoseados − evidência da concepção de movimento e transformação permanentes − de textos mais ou menos conhecidos. O predomínio da intertextualidade de forma aparentemente aleatória, prolixa, com citações descontextualizadas no enredo, criam uma auto-reflexividade que alça essa teoria à temática da obra: o discurso do Catatau refere- se a si próprio.

Isto é uma história. Não é muito. Muitas começam assim. Era só haver uma vez e lá vinha de nôvo a mesma história. Era uma vez aquela história. Só uma vez. Esta história perdeu-se. Vamos dizer outra vez, em melhor ocasião. Isso é outra história. (LEMINSKI, 1975, p. 31)

O próprio romance como gênero − prerrogativa de representação na construção de uma narrativa, concebida como a organização de um discurso que atribui um sentido à realidade − tem a sua lógica ameaçada.

Considerando a série literária brasileira em que Leminski se insere, não há dúvida de que o Catatau constitui-se uma obra experimental, cuja extrema radicalidade

estética limita a possibilidade de o público leitor “médio” assimilar o seu potencial político, diferentemente de A gloriosa família, que introduz elementos novos no processo de