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2.3 O Culto da Antitradição no Catatau

2.3.2 Estética neobarroca como signo antropofágico

Neste tópico, procuraremos mostrar que a dimensão estética do Catatau, conformada pelo “barroco americano” ou neobarroco, possui uma forte carga política, concretização de um discurso social também brasileiro, mas sobretudo latino-americano, na medida em que representa um diálogo antropofágico com a cultura européia existente nas “duas partes” do continente (a espanhola e a portuguesa), aproximadas pela história de conquista, extermínio indígena, colonialismo, dominação e opressão, ditaduras militares, além do baixo desenvolvimento econômico que subjuga a região à condição periférica até o presente. Talvez em função desse passado, outro fator comum é a busca da identidade existente em ambas.

Para compreender o aspecto político do neobarroco, é preciso retroceder um pouco na história do continente latino-americano. Mesmo antes da chegada de Colombo, a América já havia sido inventada por um discurso eufórico que idealizava um paraíso terrestre como um espaço privilegiado para receber o projeto europeu de reforma social, discurso este que, em nome do nacionalismo, foi assimilado, por exemplo, pelo Romantismo. Entretanto, com a realidade de miséria e de conflitos herdados do colonialismo, a América Latina ocupa posição marginal no cenário econômico e também cultural, fenômeno que se acentua no século XIX (CHIAMPI, 1980, p. 96-107).

Em face dessa consciência de marginalidade, no século XX o discurso americanista vai reconstruir a imagem eufórica da América, como uma reserva dos ideais humanitários da cultura ocidental, em contestação às teorias da sua “inferioridade natural”. Toma-se, então, consciência da noção de diferença para superar a marginalidade histórica, e depois, de mestiçagem, não como um vício, mas uma qualidade resultante da capacidade de

assimilação biológica e cultural de várias raças. Nos anos 20, essa ideologia antipositivista atuava em duas frentes na formulação da idéia de América, valorização das culturas indígenas e reexame da cultura européia, além da crítica ao modelo cultural anglo-saxônico, atitudes críticas estas procedentes do auge do capitalismo norte-americano e do nacionalismo revolucionário mexicano. “Esses fatos contraditórios e divergentes definem a tensão que experimentam os hispano-americanos ao começar o século e que terá, como instância positiva, o despojamento do seu complexo de inferioridade” (CHIAMPI, 1980, p. 114).

Desses anos 20 fica, portanto, o utopismo com fundamento na mestiçagem, como renovação dos valores da civilização ocidental, e o utopismo com fundamento autóctone, como resgate dos valores das sociedades indígenas, os quais constituem uma ação política na direção da afirmação da identidade americana, resgatada da sua condição de marginalidade para ocupar o centro do debate. É assim que pode surgir nos anos 30 e 40 um enfoque na linguagem e comportamento mestiços que manifestam cinismo, hipocrisia e dissimulação como atitude antropofágica em relação ao dominador que explorou e humilhou desde a conquista. Como diz Ana Pizarro (2003, p. 23, tradução nossa), esse conceito faz parte “de um intento de refletir desde uma perspectiva continental os fundamentos e mecanismos com que a sociedade do continente foi construindo simbolicamente a sua vida”.

A concepção de mestiçagem aqui empregada afasta-se daquele sentido positivista empregado desde o século XIX em termos estritamente raciais, bem como da conotação lusotropicalista atrelada ao termo por Gilberto Freyre (1980), para encontrar a variação semântica empregada por Serge Gruzinski (2001, p. 62) como o “embate de civilizações ou de conjuntos históricos diferentes”, portanto apontando para formulações que expressam um combate no plano cultural, fruto de tensões e conflitos originados historicamente de questões econômicas e políticas de dominação. Por isso, o pensamento

mestiço se concretiza na estética por meio do desequilíbrio, do paradoxo, da contradição, recursos formais tipicamente barrocos.

Mais recente é o termo hibridação, escolhido por Canclini (2000) para designar mesclas interculturais, mesmo aquelas ocorridas no interior de uma mesma civilização, pois essa denominação, para o autor, além de não possuir a conotação racial a que o termo mestiçagem originariamente era vinculado, também alcança as formas modernas de hidridação melhor do que sincretismo, usualmente aplicado a movimentos simbólicos tradicionais ou à coexistência de formulações de ordem religiosa.

