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3.3 Obra, Série Literária Nacional, História Nacional

3.3.1 Radicalidade estética e ideológica

O problema é ver em que medida a questão ideológica é verdadeiramente radical, e em que medida é o signo de uma época, com avanços mas também com retrocessos, uma vez que pode ser expressão da alienação, se bem vistos seus fundamentos epistemológicos − como esperamos fazer no capítulo quatro.

Esse debate, aqui enfatizado entre literatura de esquerda e pós-modernismo, em vista dos procedimentos desta corrente usados nos romances aqui em estudo (de forma reduzida em A gloriosa família), atualiza uma discussão mais antiga sobre a função da literatura, que remonta os anos 1850, quando se opunha o engajamento à arte pela arte. O fato é que os opositores aqui mais estudados, dentre eles os atuais Linda Hutcheon e Terry Eagleton, polarizam suas idéias, a primeira defendendo o pós-modernismo e sua condição política e o segundo criticando-o justamente por não ser engajado.

O professor Benjamim Abdala Júnior faz uma síntese que permite aproximar ambas as teorias em seu livro Literatura: história e política, no qual percebemos algo que em Eagleton não nos pareceu explícito, a necessidade da radicalidade estética fundida à radicalidade ideológica para o engajamento, capaz de propiciar a superação do conformismo alienador, idéia que relembra a velha discussão sobre a autonomia da arte.

Se Lukács (1968) achava que a arte engajada deveria ser mais tradicional, organizada, voltada para as questões sociais, e Adorno (1970; 1973) acreditava no papel revolucionário e desalienador das vanguardas, únicas capazes de experimentar o novo, ainda não cooptado pela indústria cultural, o professor brasileiro defende a ruptura com os padrões estéticos, mas não de forma experimental como prega Adorno, associada a uma outra radicalidade, a ideológica, configurando assim uma dialética entre o atendimento do horizonte de expectativa do leitor competente, por meio da contemplação das tensões sociais, traduzidas para o modo artístico, e o rompimento de sua condição de conformado, mediante a utilização de recursos desestabilizadores apropriados da série literária nacional ou estrangeira.

Com base nesses elementos, entendemos que não importa a qual corrente teórica os procedimentos utilizados na obra de arte estejam vinculados, o relevante é que eles sejam apropriados para despertar o leitor, permitindo-lhe o acesso a uma visão de mundo não

redutora − o que não invalida a análise dos aspectos alienantes adotados na obra, como fazemos nesta tese. Essa é a leitura que fazemos de A gloriosa família, uma obra que incorpora alguns mecanismos de desconstrução tipicamente pós-modernos, como o descentramento de perspectivas, a fragmentação do ponto de vista e a auto-reflexividade, só que no sentido de um engajamento, na medida em que, por meio destes mecanismos, procede à revisitação da História por meio de uma visão de baixo, dos excluídos ou vencidos, porém sem transformar a obra em um laboratório em que, como acusa Eagleton, “tudo é válido”. Ao contrário, o livro é bem organizado, com começo, meio e fim dispostos em ordem cronológica

ascendente, portanto linear, uma narrativa bem marcada historicamente, mas utilizando recursos narrativos tanto da pós-modernidade como da tradição realista para presentificar aspectos culturais importantes do passado. Ao passo que no Catatau, como veremos mais pormenorizadamente abaixo, o vanguardismo é mais evidente, embora seus procedimentos possuam uma ideologia que contradiz a revolução que a obra opera no âmbito estético. Quanto a As naus, seu engajamento é limitado, na medida em que tanto os procedimentos estéticos quanto a abordagem do tema tratados na obra já faziam parte do meio literário português.

A tese de Benjamim Abdala − cuja pesquisa também se concentrou sobre as literaturas de língua portuguesa no século XX, aprofundando a compreensão sobre o engajamento literário no Brasil e Angola, além de Portugal − é de que, para o escritor engajado, o diálogo intertextual realizado com a tradição produz na estética da obra as “prefigurações do imaginário político”, geralmente de forma não-consciente, as quais “constituem articulações ‘comprometidas’ com o devir social e que deslocam formas de representação mais ‘fotográficas’ da realidade [...], impregnando-a das marcas (ideológicas) da subjetividade do sujeito”. A obra, portanto, produzida com uma linguagem artística produto de uma práxis social, incorpora “novas configurações formais em oposição às marcas do conformismo que podem neutralizar o novo imaginário político” (ABDALA, 1989, p. 21- 22).

Assim, sem se fechar num particularismo exclusivista, o escritor engajado estabelece uma dialética entre o particular (regional, ligado a uma cultura específica) e o universal (social, que une todos os povos), o que lhe permite um distanciamento necessário para tratar das questões nacionais, mas sem “patrioteiros reducionistas” (ABDALA, 1989, p. 127). Por exemplo, em vez de abordar os problemas da realidade a partir de uma concepção pitoresca, tomando o caso da África, ver nela, como em A gloriosa família, as condições de

dominação atuantes no desenvolvimento histórico, fugindo da imagem estereotipada com a qual segmentos dos países desenvolvidos vêem as nações em emergência, visão por vezes assimilada por estas.

