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1 DESFIAR A VIOLÊNCIA DE GÊNERO NA HISTORIOGRAFIA DA MULHER

3.4 ESBOÇO DO AUTORRETRATO: ELAS POR ELAS

FONTE: Arquivo da autora (2018)

Figura 13: Imagem de maquinário da casa de farinha (momento da secagem), Pau Ferro - Muritiba-BA

FONTE: Arquivo da autora (2018)

Figura 14: Prensa da massa da mandioca, Pau Ferro - Muritiba-BA

Figura 15: Fogão à lenha da casa de Esperança Garcia, Pau Ferro - Muritiba-BA

FONTE: Arquivo da autora (2017)

Figura 16: Colheita das raízes da mandioca para produção da farinha, Pau Ferro - Muritiba-BA

Figura 17: Plantação de fumo, Pau Ferro - Muritiba-BA

Figura 18: Penduração do fumo. As folhas do fumo na preparação para comercializar, Pau Ferro - Muritiba-BA

FONTE: Arquivo da autora (2017)

Para que servem as (auto)biografias? Neste contexto, qual a importância dos autorretratos de mulheres trabalhadoras rurais baianas? Por que preciso oportunizar estas atrizes, protagonistas que representam magnificamente seus papéis cotidianos? Por suas histórias de vida, aqui nesta pesquisa ganham corpos e almas e nos convidam a conhecê-las na primeira pessoa? É como, sabiamente, Mãe Beata de Yemanjá ensina a nós, mulheres negras:

Este tópico traz, sumariamente, a história de vida das 20 mulheres, autoras das narrativas autobiográficas e, intencionalmente, para este contexto, adoto identidades de Mulheres negras, antirracistas, por vezes, também, encontram-se no ‘mundo’ incógnito por carregarem consigo o duplo ferrete: gênero e raça. Eu, mulher negra e minhas entrevistadas, perpetuamos com as marcas. Bem nos ensina Carneiro (2003, p. 13) que “[...] desprezar a variável racial da temática de gênero é deixar de aprofundar a compreensão de fatores culturais racistas preconceituosos determinantes nas violações dos direitos humanos das mulheres no Brasil [...]”.

Trilogia intergeracional da violência de gênero

As descrições a seguir dizem respeito a 3 (três) mulheres, residentes na comunidade de Tabuleiro do Beija-Flor - Muritiba: mãe e filhas. Conviveram em épocas distintas com a violência doméstica e familiar116, racial e simbólica. Mulheres de origem pobre que, sem acesso à educação formal, foram induzidas ao trabalho infantil para complementar o orçamento familiar, resultando na adultez precoce, no cuidado com a casa e com as crianças. Suas casas foram construídas no mesmo terreno e certamente a violência acometida no espaço privado era um problema público-familiar, ou seja, seus pais, irmãos e irmã, são sua vizinhança mais próxima, têm suas casas construídas no mesmo terreno, deveriam, sim, estarem a par da situação de violência doméstica, pois, embora cada família residisse em sua própria casa, envolviam-se nas situações de violência, com o intuito de socorrer e amparar a mulher agredida. O trabalho rural foi o único meio laboral que essas mulheres encontraram para garantir a sobrevivência familiar. As filhas ainda exercem tais atividades.

ADELINA CHARUTEIRA

Escrava nascida no Maranhão, participou ativamente na campanha abolicionista da capital maranhense. Filha de uma escrava com um senhor, sabia ler e escrever, porém seu pai não cumpriu a promessa de libertá-la aos 17 anos.

Consciente de sua causa, Adelina passou a utilizar o seu trabalho para colaborar com os abolicionistas. Vendia charutos que seu pai fabricava e tinha, por esse motivo, fácil acesso a todas as casas da cidade de São Luís. Passava a seus companheiros os planos secretos de perseguição aos escravos

e informações sobre ataques da Corte nos Quilombos […] (JOMALINIS, 2014, p. 11).

Adelina117 Charuteira – 62 anos, casada, católica, aposentada por invalidez. Aos 10 anos de idade conheceu o trabalho na roça. A entrevista foi realizada ao final da tarde, nos fundos de sua casa, sentadas em um tamborete118. Sua família vivia em condições de extrema pobreza e as crianças foram submetidas ao trabalho precoce para auxiliar nas despesas domésticas. A pobreza foi, por muito tempo, ‘companheira’ de Adelina e de sua família. Na sua narrativa ressalta que não teve infância, afirmação comprovada com o trabalho infantil, o não acesso à escola e, certamente, não usufruiu do direito de brincar.