Preferiremos falar de mestiçagem, por ser aquele que se consolida como signo da cultura latino-americana no contexto ocidental. Para particularizar essa discussão no Brasil, basta lembrar que, já na década de 20, com o Modernismo, Macunaíma surge como marco na valorização da mestiçagem, utilizada para enfatizar o critério de diferença na antropofagia oswaldiana.

Esse panorama permite perceber o aspecto político da valorização do barroco, uma estética elaborada em face da cultura européia, que se constrói sob o critério da diferença, da mestiçagem, do hibridismo, como atributos valorativos positivamente na consolidação da identidade americana, como o resultado da formação plural de nosso povo. A literatura absorve essa ideologia e vai marcar uma renovação no discurso ficcional latino-americano em meados do século XX, utilizando-se de dois critérios, a

experimentação, incorporando novas técnicas narrativas que dêem vazão ao segundo

critério, a representatividade, isto é, a capacidade de expressar toda a complexidade cultural, social e histórica da América, o que se dá justamente no romance, gênero em que “toda experimentação acaba por encontrar seu lugar predileto” (RODRIGUEZ MONEGAL, 1979, p. 137). Essa renovação, que tem a mestiçagem como força propulsora, é sintetizada por Irlemar Chiampi (1980, p. 127) na citação abaixo, alusiva integralmente a

procedimentos estéticos que estruturam o Catatau:

Assim, na expressão artística, a “anormalidade”, e “deformação”, antes condenadas pela infidelidade ao modelo, passam a ser consideradas como efeitos estéticos excelentes, propiciados pela incorporação aluvional [como um rio, devoradora de influências] de materiais artísticos. O luxo da composição que corrompe a compostura do discurso literário, a problematização das normas racionais dos modelos utilizados, a estilização e a hibridização das formas são procedimentos “perversos” e válidos que dão à nossa cultura a sua inflexão lúdica e paródica. Em ambos os modos de apropriação das formas estrangeiras, a séria ou a jocosa, vê-se o signo da abertura americana à recepção geradora, da sua vocação antropofágica, que converte o produto final, não em cópia, mas em simulacro destruidor da dignidade do modelo.

A estética que vai abrigar essa postura é o “barroco atual, neobarroco”, como gostava de chamar Sarduy (1979) a esse barroco que vai exprimir o sentimento de americanidade, o qual, concretamente, se diferencia do barroco histórico por apresentar, além das características deste, também as anacronias, a experimentação, a incorporação das técnicas artísticas modernas, rompendo com a distinção entre gêneros, artes e linguagens, a predisposição para o diálogo com a história, a intertextualidade antropofágica e a problematização teórica acerca do próprio fazer poético (auto-reflexividade). A partir do momento em que a experimentação e a recreação do barroco se conjugam com o conteúdo americano − encontro de línguas, culturas, ritos, tradições, mas também a criação e a dor figuradas no descobrimento e na colonização − o “nosso” neobarroco se afirma como um fator de legitimação histórica, como reivindicação da identidade cultural de um povo colonizado (CHIAMPI, 1980, p. 7-12). Para Sarduy, o barroco americano não pressupõe um mundo com um logos precedente, mas simplesmente é o caos a que o mundo e a linguagem se converteram. Em suas palavras, o neobarroco “reflete estruturalmente a desarmonia, a ruptura da homogeneidade, do logos enquanto absoluto, a carência que constitui nosso fundamento epistêmico”. É a expressão do “desequilíbrio, reflexo estrutural

de um desejo que não pode alcançar seu objeto [...] Arte do destronamento e da discussão” (SARDUY, 1979, p. 178).

Bastante conhecido, também, é o pensamento de Calabrese (1988, p. 9-10), que, apesar de reconhecer no neobarroco a expressão da perda da integridade, globalidade e sistematicidade ordenada, representando, pois a instabilidade, polidimensionabilidade e mutabilidade, o vê como um “gosto” do tempo. Com relação a essa última opinião, preferimos a de Irlemar Chiampi (1998, p. 19) quando ela discorda do estudioso italiano ao dizer que “não cabe diluí-lo [o neobarroco] na ‘atmosfera geral’ no ‘ar do tempo’, como um ‘princípio abstrato dos fenômenos’”; antes disso, o neobarroco possui um “conteúdo ideológico, que provém de uma motivação cultural específica para a América Latina” (CHIAMPI, 1998, p. 19), e demonstra a consciência da situação de marginalidade que lhe foi imposta, razão por que se destina ao questionamento da história oficial para interpor uma visão crítica autenticamente americana.

