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1 DESFIAR A VIOLÊNCIA DE GÊNERO NA HISTORIOGRAFIA DA MULHER

4.1 MAS, AFINAL, QUEM É TEREZA DE BENGUELA?

Tereza de Benguela, feminista e dona do mote: Sou dona do meu próprio nariz!, uma das entrevistadas; faleceu durante a escrita desta tese. Não obstante sua morte física, continuará presente. A expressão acima reafirma seu feminismo sem teoria. Ao ver-se dona de si, dá visibilidade à mulher, sujeita política.

Ser mulher negra e trabalhadora rural, para Tereza, é ser “guerreira”, pois, conforme reforça, “porque habilitei tudo na vida e venci, sou guerreira. Que eu disser é pau e nunca mentir”. O trabalho na enxada, que aprendeu com o pai, confere a ela autonomia e independência, conforme explica:

207 Faço aqui referência à escritora negra Carolina Maria de Jesus, na sua analogia socioespacial/territorial, lócus

compulsoriamente reservado a quem traz a marca da escravidão.

208 A mãe, personagem do conto, conhece dois mundos: o da novela, ficção, e mundo real, que sangra, dói,

violento, de pobreza simbólica e estrutural, de desamor. Por isso, sua vida é costurada com fios de ferro, fios resistentes, resilientes, fortes para aguentar as intempéries, os sonhos inalcançáveis, por exemplo, a morte prematura do filho com 13 anos; sua filha se envolveu com rapaz, embora o conhecesse, mas não era o companheiro que queria para ela.

[...] trabalhei 13 anos no secador. [...] Mas foi bom, sabe, porque me ensinou a trabalhar de enxada. Sim. Eu nunca botei um pano na cabeça

pra ir para casa dos outros. Eu trabalhava, tinha minha roça, quando dei

pra ganhar na roça dos outros eu sabia o que estava fazendo.

Tereza não aceita amarras, recusa-se a seguir a trajetória de muitas mulheres que,

sem estudos e qualificação, têm como uma das alternativas de sobrevivência pôr “um pano na cabeça pra ir para a casa dos outros”, isto é, o emprego doméstico, mas que se apresenta como uma possibilidade concreta quando decide abandonar o companheiro com os filhos. Nesse

sentido, Tereza também traz consigo a marca de Mamãe Bamburucema210, a

intempestividade, e “quando avexa na cabeça dá vontade da gente sair”. Em meio à sua trajetória de vida, houve um momento em que ela deixou sua prole com parentes e foi ganhar a vida: Um dia me aborreci aqui, larguei ele mesmo […] fui para Salvador caçar

emprego211. Lá me empreguei. […]. Ana212, toma conta dos meninos que vou sair. Fui

procurar emprego, achei […]. Que eu cansei (riso). É quando avexa na cabeça dá vontade da gente sair. […]. Levei três meses e vim embora, comecei a chorar por causa dos meninos. […]

Sou dona do meu próprio nariz”.213

O não acaso da história de vida de Tereza para a contextualização que segue está relacionado com as multifaces da violência de gênero a que foi submetida por mais de oito décadas. O ciclo vital de Tereza, este nome também não foi acaso, permanece carregado por sentimentos de tristezas e dores. Sua narrativa para esta pesquisa era, a princípio, para me contar a respeito da morte de uma das filhas, mais especificamente a ocorrência do feminicídio. Todavia Tereza, embalada pela emoção, e na certeza de ecoar suas feridas invisíveis, narrou por quase três horas violências multigeracionais experienciadas em seu meio familiar.

Assim como Tereza de Benguela214, a sujeita-objeto deste trabalho tem uma

personalidade altiva. Assumiu, praticamente sozinha, a provisão familiar e o cuidado com filhas e filhos, netos e netas. Conciliou espaços de produção e reprodução e driblou as mazelas sociais para sobreviver.

210 Mais popularizada Iansã: é a senhora dos ventos e dos raios. Uma força guerreira, perigosa, insubordinada.

[…], é aquela que, apropriando-se dos poderes destinados ao rei-Xangô, seu marido, adquiriu o poder de cuspir raios e soltar fogo pela boca. Iansã é também a mãe que abandona os filhos, que serão criados por Iemanjá (WERNEK, 2010).