Adelina experienciou a violação de seus direitos humanos desde tenra idade e persistiram os maus-tratos na sua trajetória de vida. Casou119 aos 16 anos [igreja e civilmente]

em decorrência da gravidez na adolescência, teve 8 filhos, 5 homens [1 falecido na infância] e 3 mulheres. Seus partos foram, na maioria, realizados por parteiras e apenas os dois últimos na maternidade. Seu marido sempre manteve relacionamentos extraconjugais, apoiado pela mãe, que não simpatizava com Adelina por esta ser negra e com cabelo crespo, embora sua sogra fosse negra, mas trazia traços indígenas.

Conheci Adelina durante reuniões quando coordenei o projeto A Maria da Penha em Movimento, entre os anos 2014 e 2015, nas cidades lócus de meu trabalho de campo. Na oportunidade em que convidei as mulheres para participarem das entrevistas individuais com vistas à elaboração da tese, ela se mostrou receptiva para contribuir com minha pesquisa. Durante o encontro para a escuta de suas narrativas, percebi sua voz ligeira e trêmula, assim como percebi suas lágrimas quando evocou lembranças da figura paterna e das violências a que foi submetida.

MARIA FIRMINA DOS REIS

[…] considerada a primeira escritora brasileira, pioneira na crítica antiescravista da nossa literatura. Negra, filha de mãe branca e pai negro, registrada sob o nome de um pai ilegítimo e nascida na Ilha de São Luis, no Maranhão, Maria Firmina dos Reis (1822-1917) fez de seu primeiro romance, Úrsula (1859), algo até então impensável: um instrumento de crítica à escravidão por meio da humanização de personagens escravizados (GELEDÉS, 2017).

117 Entrevistada realizada em 23/02/17, com um total de 8 páginas transcritas. 118 Pequeno banco de assento.

119 “Ao reconstruírem suas histórias singulares, as mulheres fazem uma verdadeira viagem de volta a situações

Maria Firmina120 – A mãe, Adelina Charuteira, indicou-a para ser entrevistada.

Firmina tem 32 anos, duas filhas adolescentes com 15 e 13 anos; é católica; está no seu segundo relacionamento e convive, na sua casa própria, com o companheiro; autodeclara-se de cor morena. A entrevista foi realizada um dia após o contato com sua mãe e irmã. Conversamos na sala de visitas e na presença de sua filha mais nova. Também na sua história de vida há lacunas na fase da infância. Experienciou a maternagem e não usufruiu desse momento, o cuidado com afazeres domésticos e com irmãos e irmãs lhe roubou a infância. Estudou até a 4ª121 série do ensino fundamental; engravidou aos 17 anos e passou a conviver

com seu agressor, pai de suas duas filhas122. As violências a que foi submetida tiveram início desde sua primeira gravidez.

Maria Firmina começou a ‘paquerar’ aos 12 anos, sua mãe não aceitava e, como solução, mandou-a para Salvador/BA, para morar com um dos irmãos. Nesse tempo, conheceu o pai de suas duas filhas e começaram a namorar, ela com 15 anos, ele com 17 anos, logo engravidou e, precocemente, iniciou a vida conjugal. Morou na cidade de Salvador, retornou com o marido para o interior e construiu uma casa no terreno de seus pais. Ela, por longo período, foi a provedora principal das despesas domésticas. O pai das filhas, além de não exercer atividade laboral, a agredia continuamente [não apanhou de seus pais, mas dele].

Com frequência Maria Firmina era agredida pelo seu marido e, por vezes, denunciou-o em delegacia não especializada, localizada na cidade onde mora, mas o resultado não era eficaz, já que ele permanecia em liberdade e perpetuando a violação de seu direito a uma vida livre da violência de gênero.