Ainda na constituição do barroquismo americano, resta lembrar duas de suas teses mais importantes, conforme apresenta Chiampi (1998, p. 6-8). A primeira é a do próprio Carpentier, que, partindo da teoria da universalidade do barroco de Eugênio d’Ors, entende o barroquismo como uma constante humana, que encontra na América o espaço privilegiado para o seu desenvolvimento, em função da formação híbrida e da consciência da “criolledad” do homem do Novo Mundo, além da incapacidade já inaugural de dizer a inesgotável novidade da realidade americana. A segunda é a de José Lezama Lima, que já em 1948 defende o barroco não como uma “constante artística” (d’Ors), mas como uma “coisa nossa”, oriundo do hibridismo americano, idéia que sustenta sua tese, desenvolvida em La expresión

americana (LEZAMA LIMA, 1957), de que o barroco é um devir baseado nos princípios de

plutonismo (de Plutão, Inferno, fogo que consome), mediante a ruptura e reunificação de

fragmentos que geram uma nova ordem cultural.

Em ambos, o neobarroco se mostra como uma arte revolucionária, com o propósito de fazer uma “Contra-Conquista”, para utilizar uma expressão de Lezama Lima, o que gera uma diferença fundamental em relação ao barroco histórico: enquanto este está atrelado ao autoritarismo da Contra-Reforma, aquele expressa uma atitude de subversão diante do poder autoritário.

Com base nesses apontamentos, agora fica claro perceber que a diegese do romance-idéia é construída com os procedimentos que compõem o neobarroco como expressão da americanidade: proferido por um narrador autodiegético, um duplo textual do filósofo racionalista René Descartes, justamente aquele que defendia um método para se chegar à verdade, o discurso narrativo se apresenta completamente caótico, numa sinuosidade vertiginosa recheada de hipérbatos e hipérboles que se espraiam pelas 213 páginas do livro de um só parágrafo, representando, com sua dimensão plástica da linguagem, o real maravilhoso idealizado por Carpentier como uma característica do mundo americano. No livro de Leminski prolifera o descritivismo com palavras que não conseguem nomear, deformadas a ponto do nonsense, revelando uma incapacidade do europeu de compreender o espaço americano:

Na bôca da espera, Articzewki demora como se o parisse, possesso desta erva de negros que me ministrou, - riamba, pemba, gingongó ou pango, tabaqueação de toupinambaoults, gês e negros minas, segundo Marcgravf. Aspirar êstes fumos de ervas, encher os peitos nos hálitos dêste mato, a essência, a cabeça quieta, ofício de ofídio. Cresce de salto o sol na árvore vhebehasu, que é enviroçu, embiraçu, imbiroçu, aberaçu, aberraçu, inversu, inveraçu, inverossy, conforme as incertezas da fala destas plagas onde podres as palavras perdem sons, caindo em pedaços pelas bocas dos bugres, fala que fermenta. (LEMINSKI, 1975, p. 2-3)

Há também a ruptura com a linearidade temporal, apresentando as impressões do narrador influenciadas pela irracionalidade que permeia o seu discurso:

Êste mundo não se justifica, que perguntas perguntar? Devo lazer. Esta bruta bêsta, temperando a corda ao contrário dos ponteiros dum relógtio, para nunca conduzir-se, estacionou incógnita na reta. Aí o galho. Versar com as pessoas é dividir o todo que somos em partes, para efeitos de análise, para sermos comprendidos, mister lembrar Articsewski da desgraça da preguiça que se abateu sôbre mim. A fumaça acima não a demove tão pouco de seus propósitos absenteístas. Êste mundo é o lugar do desvario, a justa razão aqui delira. (LEMINSKI, 1975, p. 4-5)

Além disso, abundam no Catatau temas caros ao barroco, como também já notara Salvino (2000, p. 223-290), o embate entre corpo e mente, os paradoxos da linguagem, a metamorfose, a monstruosidade, a vida e o sonho:

Unhas e lentes dm mecanismo de passarinhos operam desde milagres até metamorfoses. Omito. Pandorgas da China apreciam os elementos das intempéries. Um dia, a selva desmorona em cima de Mauritstadt e a afunda na lama e no calor. Vai em cima. Deu-lhe um golpes no calcanhar, mas como não contra Aquiles, para sofrer como os burros ferrados que escoiceiam as fechaduras como se fôssem cascavéis descansando o cotovelo, aí consagrou o resto. Não, êsse pensamento, não, ainda credo num treco. Claro que já não creio no que penso, o ôlho que emite uma lágrima faz seu ninho nos tornozelos dos crocodilos beira nilo. Duvido se existo, quem sou eu se êste tamanduá existe: Da verdade não sai tamanduá, verdade quero aqui. (LEMINSKI, 1975, p. 5)