Essa infusão na realidade, porém, deve ser tratada esteticamente, aproveitando o que a modernidade tem para oferecer ao escritor engajado para causar o estranhamento no leitor. O que vem de fora tem de ter base numa necessidade concreta, caso contrário se dará a alienação. Para a obra ser, simultaneamente, inteligível e romper o conformismo, torna-se necessário uma simbiose entre a redundância e o novo, tendo em mente o público virtual a que a obra se destina, sem esquecer a especificidade da literatura.

No caso dos escritores engajados de língua portuguesa, por exemplo, Abdala (1989, p. 140-1) diz que eles, ao mesmo tempo, têm um perfil militante, a maioria ligada ao socialismo, e vêm adquirindo consciência da autonomia da literatura, na medida em que se apropriam dialeticamente das conquistas estéticas para elaborar a síntese com uma obra livre, porém fundamentada no sentido da alienação, ficando entre a necessidade objetiva (social) e a dominância subjetiva (individual).

É esse tipo de liberdade que permitiu a Pepetela questionar a real motivação do processo revolucionário no romance Mayombe (PEPETELA, 1980), em que não havia heróis impolutos, mas também racistas, tribalistas, ambiciosos, futuros dominadores, etc. Mesmo no romance Yaka (PEPETELA, 1984), que conta a história de uma família branca angolana que não aceita os negros, texto muito marcado pela história angolana do último século, a história serve para provar uma espécie de tese, que é: o branco que nasceu em e amou Angola e foi capaz de optar por ela, ficando lá na independência, é tão angolano como outro qualquer.1

1

Há, nesse romance, provavelmente, uma atitude de autodefesa do autor, que é branco e nos transmite uma posição que poderá ser lida como a de um desencantado com a situação (mas não dissidente), professor de sociologia no país, viajando muito e vendendo livros pelo mundo, sua forma complementar de subsistência, visto que abandonou a política ativa.

Repare-se que o que está em discussão é a autonomia da arte, só que usada em prol do engajamento. Conforme Abdala (1989, p. 150):

Sem elitismos e também sem paternalismos, o escritor engajado do macrossistema literário da língua portuguesa apercebe-se hoje de que a literatura, além de um fato ideológico (e, como tal, não pode ser desvinculada das situações nacionais e sociais), possui desenvolvimento próprio − a série literária, com articulações infra-estruturais mediatas, o que favorece a enunciação crítica. Assim ele, enquanto criador, poderá libertar-se da referência obsessiva à factualidade imediata, direcionando-se, na dialética temporal, para colaborar na construção de uma cultura nova, associando raízes históricas e devir social.

Nesse engajamento literário dialético, o escritor tem consciência de que a representação da história é necessariamente incompleta, motivo pelo qual ele se afasta de uma suposta verdade totalitária. Mesmo porque a representação literária não se atém aos fatos ipsis

litteris, contando a vida “como ela é”, mas recria artisticamente as tensões da sociedade que

podem despertar a reflexão no leitor, possibilitando-lhe livrar-se da situação alienadora cultivada pelos modismos da indústria cultural.

Ao fazer isso, o escritor estabelece uma dialética entre o interno (nacional) e o externo, cuja síntese é o novo que ele busca, promovendo uma renovação da série literária. Não é o caso, portanto, de a literatura nacional sofrer uma influência negativa no contato com a literatura estrangeira, inclusive porque atualmente não vigora mais o conceito de literatura

fonte − como se deu sobretudo até o século XIX. Para Abdala (1989, p. 27), as melhores obras

engajadas são justamente aquelas abertas às conquistas estéticas, renovadoras do que ele chama de patterns próprios da literatura nacional. A atualização da série cultural é marcada, assim, pela apropriação ideológica cavada a partir da visão de dentro, propiciada pela utilização de elementos identificados com a perspectiva de esquerda, como o uso de outras variedades lingüísticas não-padrão, dialetos, línguas (não portuguesas), os quais interpõem outra visão (não hegemônica).

Sintetizando, o engajamento se dá pela apropriação na perspectiva nacional, em situação de dependência, atestando a consciência do escritor de que o sentido ideológico do trabalho artístico reside menos nos fatores referenciais do que na dinâmica renovadora da série literária, capaz de desautomatizar o senso comum do leitor com uma literatura aberta à modernidade.

Pensando sob essa perspectiva, é possível um relacionamento dialético entre pós-modernismo e engajamento, desde que as apropriações estéticas daquele se configurem em articulações ideológicas para as finalidades deste − como pensamos acontecer sobretudo em (certos procedimentos de) A gloriosa família, como mostraremos a seguir. Para a arte também ser revolucionária, concretizando os intentos sociais, é necessário a ruptura estética, entretanto sem experimentalismos (existentes no Catatau), ressalvada, portanto, a condição de comunicabilidade dessa nova síntese, a qual, sem desprezar a técnica, pode desautomatizar o leitor, concebido como um sujeito ativo com habilidades interpretativas.