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CIÊNCIA JURÍDICA COMO ABERTURA DAS PORTAS DO MONASTÉRIO DOS SÁBIOS – A ECOLOGIA DE SABERES

2.4 A CRÍTICA À (SUPOSTA) NEUTRALIDADE DO DISCURSO JURÍDICO: PARA PENSAR A PARTIR DA TEORIA CRÍTICA

2.4.1 A partir de Horkheimer e Adorno: a teoria tradicional e o modo iluminista de pensar

Que a sombra aumenta proporcionalmente com a luz é uma regra psicológica; assim, quanto mais a consciência se mostrar racionalista, mais o universo quimérico do inconsciente ganhará em vitalidade.

(Carl Gustav Jung)

Max Horkheimer (1895-1973), fundador da Teoria Crítica e um dos idealizadores do “Instituto de Pesquisa Social”, internacionalmente conhecido como

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KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 394.

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"O Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível. Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem." (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 390).

83 “O sentido comum teórico poderia também ser pensado como ideológico na medida e quem imita a realidade social, ocultando as formas na qual ela exercita e distribui o poder. Isso pela ilusão que o sentido comum teórico tem, dentro de si, de haver podido conquistar, com a linguagem, o esquema ideal (perfeito, neutro, objetivo e indiscutível) que funciona fictamente como sistema do mundo social.” (WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002. p. 72).

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Sobre semiologia do poder conferir: WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1995. Ver também: WARAT, Luis Alberto. À procura de uma semiologia do poder. In: ____. Epistemologia e Ensino do Direito: o sonho acabou. v. II. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 345-349.

a “Escola de Frankfurt”, , por trazer à baila uma nova teoria epistemológico-social, teve que trabalhar fortemente com aquilo que denominou Teoria Tradicional, contra a qual lança a sua crítica filosófica e a partir da qual desenvolve seu trabalho. Portanto, para elaborar a sua teoria crítica, Horkheimer o fez visando contrapô-la à teoria tradicional.85

Para tanto, Horkheimer lança mão do conceito de “razão instrumental” para filosofar acerca do racionalismo formalista estabelecido86 e docilmente seguido nas ciências de um modo geral e, também, na vida em sociedade.

A racionalidade instrumental define-se por ser estritamente formal. Não importam os conteúdos das idéias e dos princípios que possam ser considerados racionais, mas a forma como essas idéias e princípios podem ser utilizados para a obtenção de um fim qualquer. Ou seja, a racionalidade instrumental, formal, caracteriza-se antes de tudo, pela relação entre meios e fins. […] Nessa descrição da racionalidade instrumental torna-se claro seu vínculo com os processos de trabalho. A razão é uma ferramenta para a obtenção de um fim, como o trabalho e a técnica utilizada são ferramentas para a transformação da Natureza.87

Conforme sobredito, pode-se classificar tal modo de pensar as coisas, as pessoas e a sociedade, e as inter-relações existentes entre elas, como uma “racionalidade inconsequente”88 – embora aqueles que pugnam pelo seu emprego

conheçam de antemão as suas consequências, sobremaneira no que se refere à dominação consciente89. Assim é que tal racionalidade se torna importante instrumento de dominação ideológica, pois que identificada com a marca da crença em um cientificismo que tornara então todos os problemas da humanidade

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REPA, Luís Sérgio. Max Horkheimer: teoria crítica e materialismo interdisciplinar. Revista Mente, Cérebro & Filosofia. São Paulo, v. VII, p. 10, [2008?].

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Estabelecido a partir de Descartes e aprimorado no Iluminismo. 87

REPA, Luís Sérgio. A crise da Teoria Crítica: razão instrumental e declínio do indivíduo. Revista Mente, Cérebro & Filosofia. São Paulo, v. VII, p. 19, [2008?].

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O termo empregado não é de Horkheimer ou qualquer autor que o comente, trata-se de um termo elaborado quando da feitura do presente trabalho como um modo de exteriorizar sinteticamente um pensamento atribuído ao autor supracitado.

89O conceito de “dominação consciente” presente na obra de Max Horkheimer traz que, tendo em vista a contínua redução no número daqueles que exercem o poder (capitalismo monopolista), mais fácil se torna a confecção consciente de novas ideologias e métodos de controle social. Dito de outro modo, “os mecanismos de dominação de massa tornam-se cada vez mais conscientes de si mesmos”. (REPA, Luís Sérgio. : teoria crítica e materialismo interdisciplinar. Revista Mente, Cérebro & Filosofia. São Paulo, v. VII, p. 15.)

solucionáveis racional e cientificamente90, mas desde que obedecidos os métodos predeterminados pelos “sábios do monastério”91

.

A teoria tradicional caracteriza-se pela ideia da separação entre sujeito e objeto, de maneira que aquele, totalmente desprovido de seus inclinações e angústias analise este e, dele retire a sua verdade. Tal perspectiva tem lá sua validade no tocante às ciências da natureza, uma vez que se está de fato a tratar com objetos, na acepção estrita da palavra. Entretanto, há que se refletir acerca da sua dialética imprópria quando transferida às humanidades ou estudos humanísticos92.

Desse modo, o cultivo iluminista ao “ideal científico” iniciado com Descartes tomou grandes proporções, ditando toda a forma de conhecer e tornando-se uma “ideologia cientificista”93

, a qual tem sua afirmação na ingenuidade dos que a seguem e na astúcia dos (poderosos) que a empregam, afinal de contas, o próprio Bacon asseverou que poder e conhecimento são sinônimos94; relação que posteriormente foi discutida por Foucault quando tratou daquilo que denominou de “saber-poder”.

