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CARTOGRAFIA (ESQUIZOANALÍTICA) DO DESEJO – A ECOLOGIA DAS TRANSESCALAS E DA PRODUTIVIDADE

3.1 AFINAL, O QUE É REVOLUÇÃO?

Uma forma de pensar o Direito ligada ao atrevimento. Atrever-se a singularizar, propondo novos olhares sobre o fenômeno político-jurídico – indissociável do desejo –, vê-lo numa perspectiva micro, contrariando as metanarrativas135 das grandes revoluções, das (pseudo)transformações macropolíticas que costumam desaguar numa enunciação com o escopo de dominação. É isso o que Guattari e Deleuze evidenciam com o conceito de

revolução molecular.

O termo revolução é já gasto e ambíguo. Designado para vários fenômenos distintos. É preciso, então, chegar-se a um mínimo de definição. E Guattari urde-a:

Uma revolução é algo da natureza do processo, de uma mudança que faz com que não se volte mais para o mesmo ponto. O que aliás até contradiz o sentido do termo “revolução” empregado para designar o movimento de um astro em torno de outro. A revolução seria mais uma repetição que muda algo, uma repetição que produz o irreversível. Um processo que produz História, que nos tira da repetição das mesmas atitudes e das mesmas significações. Então, por definição, uma revolução não pode ser programada, pois aquilo que se programa é o dejà-là. As revoluções, assim como a História, sempre trazem surpresas. Por natureza elas são sempre imprevisíveis. Isso em nada impede que se trabalhe pela revolução, desde que se entenda esse “trabalhar pela revolução”, como sendo trabalhar pelo imprevisível.136

135

LYOTARD, François. O pós moderno. 3. ed. Trad. Ricardo Correa Barbosa. Rio de Janeiro: José Olympo, 1988.

136

GUATTARI, Félix. ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 185.

Não seria equívoco fazer uma análise estética do processo revolucionário, pois é possível compará-lo à arte, sobretudo no que concerne ao processo produtivo de resultado incerto:

O que estou dizendo não é tão absurdo assim: um poeta ou um músico envolvido em um processo produtivo – se não estiver inteiramente atarraxado numa universidade ou num conservatório – nunca saberá o que está produzindo, antes de produzir. É seu processo de produção que o transporta, e até para além daquilo que ele pensava ser.137

E por arte que se assemelha, revolucionar constitui um processo de escrita do

novo na História138, instaurando novos processos históricos. É por tal razão que não se afigura plausível apontar uma classe ou entidade como revolucionária em-si, pois após décadas ou séculos já estabelecidas – como é o caso dos sindicatos, por exemplo – constitui flagrante paradoxo afirmar seu caráter revolucionário, porque “a revolução ou é processual ou não é revolução.”139

Não se está a desmerecer a importância de quaisquer movimentos sociais, ao contrário. O que não se pode, contudo, é confundi-los com processo de revolução, já que por vezes se associam muito mais à modelização do que à atuação revolucionária.140 A propósito da processualidade revolucionária, Guattari ainda assevera que se trata de produzir algo novo, uma singularidade na própria existência das coisas, pensamentos e sensibilidades. Eis aí um processo que acarreta mutações no campo social inconsciente para além ou aquém do discurso. Esse processo pode ser chamado de singularização existencial.141 O nó górdio parece ser o como fazer para manter esses processos singulares “[…] articulando-os numa obra, num texto, num modo de vida consigo mesmo ou com alguns outros, ou na invenção de espaços de vida e de liberdade142 de criação…”143

137

GUATTARI, Félix. ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 185.

138 […] a revolução, por definição, não pode ser permanente: ela é um certo momento de transformação, que poderíamos caracterizar como um momento de irreversibilidade num processo. […] Então, poderíamos chamar de revolucionário um processo que se lança numa via irreversível e que, daria para acrescentar, por este fato, escreve a História de maneira inédita.” (GUATTARI, Félix. ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 186) 139

GUATTARI, Félix. ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 186.

140

GUATTARI, Félix. ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 187.

141

GUATTARI, Félix. ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 185.

142

Expressão desenvolvida na obra escrita com Negri: GUATTARI, Félix. NEGRI, Toni. Les nouveaux espaces de liberté. Paris: Editions Dominique Bedou, 1985. Tal opúsculo foi traduzido

Por conseguinte, pode-se aduzir que a multiplicidade dos desejos moleculares, conjugada com uma micropolítica144 – que faz com que todos esses desejos possam se expressar e não se fazer representar por unidades centralizadoras e alienantes – promove ou, ao menos, permite a instauração de focos microrrevolucionários moleculares que, é de se admitir, costumam ser designados utópicos. Assim, diz-se que "[…] a problemática das revoluções moleculares, com a noção de "inconsciente maquínico […] legitima de certo modo um tratamento daquilo que se costuma chamar, abusivamente, de utopia."145

Utópico? Talvez – mas provavelmente não, conforme se verá146. Pouco importa a nomenclatura, por ora. Se o desejo não-alienado puder ser fator de

para o português só muito recentemente, de modo quase marginal (às margens do circuito editorial dominante): GUATTARI, Félix. NEGRI, Toni. As verdades nômades: por novos espaços de liberdade. Trad. Mario Antunes Marino e Jefferson Viel. São Paulo: Autonomia Literária e Editora Politeia, 2017.

143

GUATTARI, Félix. ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 185-186.