Tudo isso delineando a forma do barroco histórico do século XVII, apontando o que a realidade tem de aparência, oferecendo um verdadeiro diagrama da época, a novidade americana, a metamorfose contínua e o suceder das aparências, que se materializam na linguagem com recursos literários somente incorporados pelo neobarroco no século XX: a palavra-montagem, os neologismos, o ato gratuito, a anamorfose (jogo ótico que deforma o objeto), denotando que as palavras se confessam incapazes de dizer, registrando a falência do projeto europeu no Novo Mundo, que domina e devora o estrangeiro pela

mestiçagem − como diz o narrador do Catatau, “A contaminação da Pureza” (LEMINSKI, 1975, p. 160).

Esse panorama mostra que, além dessa questão ontológica da relação de cada obra com a tradição, a literatura latino-americana tem uma dimensão política que é a sua relação, de um povo colonizado e (até hoje) subdesenvolvido economicamente, com a tradição do colonizador. Há no continente, portanto, um conjunto de escritores (como Borges, Cortázar, Carpentier, Lezama Lima, García Márquez) que não aceitam a condição de povo colonizado culturalmente e se voltam contra a perspectiva que coloca a tradição européia como superior e contra todo tipo de imperialismo cultural, por meio de um discurso baseado na destruição, criando, nas palavras de Haroldo de Campos (1981, p. 13), “Uma nova idéia de tradição (antitradição), a operar com contravolução, como contracorrente oposta ao cânone prestigiado e glorioso”.

Poder-se-ia objetar a efetividade da aludida atitude revolucionária atribuída aos romances neobarrocos. Contra isso, trazemos a interessante contribuição de Olviedo (1979, p. 437-454), para quem a literatura latino-americana, com aquela temática predominante nos anos 1920 a 40, de apresentação dos países (o “romance da terra”) e depois de denúncia social, acabou por educar o povo, muitas vezes politicamente. Entretanto, veio a crise de representação que, em certos casos, apresentava inconsistência estética e, muitas vezes, demagógica − a ânsia por postular uma causa acabava por prejudicar a força realista do relato −, o que lembra as palavras de Carpentier (1971, p. 17), para quem a tarefa do romancista americano é “inscrever a fisionomia das suas cidades na literatura universal, esquecendo-se de tipicismos e costumes” . Voltando a Olviedo, vemos que, com o processo de urbanização, o romance deixa o campo em direção à cidade, um mundo mais complexo, e o romance fala por si, sem querer provar nada, tentando explorar toda a riqueza da natureza humana; a luta política se acentua em outros campos (políticos, armados), cujo ápice se

encontra na revolução cubana, e, no campo da expressão, outros meios (TV, cinema, foto, jornal) passaram a exercer o papel antes reservado à literatura realista. Então, os escritores tomam consciência de seu papel com a linguagem, a partir do que é possível a criação estética, a imaginação, a contradição, a desmontagem das formas e a prosa poética de um Leminski.

Caracterizado como uma obra de vanguarda na série literária brasileira, o

Catatau se constitui em um romance histórico sui generis, afastando-se daquele modelo

tradicional de linhagem scottiana, paradigma no século XIX, no qual a reconstituição dos grandes fatos tinha uma preocupação com a verdade histórica. No romance-idéia do brasileiro há justamente o intuito de desconstruir o discurso autoritário da história oficial, motivo pelo qual ela é utilizada como um intertexto paródico, explorando suas contradições e sua inconsistência em dar conta de revelar o “real”, como parece ser a sua pretensão. A ficção garante liberdade irrestrita ao escritor para romper os tabus, desmitificar os heróis, corromper versões, apontando para um redimensionamento da história − no nosso caso, da formação do Brasil e do continente americano. É nesse sentido que nos textos neobarrocos, de que o

Catatau é um bom exemplo, duas categorias aparecem ameaçadas, a temporalidade − que

deixa de ser linear para incorporar a ilusão de movimento, um tempo cíclico destruidor da consecução e da lógica da causa e conseqüência − e a categoria do sujeito, aquele que, agora incapaz de ordenar e dar sentido, só pode produzir o caos, daí a visão pessimista da história oficial (CHIAMPI, 1998, p. 13-18).