211 Vai à luta, ao invés de ficar em casa. Guerreira, destemida. 212 Nome fictício para manter o anonimato da pessoa.

213 Não admite amarras, gosta da liberdade.

214 O nome Rainha Tereza guarda proximidade com a entrevistada, elas foram parteiras e referência para

Casou com outra e deixou. Aí eu disse a ele: tu vai casar? E ele: não lhe quero mais não, porque tenho outra e vou casar. Eu disse: pode casar, de hoje em diante você um homem, é uma mulher e eu, sou um homem pra você. [...] Vim pra cá viver minha vida criando meus filhos, criei tudo, não aborreci ninguém. [...] eu crie tudo, não dei lugar para o povo falar de mim, todo mundo, não deixei bulir o que é dos outros.

Tereza colore, em seu mosaico, suas lembranças imersas na sua matéria-prima: a

memória, reconstruídas no tempo presente. Lembranças que a fazem sorrir ou chorar, contudo são narrativas proeminentes, experienciadas e ressignificam, nas suas relações, sentimentos de ontem e hoje. Sua história de vida ainda não se pode encontrar na literatura oficial, contudo a encontrei na sua oralidade, porque, conforme nos ensina Conceição Evaristo (REVISTA PROSAVERSOEARTE, 2008, s/p.):

[…] O que os livros escondem, as palavras ditas libertam.

E não há quem ponha um ponto final na história Infinitas são as personagens…

Nesses versos, escritos por Conceição Evaristo e extraídos do poema “Do Velho

ao Jovem”, a poetisa traz uma reflexão acerca da oralidade na contramão das histórias com H

maiúsculo, aquelas registradas oficialmente. No entender da escritora, a categoria geracional é ressignificada quando a questão é o saber. E Tereza, com 86 anos, na sua cosmovisão evocou suas histórias infinitas que, ao serem transcritas, se transformarão em histórias escritas, todavia ainda conservadas em sua memória latente. Esmiuçar para além dos versos e elencar historiadoras é, analogicamente, entender que a história oral e a história das mulheres, no seu movimento dialético, assemelham-se na sua razão existencial.

A história de vida de Tereza de Benguela espelhou-se no costurar a árdua vida com fios de ferro215; simbolicamente, combinamos de não morrer, mas esperar a defesa de minha tese, convidei-a e iria, sim, trazê-la para alegrar-se comigo dos escritos de que foi uma das personagens-narradoras. Tereza de Benguela, mulher subalternizada, vitimizada, entretanto sujeita política consciente de sua condição216 de gênero [neta e filha: maternagem;

215 Especialmente, escrevi o artigo intitulado: Minha vida não é folha de papel em branco: rememorar e

ressignificar História de mulher trabalhadora rural, para reafirmar que sutilezas cotidianas, marcas de sua trajetória com arranjos-rearranjos; organização-desorganização e reorganização conjugais, a solidão da mulher negra, a labuta e maternagem desde criança na roça e no espaço doméstico, o furar o olho da letra por não saber ler e escrever, por fim, ser dona de seu próprio nariz traduz sua liberdade, seu feminismo rural sem mesmo conhecer a literatura beauvoiriana.

mãe e avó, feminicídio da filha, já que cuidou de 4 netos/as], cuidados domésticos e provisão familiar, [ocupou-se da produção e reprodução social]; parteira: “Quem disse que se entrega a São Miguel, não se levanta a hora que quer! Tenho que levantar a hora que São Miguel quer”! Estava sempre a postos na função de partejar; classe social - ganhar a vida, trabalhar arduamente; cumeeira da casa - não esperar pelos pais de filhos e filhas, trabalhar para manter a família. Sua fala é contundente ao descrever a realidade de mulher rural e disposta a contrariar o imaginário social, lembrou da empatia de pessoas, assim como o cuidado com a sua aparência.

As pessoas, quando eu cheguei em São Paulo, todo mundo até o patrão dela gostou de mim. E disse: ela é sua mãe. Uma coroa decente. Eu disse assim: mas tô acabada já. Ele; que nada, sendo da roça deixe eu vê seu pé aí. Passou a mão no meu pé e disse: a senhora não é da roça não. Por quê? Porque o povo da roça tem espinho e seu pé não tem. Porque a gente areia o pé (risos). A gente escova o pé com caco de telha (risos), quando não tem escova a gente mete o caco de telha no pé. Ele disse: é bem arrumadinha e tal.

