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VIDA NUA, ESTADO DE EXCEÇÃO E DIREITO: OU A BARBÁRIE DE QUANDO O JURÍDICO E O POLÍTICO DECIDEM QUEM VIVE E QUEM DEIXA

POTENTIÆ 266 – A ECOLOGIA DAS TEMPORALIDADES

4.6 VIDA NUA, ESTADO DE EXCEÇÃO E DIREITO: OU A BARBÁRIE DE QUANDO O JURÍDICO E O POLÍTICO DECIDEM QUEM VIVE E QUEM DEIXA

MORRER

Mas a grande questão que se coloca é: se a democracia, por meio do Direito, caracteriza-se pelo reconhecimento/instituição de direitos (sobretudo o chamados direitos humanos) e impõe regras para que sejam observados, o que explica as barbáries da supressão de grupos seja no aspecto biológico, seja no cultural?

A essa reflexão convém chamar Carl Schmitt, para quem a soberania não se exerce pela regra, mas pela exceção. Aliás, célebre é a sua frase: "Soberano é quem decide sobre o Estado de exceção"401 Segundo afirma, existem várias exposições históricas acerca do conceito de soberania. Todavia, todas se limitam a colecionar fórmulas abstratas, como as de Kelsen e Krabbe, e que em nada definem, como conceito limite, o que realmente é a soberania.402

Nesse sentido, o Direito (de matriz Moderna) nada mais é do que abstração e discurso de legitimação para o que já se resolveu por meio do exercício do poder. Segundo Agamben, os gregos utilizavam dois termos para tratar daquilo que hoje é chamado de "vida". O primeiro é zoé, que exprimia o simples fato de viver e que é comum a todos os demais seres vivos403. É o que se poderia bem chamar de "vida natural" ou de "existência". Já o segundo é bíos, e se relacionava à forma de viver de um indivíduo ou grupo. Isso explica porque Platão no Filebo menciona três

400 “A justiça, como experiência da alteridade absoluta, é inapresentável, mas é a chance do acontecimento e a condição da história.” (DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. p. 55).

401

SCHMITT, Carl. Teología política. Trad. Francisco Javier Conte y Jorge Navarro Pérez. Madrid: Trotta, 2009. p.13.

402

SCHMITT, Carl. Teología política. Trad. Francisco Javier Conte y Jorge Navarro Pérez. Madrid: Trotta, 2009. p.14

403

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua 1. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 9.

gêneros de vida, ao passo que Aristóteles, na Ética à Nicômaco, distingue a vida contemplativa do filósofo (bíos theoreticós) da vida de prazer (bíos apolausticós) e da vida política (bíos politicós). Dito de outro modo, biós é algo mais que a vida natural, é uma vida qualificada, uma forma particular de vida404. Em suma, bíos bem poderia ser designada pelo traço fundamental da "cultura".

Agamben prossegue dizendo que eles jamais poderiam empregar o termo zoé para tratar da vida na pólis, porquanto ele pertence ao espaço do oîkos, o que denota vida reprodutiva. Contudo, é bem verdade que há um célebre trecho da obra aristotélica em que o homem é definido como politikôn zôon:

[…] mas aqui […], político não é um atributo do vivente como tal, mas é uma diferença específica que determina o gênero zôon (logo depois, de resto, a política humana é distinguida daquela dos outros viventes porque fundada, através de um suplemento de politização ligado À linguagem, sobre uma comunidade de bem e de mal, de justo e de injusto, e não simplesmente de prazeroso e doloroso).405

Referindo-se à perspicácia de Foucault, o qual faz referência a esta definição, Agamben dirá que o filósofo francês, ao final da vontade de saber, resume o processo por meio do qual, nos limiares da Idade Moderna, a vida natural começa, por sua vez, a ser incluída nos mecanismos e nos cálculos do poder estatal, e a política se transforma em biopolítica.406 Dirá Foucault que "o homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja política, a sua vida de ser vivo está em questão."407

É nesse contexto que surge a figura do Homo Sacer, isto é, a vida matável do direito romano arcaico, na qual a vida humana é incluída no ordenamento unicamente sob a forma de sua exclusão (de sua matabilidade). Trata-se da chamada vida nua. Essa constatação autoriza o acréscimo agambeniano à tese foucaultiana, visto que a política moderna, mais que incluir a zoé na pólis (o que não é propriamente uma novidade), tem como traço decisivo o fato de que,

404

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua 1. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

405

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua 1. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 10.

406

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua 1. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 11.

