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Vimos neste capítulo que cada um dos três romances, por eles serem históricos, remete explícita ou implicitamente à busca de uma verdade, à construção de um sentido para a História − mesmo quando essa verdade consiste na invalidação de uma verdade absoluta, como acabamos de ver no Catatau. Vimos neles a perspectiva política de uma tensão humana concretizada por meio de um discurso social, seja afirmando uma história não escrita, do ponto de vista dos excluídos (A gloriosa família), seja questionando a História oficial em confronto com a realidade contemporânea (As naus), seja ainda questionando a possibilidade da escritura de uma História, dada a explicitação de questões transcendentais sobre a construção do conhecimento humano (Catatau). O que desde já fica claro é que o relacionamento apontado nessas obras entre literatura e história remete à necessidade de um aprofundamento da postura política desempenhada por elas. Pode-se falar de um tipo de engajamento, uma vez que as três, em graus variados e de distintas formas, como apresentamos aqui, problematizam a questão fundamental do relacionamento do homem com a tradição, vale dizer, a construção do conhecimento humano, a escritura da história, o desenvolvimento da memória histórica?

No que diz respeito a esse questionamento, sentimos a necessidade de aprofundar esses temas, a fim de diagnosticar: há atualmente, em que pesem os excessos de controles ideológicos e cerceamentos políticos da época “heróica” do entreguerras europeu, um engajamento “espontâneo”? A qualidade artística passa hoje pelo comprometimento político? Existe uma literatura de esquerda, que, em nome de uma verdade, escreva contra uma ditadura do cânone oficial histórico e literário? São essas questões, levantadas com base na leitura das obras apresentadas nesta primeira parte do trabalho, que causaram a necessidade

e justificam o próximo capítulo. Portanto, enquanto este se voltou para o discurso social, para o modo como nas narrativas se configura uma voz que quer falar a verdade, incorporando esteticamente tensões oriundas das relações sociais da sociedade de que provém, investigando essa relação na reescritura ficcional, na revisão do discurso histórico, o capítulo seguinte se debruçará sobre o exame dessa perspectiva, procurando identificar em que medida se pode falar em uma dimensão política, empenhada, relacionada, portanto, ao presente histórico das obras.

No quarto capítulo, adiantamos que esta busca da verdade nos levou a estudos acerca da existência de uma possível verdade absoluta, ou de uma verdade mais válida do que outras. Como já aludimos aqui, são questionamentos que nos remeteram à teoria do conhecimento, justificada para aprofundar a discussão com o pós-modernismo − que sustenta sobretudo As naus e o Catatau, e em certos aspectos dignos de análise, também A

gloriosa família −, por apresentar contradições com aquilo a que se propõe. Reconhecemos

que, isoladamente, usar a epistemologia para a análise isolada destas obras (exceto o Catatau, que, entendemos, remete a esse assunto de forma explícita, como demonstramos acima) seria como “aplicar” leituras teóricas ao exame de uma obra particular. Entretanto, a pesquisa deste

corpus em conjunto, para nós, indica a necessidade do aprofundamento nesse campo, tendo

em vista, principalmente: o uso da História, em níveis distintos, como interlocução na construção dos enredos; o onipresente questionamento sobre a verdade existente nesses romances históricos contemporâneos; a variedade dos procedimentos estéticos, desde uns mais realistas até outros mais fragmentários, usados como “arma” para esse questionamento; os discursos sociais existentes nas três obras, mais locais ou mais cosmopolitas, mas de qualquer maneira constituídos por preocupações políticas, filosóficas e estéticas envolvidas em relações de poder, como o poder de registrar a experiência, de construir o conhecimento

humano, de historiar, de narrar, de dizer a verdade, enfim. Entendemos que os estudos literários não podem se furtar a esse debate, uma vez instaurados pelas obras sob investigação.

3 LITERATURA E POLÍTICA

“nada existe que não seja social e histórico − na verdade, [...] tudo é, ´em última análise`, político”.