No Catatau o que está em questão é o projeto não só holandês, mas também europeu, civilizado, branco, que visava subjugar os povos militarmente mais fracos, impondo- lhes, a fim de perpetrar o seu domínio, a lógica ocidental (européia) simbolizada no romance- idéia pelo modo de pensar cartesiano.

A reta da Europa curva-se ante o Brasil. Passar para a América: cachimbos da jamaica, ouro do peru, alpaca de paramaribo, quetzal de manágua, lixo de catânia, administração castelunha, varinhas do reino de condão, pontos de vista sírios, preocupações típicas, desmentidos a Euclides, as mais recentes mutações obtusas através de enxertos gringos, nos gonzos crioulos... Nasceu lá, é o cão, a serra de paranágawa' À luz – sair, a todo lume abrir clareira, albar em Saturno: resplanso em raio, fulmingo no chefe da festa no campo' Viro mal, completo insatisfalatório' Não vou alim. Lembrando e fundando cidades, criamos as essências. (LEMINSKI, 1975, p. 137)

E o que se vê no livro é a falência dessa lógica, concretizada na falta de sentido que perpassa a narrativa, o que confere à obra de Leminski a designação de anti-

romance, na acepção de Fernando Alegría (1979, p. 243), uma “imagem do mundo

contemporâneo como um caos e do homem como uma vítima da razão”, como nessa passagem do Catatau:

O verdadeiro aeropagita enclespydra o pseudeurofagista. Ainda há patifes em Brasília. Fixa está a idéia, mas a cabeça vacirílica... Que faz um nome dêstes num ar tão a cristal? O pedreiro, toc, toc, toc: a pedra – ela psiu' A forma, primeiro pêso. Não há bisonho, ninguém desocupado, tudo muito quieto como fazem quando, puros de álcool, trabalham nestas partes. Entrouxemouxe o estrambóide, cara de anguejo dormingonho? Prefiro papar o miúdo, na quirera está a nata da quimera. Desfaça a tez, abra a caldraba, vá de gar, perca o minho, siga o douro, pedre o gulho' Pensa que se fazer de pênsil leva além dos parênteses? A Levitação da Corporeidade. Lapis trahens ferrum. O lenhador: pã, pã, pã... caracumbas' (LEMINSKI, 1975, p. 158)

Confrontados os registros históricos com a diegese do romance-idéia, verifica-se não haver uma preocupação com a verdade (não há registros, por exemplo, da estada de Descartes no Brasil); muito mais importante no livro é o questionamento do pensamento cartesiano, o qual se mostra insuficiente para dar conta da realidade cuja terra “é um descuido, em acerca, um engano de natura, um desvario, um desvio ...” (LEMINSKI, 1975, p. 213), culminando na falência dessa lógica decretada por Occan, o monstro semiótico que substitui a certeza pelos “enganos deleitáveis” no pensamento de Cartesius e que se materializa na própria linguagem em si em metamorfose.

A figura é figurada. Desvidro-me. Não representa o que apresenta. Em outras palavras, são outra coisa. A figura continua a mesma, ocorrem acidentes no seu plano mas ela confirma o que diz: os sintomas são êsses, os sistemas são outros. O Sigilo cai sôbre o fato, armazém de armadilhas, fato nulo, ato nulo. Algomonstro está oculo atrás do ato nulo. O fato: Occam. O mapa é êste. (LEMINSKI, 1975, p. 6-7)

Esse expediente, mais que recorrente, cerne da estrutura do romance, coloca em primeiro plano o papel da linguagem no processo de vivificação da tradição − não há pensamento sem linguagem −, relevante para a atitude antropofágica. Nesse sentido, Occan não poderia ser mais apropriado, pois, como já disse Leminski (1989, p. 208), ele “é o próprio espírito do texto. É um orixá azteca-iorubá encarnando num texto seiscentista”. Assim, o poeta curitibano expressa indelevelmente a concepção presente no Catatau acerca do conhecimento humano, da verdade, da maneira como se constrói a tradição, registrando, também, uma perspectiva crítica em relação àquele relacionamento entre uma cultura mestiça, híbrida, nesse sentido rica, de raiz afro-indígena-latino-americana (“azteca-iorubá”), e a cultura “pura”, una, européia (“seiscentista”).