Tereza contraria a representação caricatural ainda presente no imaginário social urbano sobre o “povo da roça”, isto é, ela não parece simplória, humilde, mal vestida, com pés grossos e rachados, ao contrário, sua aparência é “decente” e “bem arrumadinha”. De fato, conforme depoimento de Vanete Andrade, no documentário A coragem de ser (1998):

A sociedade como um todo discrimina muito os pobres e principalmente as trabalhadoras rurais. Há uma discriminação porque você mora no campo, porque você fala de outra forma, porque você vive de outra forma. Existe um preconceito em cima disso. Então, as trabalhadoras precisam se fortalecer, juntas, coletivamente, para enfrentar essas dificuldades e dar o seu recado e dizer que também são gente, que também são importante, que também têm uma parcela importante de contribuição a dar (VANETE ALMEIDA, em depoimento).

Aqui, rememora a vida de parteira, lugar inquietante e desafiador para a mulher de roça, ela não aprendeu apenas a ser escravizada pelo trabalho mal remunerado da agricultura, mas o ofício de partejar, sem o curso de medicina, seu aprendizado deu-se pela história oral e prática manual aprendida com as mais velhas:

Era bom, na mesma da hora não era, porque eu ia de noite, debaixo de chuva. Se tivesse chovendo eu tinha que ir, se tivesse com sol eu tinha de ir, quando viesse alguém de carro que me levava tudo bem e quando ia de bicicleta se tivesse chovendo. Chegava de madruga, não tinha hora. Não

tinha hora pra ir, depois de trabalhar no secador eu chegava cansada, tinha de ir.

A vida laboral de Tereza estava para além dos cuidados domésticos, apesar de, geralmente, não contabilizar as atividades desenvolvidas em casa, que não são remuneradas. O “trabalho” é pensado enquanto atividade remunerada que realiza no espaço público e garante o sustento econômico da família, mas sua jornada de trabalho continua com o ofício de parteira. Tereza era chamada, independia de horário, para partejar, atividade que exerceu por anos, aprendida com os mais velhos.

Seguindo o rastro da inspiração de Conceição Evaristo, um dos trechos lidos, em que a poeta afirma que “Muitas vezes ouço falas de quem não vejo nem o corpo. [...] De muitas histórias já sei [...]. Sei que a vida está para além do que pode ser visto, dito ou escrito” (2016, p. 15) 217, fizeram-me lembrar do dia em que ouvi, por 2 horas (duas), de

forma inédita, a história de vida de Tereza de Benguela. Lembro-me que já passava do meio- dia, eu e ela, sentadas num sofá, sala minúscula, aquela pessoa de mais ou menos um metro e 20 cm de altura, rememorava seus 5 anos de idade, o tempo de escola interrompido pelas dificuldades do aprendizado formal; seus companheiros, o dia em que foi abandonada pelo pai da criança que ainda se encontrava na sua barriga, porque ele preferiu a dona do mercado para casar. Lembrou datas de nascimento e idade de filhos/as, seu tempo de parteira, das festas religiosas que participou, sua vinda a Salvador para trabalhar, posteriormente, a saudade da prole que a fez retornar e continuar sua vida laboral na roça; a viagem a São Paulo e sua ida, mesmo sem saber ler, à Rua 25 de Março, como rememorou:

Eu me arrependo hoje de ter furado o ABC (risos). Me arrependi por hoje eu não sei onde estou. Eu sei andar eu indo mais você um dia, em qualquer lugar, pode me deixar que outro dia eu já vou. Acho que eu tenho um dom. Se você me levar hoje, fia, pra Salvador não que é muito embaraçado, eu achei, lá onde eu fiquei, achei muito, mas em São Paulo, eu fui. Minha fia ia trabalhar e dizia não sai daí não: mas eu ia ficar presa dentro de casa? Mas eu sei a hora, eu vou pelo caminho certo, volto e vou lá na feira que ela vende, na 25 de Março. Eu sei, eu vou com o sacolão, desço e vou. Aí quando chegou em casa e não me achou ficou doida, procurando, eu já tinha ido. Eu estava na casa de uma amiga dela. Que ela tinha me levado lá umas duas vezes. Quando ela saía reclamava: não vai sair não, pra você não se perder! Eu digo: não vou me perder não, Iara mora lá em cima, olha a casa dela.

217 Refiro-me ao livro “Histórias de leves enganos e parecenças” (2016), consultado em 04/06/18 às 07:00,

Não obstante, a motivação para procurar Tereza de Benguela foi conversarmos sobre o fim do ciclo da violência de gênero contra sua filha. Lembrou, com tristeza, as atrocidades cometidas pelo ex-genro contra a filha, acometida pelo feminicídio perpetrado por esse agressor na condição de ‘dono’ da ex-mulher.