144 “É toda uma micropolítica que esta em jogo a este nível, e, repito, não se trata, em absoluto, de um problema histórico, biográfico ou psicanalítico puramente especulativo. A micropolítica que fabricou Hitler concerne aqui e agora, no seio dos movimentos políticos sindicais, no seio dos grupelhos, na vida familiar, escolar, etc., na medida em que novas microcristalizações fascistizantes substituem-se às antigas, no mesmo filo do maquinismo totalitário. Sob o pretexto de que o papel do indivíduo na História seria desprezível, nos aconselham a ficar de braços cruzados diante das gesticulações histéricas ou as manipulações paranóicas dos tiranos locais e dos burocratas de toda espécie. O papel de uma micropolítica do desejo será o de opor-se a uma tal renúncia e de recusar-se a deixar passar toda e qualquer fórmula de fascismo, seja qual for a escala em que se manifeste. O cinema e a televisão gostam de nos fazer crer que o nazismo, no fundo, não passou de um mau momento, uma espécie de erro histórico e, também, uma bela página, de História para os heróis. Não eram emocionantes aquelas bandeiras misturadas do capitalismo e do socialismo? Queriam nos fazer acreditar na existência de um antagonismo real entre eixo fascista e os aliados. De fato, o que estava, na ocasião, em questão, era a seleção de um bom modelo. A fórmula fascista ia de mal a pior. Tornara-se necessário eliminá-la e encontrar uma melhor.” (GUATTARI, Félix. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. 3. ed. Trad. Suely Belinha Rolnik. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 183). (Grifo nosso)

145

GUATTARI, Félix. ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 241.

146

Mais que utopia, aqui haverá um trabalho no nível da desutopia, como quer Negri fundado no pensamento de Espinosa. “A desutopia spinozista é prazer da anomalia selvagem do ser. E então muitos dos fios que tecem a filosofia de Spinoza voltam a se mostrar na superfície. Como componentes históricos, eles só formam o sistema de Spinoza enquanto se qualificam na atração da complexidade selvagem do sistema. Como todos os produtos de alta indústria, o pensamento spinozista contém a complexidade de sua aparelhagem dentro da potência da força produtiva e, sobretudo, expõe essa complexidade como singularidade irredutível. A desutopia é ao mesmo tempo crítica do existente, dos componentes, e positiva, singular, construção do presente. Complexidade dos componentes e simplicidade da composição. Singularidade de expressão de superfície, até se tornar prazer e doçura do mundo. A irredutibilidade desta conclusão spinozista é total. Em termos muito elementares, talvez um tanto extremados mas certamente intensos, podemos dizer: em Spinoza a força produtiva não se sujeita a nada que não seja a si mesma, e em particular se subtrai a dominação das relações de produção. Quanto a estas, ela quer, ao contrário, dominar, a partir de seu próprio ponto de vista, de sua própria potência. E esta concepção da força produtiva – com seu referente material, ontológico – que dá à filosofia de Spinoza e à sua concepção do ser uma inesgotável riqueza, uma selvagem determinação.” (NEGRI, Antonio. A anomalia selvagem: poder e

engendramento (micro)revolucionário, desterritorializando-se e sendo ponto de partida para uma transformação das pessoas, se possibilitar um conjunto de práticas que permitam uma revolução molecular que se insere no meio das máquinas totalitárias-totalizantes, já terá sido importante, pois atribuirá ao Direito um papel cri(ativo), não só de normas, mas do novo na História.147

Isso tudo se coaduna com a afirmação categórica de Guattari acerca da revolução que não se dá apenas por uma via, como a econômica, a partir de uma leitura marxista mais ortodoxa, por exemplo:

Não acredito em transformação revolucionária, seja qual for o regime, se não houver também uma revolução cultural, uma espécie de mutação entre as pessoas, sem o que caímos na reprodução da sociedade anterior. É o conjunto das possibilidades de práticas específicas de mudança de modo de vida, do seu potencial criador, que constitui o que chamo de revolução molecular, condição a meu ver, para qualquer transformação social. E isso nada tem de utópico, nem de idealista.148

Não obstante, a opção por uma perspectiva molecular se justifica na medida em que se tem como mote o poder tomado em sua perspectiva micro(política), ao modo foucaultiano de compreendê-lo, o que muitas vezes é ignorado pelas teorias críticas, que acabam se constituindo como conservadoras, já o denunciara Warat149.

potência em Spinoza. Trad. Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. (coleção TRANS). p. 281).

147 “[…] a revolução, por definição, não pode ser permanente: ela é um certo momento de transformação, que poderíamos caracterizar como um momento de irreversibilidade num processo. […] Então, poderíamos chamar de revolucionário um processo que se lança numa via irreversível e que, daria para acrescentar, por este fato, escreve a História de maneira inédita.” (GUATTARI, Félix. ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 186). (Grifo nosso)

148

GUATTARI, Félix. ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 186-187.

149

"El conocimiento critico, cuando efectúa juicios sobre el saber juridico acumulado, lo denuncia

como ideológico, como un conjunto de creencias, que no puedem alcanzar el estatuto de las enunciaciones científicas. De esta forma, se verifica, que la producción de un saber crítico se encuentra norteado por las mismas obsesiones de la ortodoxia epistemológica, que a partir de una interrogación sobre la cientificidad de la ciencia, pretende imponer normas y criterios en torno a la positividad del conocimiento científico. Así, el saber crítico, adaptando ciertos habitos epistemológicos consagrados, postula ser dueño en un lugar, fuera del poder, de una verdad indiscutible, con la que cree poder instaurar un conocimiento, apto para una transformación radical del Derecho y de la sociedad, lo que no deja de ser una ilusión, eticamente diferenciada." (WARAT, Luis Alberto. El saber critico del derecho y un punto de partida para una epistemologia de las significaciones. In: WARAT,

Luis Alberto. Epistemologia e ensino do direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 193-194).

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