Fredric Jameson

No capítulo dois constatamos nos romances um discurso social que expressa preocupações em torno do problema da identidade e também da questão da construção do conhecimento histórico. Neste, desenvolveremos a tese de que essas escrituras, conquanto possuam diferentes abordagens estéticas, conflitantes no que diz respeito à velha discussão sobre a autonomia da obra de arte e sobre a utilização por vezes contraditória de procedimentos pós-modernos, podem ser vistas como obras de oposição, na medida em que são narrativas que escrevem contra uma ordem estabelecida, caracterizando-se, pois, como um pensamento de esquerda − em maior ou menor grau, comparativamente entre si. Os fundamentos epistemológicos dessas abordagens, que vão desde o enfoque mais realista até o mais pós-moderno, serão discutidos no quarto capítulo, a fim de aprofundar as nuanças ideológicas subjacentes a seus procedimentos, sob a perspectiva do materialismo histórico dialético.

Se no capítulo anterior nosso esforço esteve voltado para a explicitação da maneira como o discurso social se faz presente nas narrativas, ou seja, buscou focalizar a maneira como a socialidade do texto literário expressa tensões sociais, através da plasmação no passado do enunciado e no presente da enunciação de questões históricas e políticas da realidade social de que as próprias obras fazem parte, neste nossa atenção se voltará para o presente histórico do surgimento das obras, a fim de tentar perceber de que maneira essas

narrativas se relacionam com as séries literárias a que pertencem e também com a história, em razão do gênero das obras, com o intuito de tentar perceber em que medida os romances podem ser vistos como um posicionamento empenhado no sentido da oposição à dominação existente nas culturas de que participam. De acordo com nossa perspectiva sociocrítica, vamos tratar os romances como teorias e práticas culturais, inseri-los em seu contexto sócio- histórico e apreciá-los em relação à totalidade do momento em que emergem: o romance ajuda a entender melhor questões latentes na sociedade e estas, num movimento dialético, permitem entender melhor o romance que, afinal, não deixa de ser um produto de sua época.

Vimos que os romances estão imbuídos de uma voz que quer dizer a

verdade, estão voltados para uma re-visão da História, nos três casos questionando os

postulados da História oficial (voz autoritária de uma verdade absoluta), cada um à sua maneira: A gloriosa família explicitando a dimensão intertextual da História e, ainda assim, apontando para uma utopia, para a representação de um mundo possível; As naus questionando os pilares da memória coletiva, construída em torno de uma identidade nacional assentada em “falsos mitos”; e o Catatau questionando a própria lógica racional e, por conseguinte, o poder da linguagem e da representação na configuração de um universo possível.

Essa atitude de escrever contra uma ordem hegemônica faz parte de um amplo movimento do pensamento contemporâneo, que normalmente reivindica para si o adjetivo usualmente chamado de esquerda, que vai desde o engajamento direto, com obras comprometidas com causas políticas, até o outro extremo, do desencanto, com obras filiadas ao pós-modernismo (para Linda Hutcheon, essa linha de pensamento é de esquerda por se opor ao sistema capitalista; para Eagleton, representa o fracasso da esquerda em atacar as questões estruturais do capitalismo). Neste capítulo, faremos um breve panorama desse

movimento, com o propósito de situar os procedimentos estéticos utilizados nos romances aqui em estudo no debate atual acerca da perspectiva política da literatura.

Como o discurso social delimitou-se em torno do nacionalismo e da identidade nacional, iniciaremos abordando esse tópico; em seguida, passaremos ao panorama do pensamento de esquerda; depois, situaremos as três obras nesse panorama, buscando perceber em que medida os procedimentos estéticos do pós-modernismo, utilizados em graus variados nas três obras, são absorvidos pelo propósito político de explicitar as condições de dominação do sistema sócio-econômico-político envolvido pelas narrativas em foco, e em que medida suas socialidades remetem ao momento sócio-histórico contemporâneo. As implicações epistemológicas das questões emergidas neste e no segundo capítulos − a existência de uma verdade, as distinções entre ficção e história, o valor da obra de arte − serão abordadas no próximo sob o enfoque do materialismo histórico dialético, concluindo, assim, nossa investigação sobre o aspecto político do romance.