Como sua mãe, Maria, ainda jovem, engravidou. Sua sogra não simpatizava com ela, sempre foi conivente com as agressões perpetradas pelo filho. A sogra pedia paciência a Maria Firmina diante da situação de violência de gênero, como alento, contava partes de sua história de vida em que foi submetida a atos violentos cometidos pelo pai de seu filho. Neste contexto vivenciado pela sogra, o fenômeno da violência é materializado na sua modalidade simbólica, isto é, naturalizada e avalizada pela sociedade. No seu entendimento de ordem patriarcal, o homem passa a ter direitos sobre a mulher, quando é assinado pelo casal o contrato sexual, por ser o direito patriarcal dos homens sobre as mulheres reflexo da natureza humana (PATEMAN, 1993). No entender da autora, “[...] o marido detinha a propriedade da pessoa de sua esposa, e o homem era um proprietário e um senhor absoluto, somente ele

120 Entrevista realizada em 24/02/17, com um total de 6 páginas transcritas. 121 Atualmente, 5º ano fundamental 1.

pudesse fazer o que quisesse com o seu bem” (p. 184). Neste sentido, o discurso da sogra de Maria Firmina reforça ser a organização social de gênero formada por homens e mulheres, responde negativamente pela naturalização da violência doméstica esperada, socialmente.123

Tantas foram as recorrências de violência que Maria Firmina abandonou a casa, mas terminou retornando, pois temia perder a guarda das filhas.

ACOTIRENE

Uma das primeiras mulheres a habitar os povoados quilombolas da Serra da Barriga em Alagoas. Matriarca do Quilombo do Palmares, exercia a função de mãe e conselheira dos/as primeiros/as negros/as refugiados na Cerca Real do Macacos. Era consultada para todos os assuntos, desde questões familiares até questões político-militares (JOMALINIS, 2014, p. 5).

Acotirene – A mãe a indicou para ser entrevistada. Tem 42 anos, é solteira e se

autodeclara negra124, é filha de Adelina e irmã de Maria Firmina. A entrevista foi realizada logo após a de sua mãe e no mesmo local. Seus pais presenciaram a nossa conversa. Ao contrário de sua irmã, a fase infantil foi vivida, embora se responsabilizasse por cuidar125 de irmãos e irmãs. Aos 13 anos, entre estudar e a maternagem, foi impelida a, compulsoriamente, escolher a segunda opção. Sua mãe trabalhava e as responsabilidades da casa eram atribuídas para filhos e filhas. Na família, há histórico desse fenômeno, à medida que filhos e filhas começam a trabalhar ainda na adolescência, quem tem mais idade toma conta de quem é menor. A entrevistada narrou que não teve adolescência, aos 14 anos começou a trabalhar na empresa de agricultura fumageira para ajudar em casa; engravidou aos 16 anos. Continuou morando com seus pais e assumiu a responsabilidade de criar sozinha seu filho126 com apoio da família. O namorado apenas registrou a criança.

A relação com o pai de seu filho foi conturbada e sofrida, pois, além dela, namorava também com uma de suas primas, motivo pelo qual rompeu a relação amorosa. Trabalhou em Salvador e começou a segunda relação. A convivência familiar era cordial, o namorado de Acotirene considerava-se pai biológico de seu filho. Ela engravidou e ficou desempregada, retornou para junto da família, o namorado ficou em Salvador, depois a

123 Ver, por exemplo, Saffioti & Almeida, 1995. 124 Autodeclaração.

125 Ver, por exemplo, Tavares (2010), para quem a socialização de meninas das classes populares envolve ajudar

nos serviços domésticos e cuidar dos irmãos mais novos: A autora explica que: “A dinâmica familiar, desde muito cedo, é estruturada em papéis e responsabilidades distintas, que dão contorno à imagem de virilidade, associada a liberdade e autonomia, enquanto a imagem de feminilidade é vinculada à maternagem, ao dever, reprodução do grupo doméstico...” (2010, p. 127-128).

procurou e retomaram a convivência. Após 2 anos que a filha127 nasceu houve o rompimento do convívio, que durou 8 anos; ela não percebia um forte vínculo conjugal, ao contrário da relação entre o ex-companheiro e a filha, marcada por afeto.

Acotirene voltou a trabalhar no plantio e colheita do fumo e, com 24 anos, novamente se matriculou para estudar à noite. As responsabilidades com o trabalho no espaço privado e público a fizeram desistir. Todavia alerta à filha e ao filho sobre a importância dos estudos na vida do ser humano e se vê frustrada por não ter usufruído desse direito. Construiu sua casa junto à residência dos pais, onde mora com a filha e o filho. Tem a expectativa de encontrar um companheiro: “Tudo que eu peço a Deus é uma pessoa boa, né?.

Nesse percurso de sua vida Acotirene constituiu relações efêmeras. Afirma que ser mulher é não depender financeiramente de homem e sua fala, quando afirma que o homem quer ser dono da mulher, é carregada de aversão ao sexismo. Na visão dela, a classe é superior à raça. No seu cotidiano rural acredita que se a pessoa tem dinheiro independe a sua pertença a este ou aquele grupo racial.