407

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1988. p. 134.

paralelamente ao processo de transformação da exceção em regra, o espaço da vida nua, originariamente à margem do ordenamento, acaba por coincidir com o espaço político. Assim, inclusão e exclusão, externo e interno, bíos e zoé, direito e fato convergem para uma zona irredutível de indistinção408.

Disso se extrai que "o estado de exceção, no qual a vida nua era, ao mesmo tempo, excluída e capturada pelo ordenamento, constituía, na verdade em seu apartamento, o fundamento oculto sobre o qual repousava o inteiro sistema político."409

Diante dessas lições, duas importantes consequências se revelam: i) a primeira é de que se o Direito não é o fundamento e o limitador do poder, mas, ao contrário, este lhe é fundante como discurso, as alternativas a serem pensadas devem vir acompanhadas de estratégias antes políticas que jurídicas. Não apenas porque o Direito precisa de um processo legislativo ou uma transformação jurisprudencial. Mas sobretudo porque muito antes está no âmbito da discussão sobre o poder o destino do Direito. Além disso, ii) os direitos da sociobiodiversidade são a expressão da convergência entre bíos e zoé para uma zona de indistinção, mas com uma característica marcante: enquanto a política moderna apropria-se da vida nua, como já fazia o direito romano arcaico, para dizer quem é matável, os direitos da sociobiodiversidade constituem um contraponto à barbárie no sentido que Adorno emprega, ou seja, barbárie é pensar que nada se faz para que o outro morra, mas também que nada se faz para que ele viva.410 Em suma, é a indiferença

408

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua 1. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 16.

409

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua 1. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 16-17.

410

"Afirmei que aquelas pessoas eram frias de um modo peculiar. Aqui vem a propósito algumas palavras acerca da frieza. Se ela não fosse um traço básico da antropologia, e, portanto, da constituição humana como ela realmente e em nossa sociedade; se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que acontece com todas as outras, excetuando o punhado com que mantém vínculos estreitos e possivelmente por intermédio de alguns interesses concretos, então Auschwitz não teria sido possível, as pessoas não o teriam aceito. […] A incapacidade para a identificação foi sem dúvida a condição psicológica mais importante para tornar possível algo como Auschwitz em meio a pessoas mais ou menos civilizadas e inofensivas. O que se chama de "participação oportunista" era antes de mais nada interesse prático: perceber antes de tudo a sua própria vantagem e não dar com a língua nos dentes para não se prejudicar. Esta é uma lei geral do existente. O silêncio sob o terror era apenas a consequência disto: A frieza da mônada social, do concorrente isolado, constituía, enquanto indiferença frente ao destino do outro, o pressuposto para que apenas alguns raros se mobilizassem. Os algozes sabem disto; e repetidamente precisam se assegurar disto. (ADORNO, Theodor W. Educação após Auschwitz. In: ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 132- 133).

em relação à zoé (vida natural, ligada à solidariedade) e à bios (vida cultural e política, ligada à alteridade). Daí porque uma análise biopolítica411 é fundamental.

A isso tudo, na Tese 20, Dussel agrega a possibilidade de transformação das

instituições da esfera da factibilidade. Para tanto, propõe que, assim como o

pragmatismo norteamericano não fala em verdade, mas em veri-ficação, que não se fale em liberdade, mas em liberta-ção como processo de negação de um ponto de partida e de tensão até o ponto de chegada. Cotejando-se com os postulados da Revolução burguesa enunciados como “Igualdade, Fraternidade, Liberdade”, há que se transformá-los na rebelião dos povos da periferia – excluídos e cuja existência é negada – , para quem irrompe um novo postulado: “Alteridade, Solidariedade, Libertação!”412

.

A tese que gostaria de discutir é a de que desbarbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação hoje em dia. O problema que se impõe nesta medida e saber se por meio da educação pode-se transformar algo de decisivo em relação à barbárie. Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que, estando na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização — e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir, alias uma tendência imanente que a caracteriza. Considero tão urgente impedir isto que eu reordenaria todos os outros objetivos educacionais por esta prioridade. (ADORNO, Theodor W. A educação contra a barbárie. In: ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 155)

411 “[…] esse é o momento de repensar a relação entre política e vida de uma forma que, em vez de submeter a vida à direção da política – o que ocorreu no curso do último século – , introduza na política a potência da vida.” (ESPOSITO, Roberto. Termos de política: comunidade, imunidade, biopolítica. Trad. Ricardo Marcelo Fonseca et al. Curitiba: UFPR, 2017).

412

DUSSEL, Enrique. 20 teses de política. Trad. Rodrigo Rodrigues. Buenos Aires: CLACSO; São Paulo: Expressão Popular, 2007. p. 164.

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