Contudo ouvi três histórias de vida, duas, escutei, apenas, as vozes, seus corpos,

em outra dimensãomundana. Evocações [Muitas vezes ouço falas de quem não vejo nem o

corpo] traziam a violência de gênero nas suas múltiplas manifestações, inclusive simbólica.

Eram narrativas de sua mãe e de sua filha, contadas por Tereza. [De muitas histórias já sei], minha escolha geográfica, certamente, não foi acaso.

A violência contra mulheres é fenômeno social, advém do modelo patriarcal de sociedade que, ao invés das relações pessoais afetivas estarem fundadas nos sentimentos e afeto, estão ancoradas no princípio de que a mulher é propriedade privada do homem, controlada e dominada por ele. Alcança as fronteiras geográficas dos contextos rurais baianos, certamente ainda é pouco propagada nos meios acadêmicos (DARON, 2009) e a materialização de políticas públicas destinadas à proteção e prevenção dos direitos humanos femininos violados, principalmente pelo atraso cultural, comportamentos moldados e baseados na hierarquia patriarcal, faz com que as mudanças sejam morosas. Na perspectiva feminista, a dissimetria de gênero carece de (re) ressignificação quanto aos direitos femininos.

Nas palavras de Paulo Freire (2015, p. 48), a libertação de homens oprimidos e, no meu entendimento, a adjetivação oprimidos remete ao homem incapaz de romper com ditames sociais que o ‘ensinam’ a ser o macho, o dono da mulher, a cumeeira da casa e, por isso, oprime e submete a mulher a atos brutais visíveis e invisíveis. E, neste sentido, libertar- se dessas amarras significa parir um ‘novo’ ser homem. “A libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem novo que só é viável na e pela superação da contradição opressores-oprimidos [as], que é a libertação de todos [as]”.

Mulheres têm experienciado em seus corpos e almas as consequências da relação patriarcal de gênero intensificada pelo sexismo, violência racial e misoginia. E [Sei que a

vida está para além do que pode ser visto, dito ou escrito] Tereza de Benguela, filha, mãe,

companheira, parteira, avó, amiga, mulher de identidade feminina, singular e plural, seu corpo já não mais está entre nós, contudo o legado de quem foi dona de seu próprio nariz será infinito. Sua morte não representa o fim, mas início de nova etapa, sem visto, dito e escrito, lembranças invisíveis, indizíveis, irredigíveis apenas continuum de sua história de vida registrada ao vento.

Acima, as palavras introdutórias deste capítulo têm a responsabilidade de visibilizar quão gratificante foi para mim conhecer Tereza de Benguela. Sua narrativa é parte do mosaico, em seus fragmentos, capaz de desenhar lindas histórias femininas, embora episódios advindos da relação assimétrica de gênero deixem sem cor a figura construída por pedaços recortados de momentos, ora alegres, ora carregados de sentimentos de opressão materializados pelas múltiplas formas de violência com ou sem sangue praticadas por homens pela ‘sorte’ da vitimizada nascer mulher.

No percurso da história das mulheres caminharam de mãos dadas o silenciamento e a invisibilidade (ainda perduram218) nas escritas, assim como nas suas fontes orais.

Certamente, mulheres como Tereza fizeram e fazem histórias singulares e plurais, constituídas e ressignificadas socialmente através do passado reavivado no hoje com expectativas no amanhã (TEDESCHI, 2015). E, na busca por reconstruir e ressignificar memórias subterrâneas (POLLAK, 1989), a história de vida como método qualitativo de análise oportuniza confluência entre história individual e história coletiva para emergência dessas escritas, neste caso a narrativa de Tereza de Benguela, mulher negra, pobre e trabalhadora rural, que conseguiu, com suas evocações, transpor o vazio e sair do anonimato para a historiografia oficial, porque

As memórias se constroem e se organizam a fim de incursionar o sentido das vivências do passado e, para tanto, é necessário expô-las seletivamente, publicamente e coerentemente para dar conta da trajetória de vida pessoal em sociedade. Por isso, conceber a memória como algo por construir, mais que mostrar uma lembrança, é um giro heurístico importante que beneficia a reflexão e traz à luz uma história silenciada.