Tal sogro, tal genro: as negas dele e as portas derrubadas!

As entrevistadas residem na comunidade rural Tabuleiro do Beija-Flor/Muritiba, guardam características de mulheres ‘não negras’, ou seja não possuem cabelos crespos e sua cor de pele não é vista pela sociedade como negra. A mãe e a filha se autodeclaram morenas, a filha morena clara, a mãe, apenas, morena, contudo não escaparam das múltiplas rupturas de suas integridades, tampouco de ‘pegarem na enxada de sete libras128’; a mãe narra a época de

criança sem interrupção, já a filha conheceu aos 5 anos de idade a dureza de ‘puxar enxada’ e ter calosidades em suas mãos, pois o pai a obrigava e às irmãs, desde crianças, ao trabalho precoce. Quanto aos estudos, mãe e filha foram obrigadas a interromper ou mesmo sacrificá- los para trabalharem na roça. A mãe, aos 12 anos de idade, começou a ajudar os pais e, aos 14 anos, relata dois fatores como responsáveis pela evasão escolar: a lida no trabalho rural e início de namoro.

Na educação doméstica não experienciaram violência física; diferentemente ocorreu na vida conjugal; mãe e filha129, vitimizadas pela opressão masculina, trazem nas suas

127 Na época da entrevista a filha estava com 14 anos de idade.

128 Na fala da entrevistada (mãe) trata-se de enxada pesada, logo, incompatível com a estrutura corpórea das

filhas.

falas a materialização do fenômeno da violência doméstica e familiar130 duplamente vivenciada: presenciou o pai que agredia a mãe e as filhas e, depois de casada, a agressão do marido dirigida a ela e aos filhos, ou seja, o processo da violência perpassa o seu papel de mulher, esposa, a violência doméstica atinge filhas e filho, a submissão à violência familiar é acometida pela figura do pai, marido de Luíza e, posteriormente, o filho e a filha de Anastácia, ela, que também, na infância, passou pelo processo violento em casa, apresentaram consequências de atos violentos de seu pai. A menina, problemas relacionados à cognição, o menino, sentimento de revolta pelo pai diante dos maltratos com a família131. Em outros

momentos, assumiam lugares de sujeitas passivas ao presenciarem violações advindas do marido/pai na vida da mãe, sendo a filha, naquele momento, tomada pela impotência; mais recentemente, atos brutais cometidos pelo marido/genro na vida de sua filha; a mãe, cansada pelo longo sofrimento durante os anos em que foi casada com seu agressor, não conseguia impedir o sofrimento de sua filha. Acredito ser a razão que a fez indicar a filha para ser entrevistada. Assim como o sogro, o genro costuma também abrir a porta com pontapés.

Mãe e filha trazem as marcas do trabalho rural compulsório, mas, apesar de continuarem a exercer atividade na roça, esta não se configura como principal fonte de renda para a sobrevivência familiar. A filha, por encontrar-se desempregada, depende financeiramente de seu agressor.

LUÍZA MAHÍN

Nascida em Costa Mina, na África, no início do século XIX, Luísa Mahin foi trazida para o Brasil como escrava. [...], Luísa esteve envolvida na articulação de todas as revoltas e levantes de escravos que sacudiram a então Província da Bahia nas primeiras décadas do século XIX. Quituteira de profissão, de seu tabuleiro eram distribuídas as mensagens em árabe, [...], esteve envolvida na Revolta dos Malês (1835) e na Sabinada (1837-1838). [...]. Como negra africana, sempre recusou o batismo e a doutrina cristã, e um de seus filhos naturais, Luís Gama (1830-1882), tornou-se poeta e um dos maiores abolicionistas do Brasil. Descoberta, Luísa foi perseguida, até fugir para o Rio de Janeiro, onde foi encontrada, detida [...] (PALMARES, 2013, s/p).

Luíza Mahín132 – Participou do projeto de extensão já mencionado e aceitou

participar de minha pesquisa, tem 54 anos, está viúva há 16 anos, possui 4 filhas, das quais 2

130 Familiar, principalmente, a violência psicológica perpetrada, nos dois momentos vividos por elas no ambiente

familiar, contra suas crianças.