A infelicidade iluminista foi (e é) a de especializar o seu estudo em determinada área ou aspecto gnosiológico e transformar (discursivamente) o resultado obtido em verdade universal, ou universalizável. Daí porque a ideia de Declaração “Universal” dos Direitos do Homem, ou seja, não só no campo das ciências naturais, mas também na política e no Direito – considerados também por

90 MARRAFON, Marco Aurélio. Hermenêutica e sistema constitucional: a decisão judicial “entre” o sentido da estrutura e a estrutura do sentido. Florianópolis: Habitus, 2008. p. 33.

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Expressão atribuída a Luis Alberto Warat, que designa a existência de um espaço (físico ou não) – o monastério – onde se encontram os intelectuais – por isso “sábios”. É uma maneira irônica que o autor se refere aos sobranceiros juristas e filósofos que se julgam muito sapientes e à louvação que se faz para eles. Nas palavras do próprio Warat: “Ainda, quando nos enfrentamos com as chamadas

ciências humanas devemos admitir que a forma que adquirem esses saberes dependem também da subjetividades coletiva instituída. Os especialistas se encontram também na posição de consumidores da subjetividade coletiva. Eles, inclusive, são duplamente consumidores da subjetividade instituída. Além da subjetividade que circula socialmente, consomem a subjetividade específica que articula e controla a produção social das verdades. Os discursos de verdade nunca são resultado de um emissor isolado. Eles estão vinculados a uma prática comunitária organizada em torno de uma subjetividade específica dominante. Nenhum homem pronuncia legitimamente palavras de verdade se não é filho (reconhecido) de uma comunidade ‘científica’, de um monastério dos

sábios.” (WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002. p. 68). (Grifo nosso)

92

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005. p. 20. Acerca da temática será aberto capítulo específico, razão pela qual não se especificará a crítica neste momento.

93

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2006. p. 234. 94

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. O conceito de Iluminismo. In: BENJAMIN, Walter et

alguns como ciências – as conclusões são elevadas ao patamar de universais e necessárias95, como o era o “imperativo categórico” kantiano. Portanto, visava-se (e visa-se, ainda) a unidade teórica e, por conseguinte, a prática como efeito cogente daquela: verdadeira causa numa (determinista) relação de causalidade.

Neste diapasão, conclui-se que a razão ao tornar-se instrumental, faz das ciências não um modo de acesso ao conhecimento, mas sim um verdadeiro instrumento de dominação, poder e exploração96, já que objetiva antes de tudo legitimar irrefutavelmente – e, portanto, impassível de crítica – os processos de produção e as relações sociais hierarquizadas97 98, fazendo-o sob a máscara da objetividade e da neutralidade científicas. Assim, a ciência se converte em ideologia e mito social, diga-se, em senso comum cientificista99; e isso não significa apenas que tal postura transforma uma teoria científica em ideologia, mas que com a ideologia cientificista, a ciência é concebida como instrumento de controle da natureza e a sociedade; enfim, as ideias de progresso técnico e neutralidade científica são típicas do tipo ideológico sobredito, nada tendo a ver com o compromisso científico propriamente dito.100 Esse é o perfil resumido da teoria tradicional. Espera-se que a fixação de seu conceito101 tenha sido adequada, de

95

Tanto o é, que Horkheimer aduz que “Alguns traços da atividade teórica do especialista são

transformados em categorias universais, por assim dizer, em momentos do espírito universal, do

lógos eterno, ou, antes, traços decisivos da vida social são reduzidos à atividade do cientista.” (HORKHEIMER, Max. Teoria tradicional e teoria crítica. In: BENJAMIN, Walter et al. Textos escolhidos. Trad. José Lino Grünnewald et al. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 124.)

96

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2006. p. 237. 97

Estabelece-se e se aceita uma “[…] ideologia da competência, isto é, a idéia de que há, na

sociedade, os que sabem e os que não sabem, que os primeiros são competentes e têm o direito de mandar e de exercer poderes, enquanto os demais são incompetentes, devendo obedecer e ser mandados. ” (CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2006. p. 235).

98 “A forma dedutiva da ciência espelha ainda a hierarquia e a coação. Tal como as primeiras

categorias representam a tribo organizada e seu poder sobre o indivíduo, toda a ordem lógica, dependência, concatenação, extensão e conexão dos conceitos fundamentam-se nas relações correspondentes da realidade social, da divisão do trabalho. Contudo, esse caráter social das

formas do pensar não é, como ensina Durkheim, expressão da solidariedade social, mas testemunho da unidade impenetrável entre sociedade e dominação. A dominação confere maior

força e consistência ao todo social no qual se estabelece. A divisão do trabalho, na qual a

dominação se desenvolve socialmente, serve à autoconservação do todo dominado. (ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. O conceito de Iluminismo. In: BENJAMIN, Walter et

al. Textos escolhidos. Trad. José Lino Grünnewald et al. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p.102.)

(Grifo nosso). 99

A expressão empregada por Marilena Chauí se assemelha ao que Luis Alberto Warat designa, olhando para a ciência jurídica, por “senso comum teórico dos juristas”. Sobre o assunto indica-se: WARAT, Luis Alberto. Saber crítico e senso comum teórico dos juristas. In: ____. Epistemologia e Ensino do Direito: o sonho acabou. v. II. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 27-34.

100

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2006. p. 237.

101 De maneira a tornar ainda mais clara a conceituação de “teoria tradicional”, na visão de Max Horkheimer, vale citar um trecho de um opúsculo chamado de “Filosofia e teoria crítica”, escrito em referência à obra “Teoria tradicional e teoria crítica”. Veja-se: “A teoria em sentido tradicional,

modo que a partir daqui far-se-á referência a ela implícita ou explicitamente, mas sempre a considerando como lugar comum, cabendo ao leitor a sua identificação e decodificação do conteúdo em que ela se encontrar inserida.

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