A construção de lembranças envolve a utilização de códigos culturais compartilhados.

Apesar de as memórias pessoais serem únicas e irrepetíveis, uma pessoa nunca recorda sozinha, sempre está imersa em uma ordem coletiva que a contém. Dizemos que as pessoas falam – cada vez – como sujeito individual e coletivo, então, quando criam e transmitem suas lembranças, o fazem a partir dessa dupla condição. A lembrança coletiva pressupõe e se expressa somente a partir da recordação individual. Sem a presença de ambos fica impensável a formação da consciência [...] (TEDESCHI, 2015, p. 335).

Suas impressões, identidade, sentimentos, dores, alegrias foram materializados, quer seja pela narrativa oral ou mesmo narrativa corporal (gestos, choros, abraços), as lembranças estão sempre marcadas socialmente. Possibilitarmos à narradora/ao narrador emergir do não lugar de fala, de objeto, alçar voos e protagonizar suas narrativas implica

218 Mulheres silenciadas e invisibilizadas por marcadores sociais de diferenciação geralmente têm suas histórias

[...] darmos condições aos informantes de nos levar a ver outras dimensões e a pensar de maneira mais criativa a problemática que, através deles, nos propomos a analisar. [...] Histórias de vida e relatos orais fazem convites irrecusáveis para rever interpretações, desenvolver novas hipóteses e encaminhar novas pesquisas [...] (DEBERT, 1986, p. 2; 156).

Por sua vez, Thompson (1993) nos lembra que:

Por meio da história, as pessoas comuns procuram compreender as revoluções e as mudanças por que passam em suas próprias vidas [...], as pessoas idosas. Muito frequentemente ignoradas, e fragilizadas economicamente, podem adquirir dignidade e sentido de finalidade ao rememorarem a própria vida e fornecerem informações valiosas a uma geração mais jovem (p. 21-33).

Ao ressignificarem suas histórias individuais imbricadas com memória coletiva, mulheres velhas, a exemplo de Tereza, trilham no seu pretérito e trazem releituras a partir de suas experiências, contudo atualizadas pelo momento atual. Conforme já mencionado, é comum as narrativas não obedecerem uma sequência temporal, ou seja, há uma despreocupação cronológica no ato de contar sobre fenômenos sociais, como, por exemplo, as violências de gênero. Em alguns momentos privilegiam certos acontecimentos, a periodização temporal, em outros são marcadas por hiatos e silêncios deliberados.

Em especial, as entrevistas gravadas e transcritas, além da observação participante e anotações no caderno de campo, deram-me a permissão de adentrar o “mundo empírico” (FLICK, 2009, p. 164), escolhido como cenário da pesquisa, e que, por sua base didática e dialógica, aproxima quem pesquisa de quem narra suas experiências de vida. “É o momento em que os imponderáveis da cultura anunciam sua existência, dando-lhe carne e sangue ao relato. [...], a entrevista é processo de construção de dados sobre experiências diversas dos sujeitos e expressa pela linguagem, [...]” (ROMANELLI, 1998, p. 128-129). A intimidade com sua memória, seus detalhes, expressões corporais em situações especiais de quem rememora sua história de vida vai ganhando vida na relação com a pesquisadora ou pesquisador. A desimportância social se esvai ao posicionar-se como sujeito-objeto. Por outro lado, Romanelli salienta que:

Mesmo a relativa semelhança nas condições sociais e culturais de ambos não exclui a relação de poder de que está investido o pesquisador que indaga e extrai informações. Se o entrevistador e entrevistado reconhecem o poder do primeiro, este último também dispõe de possibilidade de exercer seu poder, que os dois sabem existir (p. 126).

Então, é preciso ter cuidado, mesmo considerando a entrevista narrativa a técnica mais adequada para aprofundar a temática em destaque nesta pesquisa. Essa modalidade de entrevista responde pelo acervo de informações, a releitura da história de vida de mulheres velhas como Tereza, ‘esquecidas’ e lúcidas ao rememorarem, nessa prática social, dores e delícias experienciadas desde a infância até à idade adulta. Possui características peculiares, não estruturadas, de profundidade e, portanto, é um instrumento metodológico capaz de motivar a pessoa entrevistada a rememorar espontaneamente sua história de vida. Exige a participação mínima de quem entrevista (JOVCHELOVITCH & BAUER, 2008). A abordagem inicial do/a entrevistador/a à pessoa informante se dá através da fala.