131 Conforme pormenorizo quando faço referência à Anastácia na sua história singular. 132 Entrevista realizada em 24/02/17, com um total de 9 páginas transcritas.

moram com ela, além de 1 neto e 1 neta. A entrevista foi realizada em dois momentos e dias distintos. A primeira parte foi na área externa da Associação Comunitária, quando a entrevistada retornava da atividade física promovida pelo sindicato rural local, mas o barulho nos arredores impossibilitou que déssemos continuidade. No dia seguinte, retornamos a conversa em sua casa, à tarde, na sala de visitas. A filha133 participou ativamente da

entrevista. Sua infância transcorreu sem trabalho precoce. Aos 12 anos passou a auxiliar os pais no plantio, colheita e cuidado da lavoura. Iniciou com 14 anos um relacionamento amoroso e, aos 18 anos, casou grávida. Nas suas narrativas recorda o desagrado de seus pais, bem como de pessoas conhecidas quanto à sua escolha conjugal.

Evoca na sua narrativa134 não somente perdas que teve, como também rememora

os piores momentos vividos após se casar. Sua concepção de violência contra a mulher é ser xingada, agredida fisicamente, brigas conjugais. Enquanto ser mulher é viver alegre. Rememora que sua vida foi permeada de tristeza, mas afirma que hoje se sente alegre, embora, durante a entrevista, sua fisionomia a contradissesse, olhar baixo, cabisbaixa e sorriso melancólico. A filha auxiliou nas lembranças de episódios esquecidos ou não, embora vividos, como a surra que levou do marido. Era proibida de sair, até mesmo de ir ao médico. Já viúva, consultou-se e foi diagnosticada com depressão.

As expressões da violência de gênero, doméstica, familiar, física e simbólica fizeram parte de seu cotidiano. As ameaças de morte do marido, revólver embaixo do travesseiro para constrangê-la, violência patrimonial, moral, psicológica, ameaçava tocar fogo no colchão onde dormia, sofria opressões, submissões; era forçada a dividir alimentos e mandar uma das filhas entregar à mulher com quem ele mantinha relação extraconjugal. Mazelas, desprezo, dizia que ela era “fedida”, alegava que o alimento comprado era para a família da amante, pois não queria ter gastos com ela, apesar de esta trabalhar na roça lado a lado com ele. Para filhos e filhas da “outra” as melhores compras, alimentos, vestuário, enquanto as migalhas, vestuários e alimentos inferiores para ela e suas filhas.

Luíza rememora que seu marido sustentava a ‘mulher da rua, do mundo’, juntamente com seus filhos e filhas. Sua agressividade era tamanha que o fez rasgar com o facão, em duas bandas, uma saia que ela vestia, sob a alegação de que estava transparente. A porta da casa era arrombada com frequência por ele, tamanha era sua bravura ao chegar à residência. Seu desejo era que Luíza morresse antes dele, contudo foi ele quem morreu

133 Ela também foi entrevistada.

134 Ver, por exemplo, Pollak (1989), que, ao estudar a forma como a memória é preservada, chama atenção para

primeiro. Ao chegar de moto na entrada da casa da mulher com quem se relacionava, passou mal e antes de receber cuidados médicos faleceu. Ele foi diagnosticado com doença de Chagas. A filha relembrou que ele sempre dizia que ia fazer, em breve, uma viagem.

ANASTÁCIA

A princesa Anastácia, como era chamada, viveu algum tempo na Bahia, mas foi em Minas Gerais que ela passou a maior parte da sua vida, na fazenda de seu pai.

Ajudando os escravos quando eram castigados, ou facilitando-lhes a fuga, de Anastácia ficou a imagem de uma mulher de grande beleza, personalidade forte, que tinha consciência da injustiça e crueldade da escravidão. Ao se negar à violência física e sexual de um homem branco e para não mais pregar contra escravidão, recebeu o castigo de usar uma mordaça de folha de flandres e uma gargantilha de ferro, [...].

Extremamente doente, foi levada para o Rio de Janeiro onde se tornou famosa por lhe serem atribuídos vários milagres. Foi enterrada na Igreja do Rosário, [...] (JOMALINIS, 2014, p. 12).

Anastácia135 – A mãe a indicou para ser entrevistada, tem 35 anos, é casada, mora

com sua genitora e com seu filho e filha. A entrevista foi interrompida, sequencialmente, por silêncios (POLLAK, 1989), choros, fala entrecortada, olhares tristes e melancólicos, em que as palavras deram lugar ao indizível136. Sua mãe também participou desse momento. O local escolhido para seu rememorar137 foi a antessala da casa materna. Aos 4 anos começou a