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2.1 Construção da Angolanidade em A gloriosa família

2.2.3 O passado retornado ao presente

Delimitaremos aqui nossa análise em dois aspectos, interdependentes, da problematização histórico-social levada a cabo na obra do autor português, um mais imediato, que acabou por desencadear um outro, mais genérico. O primeiro diz respeito à tematização existente na obra do processo de regresso dos ex-colonos de África a Portugal. As quase cinco décadas de ditadura solaparam a economia portuguesa, fenômeno que se agravou com os catorze anos de guerra colonial. Não que a situação do país estivesse antes boa; por outro lado, não se pode esquecer que, enquanto o salazarismo se fechava ao mercado global, às multinacionais, a Europa se modernizava. De qualquer maneira, a situação que os retornados encontraram foi um país arruinado economicamente e com problemas de ordem social, diante das dificuldades de absorver o contingente de pessoas que regressava das ex-colônias, uma nação que lhes era estranha e rude, tema também de outra obra de Lobo Antunes, Os cus de

Judas.

Essa tensão social que marcou profundamente a sociedade portuguesa está presente em As naus: além de os próprios retornados não se sentirem bem com essa nova

situação, ninguém tampouco os queria de volta, nem suas próprias famílias (“a minha família de queixo amarrado em moedas de prata nas órbitas a fitar-me com reprovação, Este é o que foi para Luanda morar no meio dos pretos [...]”, (ANTUNES, 2000, p. 15), nem o Estado:

o governo desocupou o hospital de tuberculosos que passaram a tossir nos jardins públicos hemoptises cansadas, e vazou nas enfermarias de muros de cenas de guerra e de actos piedosos, impregnados pelo torpor da morte dos desinfectantes, dos colonos que vagavam à deriva, de trouxa sob o braço, nas imediações dos asilos, na mira de restos de sopa do jantar. (ANTUNES, 2000, p. 235)

A questão que se coloca, portanto, é a da recusa, pois ninguém quer mesmo que essa legião de ex-colonos venha à metrópole com seu cheiro de África usufruir os parcos benefícios sociais e disputar os primeiros lugares nas filas de desempregados, fato que indica a fragilidade do conceito pessoano de “minha pátria é minha língua”. O romance está voltado para essa realidade social, sem deixar hipóteses para uma saída de tipo mítico, como vemos no lugar destinado aos retornados na narrativa, em vista da dificuldade do país para absorvê- los:

[...] o homem de nome Luís viu pela última vez o desmedido edifício do asilo composto de varandas sucessivas e cercado de caramanchões indecifráveis, adornado sob a meia laranja da lua. Viu os pavilhões na trama dos buxos, as estufas dos laboratórios em que chiava o medo das cobaias e a casa mortuária repleta de múmias quitinosas, idênticas aos caimões dos museus. Nos quartos dos médicos deslizavam de quando em quando os pavios de navegação da insónia dos doutores, que desciam seminus ao armário dos remédios à cata da garrafa rolhada dos hipnóticos. O colégio dos dalai-lamas era uma nave em cujo sótão surdiam sem rumor cardumes de morcegos, de caninos cruéis como mestres de francês. Carrocéis de cavalinhos e outras ferramentas de tortura giravam numa espécie de redil destinado a esmagar rótulas e a abrir cabeças, que o farmacêutico do quarteirão suturava amorosamente num aparato de agrafes. (ANTUNES, 2000, p. 243-244)

O segundo aspecto extrapola essa realidade imediata, por abordar o problema apontado da consciência nacional em torno da identidade, envolvendo o passado

glorioso em contraponto com o presente do país. É aqui, a nosso ver, que reside a reflexão mais aguçada, que faz de As naus uma obra presente, na medida em que esse problema persiste no seio da sociedade portuguesa atual, que vive uma tensão oriunda da oposição entre o passado grandioso − que de fato nunca existiu, mas mesmo assim tendo sido criado pelo discurso institucional, histórico e literário − e a realidade. É nesse sentido que vemos a oposição na obra entre os maiores vultos da tradição portuguesa, ícones históricos do país, envolvidos no presente da enunciação em uma situação de ostensiva decadência, como “ressuscitados que povoam as trevas de Lixboa” (ANTUNES, 2000, p. 94). O homem de nome Luís, na miséria e sem ocupação, vaga com o defunto de seu antepassado em decomposição, “Esta porcaria” (ANTUNES, 2000, p. 27), à procura em vão de um lugar digno onde sepultá-lo, andando pelos “bairros periféricos sem electricidade nem água, com bêbedos e cadelas a ferverem raivas nas esquinas” (ANTUNES, 2000, p. 29), num lugar que se lhe afigura hostil: “os perfumes e os rumores das trevas se me tornarem estrangeiros porque ignoro esta cidade, porque ignoro estas travessas e as suas sombras ilusórias” (ANTUNES, 2000, p. 28).

Se de um lado esses recursos rebaixam a História oficial, de outro registram um espaço deteriorado, apontando um pessimismo com a situação do país. Como diz a personagem agrimensor, “Até o Pólo Norte [...] é de certeza melhor do que esta coisa” (ANTUNES, 2000, p. 138): “a noite de Lixboa [...] cheira a butano, a fumo de farturas, à peste dos séculos idos, a mulas de frade e a fezes de chibo doente no ondeado do terreno vago” (ANTUNES, 2000, p. 38).

Em suma, esse é um discurso social que procede a um balanço da história portuguesa e a depara com o presente. Até que ponto esses procedimentos estão pautados em uma posição de esquerda, devido às suas concepções de realidade, de representação, de

verdade, isso veremos nos capítulos seguintes, a fim caracterizar o conceito de literatura comprometida, de acordo com os pressupostos do materialismo histórico dialético.