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1 DESFIAR A VIOLÊNCIA DE GÊNERO NA HISTORIOGRAFIA DA MULHER

3.3 QUEM FORAM AS MULHERES QUE PARTICIPARAM DOS RELATOS OU

Para além dos escritos sobre as entrevistas, este tópico potencializa não somente a complexidade e a diversidades das experiências, bem como realizações vivenciadas por elas; seus comportamentos103 na vida diária, as múltiplas formas de violência de que foram

vitimizadas e os sutis mecanismos para driblar opressões, principalmente advindas de homens.

102 Faço referência à história de vida de Maria Crioula, que mesmo o marido mantendo outro vínculo conjugal há

muitos anosainda o espera.

E, na intenção de (re) construir histórias de vida das entrevistadas, assim como contextualizar o dizível e o “indizível”, foi elaborado o seguinte roteiro para a entrevista narrativa, não obstante labirintos e enigmas no momento de responder às minhas indagações, foram recorrentes durante as conversas entre pesquisadora e pesquisada, o que, certamente, foi escolhido por elas por conferir grau de importância à resposta formulada sem seguir roteiro definido. Busquei respostas a partir do seguinte roteiro: Nome, idade, identidade de gênero, estado civil, filhas/os, fale de sua infância, adolescência, juventude. Sobre sua família (pais, irmã/ãos), estudos e vida laboral. Sua vida adulta. Relacionamentos amorosos, quando iniciou. Vida conjugal, a relação com o companheiro (a). O que é ser mulher para você. O que você define como violência contra a mulher. Percebe na sua vida alguma forma de violência?

Ser trabalhadora rural e residir em contextos rurais constituiu-se em condição principal para as mulheres participarem de minha pesquisa de campo. As entrevistas foram realizadas entre janeiro e março de 2017104, com duração entre 1 e 2 horas, os depoimentos foram gravados e transcritos de modo a preservar a autenticidade das informações.

Convém salientar que o vínculo com as mulheres entrevistadas se deu a partir dos projetos105 desenvolvidos nas duas cidades, com o apoio dos sindicatos rurais locais e, a partir desta aproximação, pude ter acesso a outras histórias de vida, indicadas por elas. É importante também salientar que ao convidar as mulheres para fazerem parte do meu trabalho de campo surpreendi-me com uma delas106 ao me chamar afastado e me confidenciar: “Eu quero que você vá na minha casa. Meu marido quando bebe me esculhamba toda, bate, só tu veno”. A surpresa maior foi que eu não a conhecia e não participou de nossos encontros durante os 7 meses de duração do projeto. Mas sei que havia divulgação de meu trabalho nas comunidades onde realizava as atividades sobre a temática da violência, em especial sobre a Lei 11.340/2006.

Destaco, neste espaço sobre ‘quem são elas’, a dinâmica dos sindicatos rurais das duas cidades, bem como a participação das entrevistadas nas atividades desenvolvidas. São reuniões, encontros com discussões alusivas à condição de trabalhadoras e trabalhadores rurais, inclusive tive a oportunidade de presenciar reunião com lideranças rurais e poder público municipal. Há agendas para atendimento oftalmológico, jurídico, atividades físicas, reuniões com técnicos e técnicas agrícolas para discussões sobre o meio rural, como

104 Durante as entrevistas minha estadia nas comunidades variava entre 3 e 7 dias. 105 Entre os anos de 2013 e 2015.

distribuição de mudas de plantas, sementes, adubos, maquinários – a exemplo de tratores para atender à comunidade.

As histórias de vida evocadas para esta tese foram narradas a partir de contextos, ao meu ver, relevantes na vida de cada uma das mulheres. Antes de iniciarem suas falas, sempre explicava a finalidade daquela entrevista e como deveriam proceder durante a mesma, iniciar a narrativa a partir da infância e continuar com as fases seguintes.

Cabe ressaltar um aspecto relevante durante o trabalho de campo, especificamente no momento das entrevistas. Percebi no início das suas narrativas evocações a partir da fase adulta, enquanto sobre a infância, conforme já mencionei, foi necessário, em determinados momentos, despertá-las para rememorarem, voltarem suas reminiscências e lembrarem dessa ou daquela etapa de suas vidas. Suas histórias percorrem labirintos, idas e voltas que fugiam aos objetivos da pesquisadora, e ensaiavam um movimento de lembrar e esquecer107 frustrações, sentimentos dolorosos [mágoas, feridas ainda abertas, rancores, raivas, perdas...] na vida de cada uma dessas mulheres. Por vezes, solicitava que falassem sobre questões ‘esquecidas’, a exemplo da infância e relacionamentos, sem deixar de lhes dar a oportunidade de ‘colocarem’ para fora suas histórias individuais. Todas as entrevistas foram realizadas no primeiro semestre de 2017.

Para descrever o perfil das mulheres entrevistadas peço licença às minhas ancestrais, mulheres negras, personalidades importantes que fizeram história na sociedade brasileira, embora não valorizadas e esquecidas, mas vivas na memória de ativistas antissexistas e antirracistas. Antes, porém, ressalto aspectos significativos para entendimento do propósito da pesquisa.

Ao me permitirem escutar suas narrativas, essas mulheres separam de suas histórias de vida lembranças que as identifiquem, ou seja, retocam as ‘fotografias’ que quiseram me apresentar. Assim, omitem tanto eventos desimportantes como também causadores de incômodos individuais, que consideram ‘indizíveis’, entretanto relevantes para minha pesquisa. Embora as entrevistadas tenham sido convidadas para meu trabalho de campo e este fosse pautado em um roteiro, não lhes pareceu interessante contar suas histórias na cronologia determinada e elaboraram seu próprio itinerário, mesmo diante de minhas interrupções quando a ‘viagem’ se distanciava do objetivo da pesquisa.

Quanto ao conjunto de características similares, essas mulheres tiveram suas infâncias interrompidas pelo trabalho precoce nas roças familiares ou sob a forma de trabalho remunerado, em roças alheias. Para elas foi negado direito à educação por motivos como:

ausência dessa política pública na localidade onde residem, mas também por serem marcadas pelo fenômeno da pobreza e forçadas a abandonar os estudos para complementarem os ganhos de seus pais. Assim, quanto à escolarização, há mulheres não alfabetizadas, que não assinam nem o nome, ou sem o ensino fundamental I completo [estudaram até a 3ª série], enquanto um número reduzido de mulheres tem o ensino médio e outras não chegaram a concluí-lo. Outro fator que as afasta da escola é o fato de assumirem responsabilidades ao experienciarem a adultez/maternagem108, junto aos afazeres domésticos e cuidados com irmãos e irmãs em

tenra idade; a maioria constituiu relacionamentos conjugais ainda na adolescência, em decorrência de uma gravidez não planejada.

Foram realizadas 20 (vinte) entrevistas narrativas com mulheres trabalhadoras rurais, contudo enfatizo a não linearidade, ou seja, considerei de forma heterogênea a categoria etarismo, cuja idade variou entre 22 a 87 anos, e raça, uma vez que se declararam negras, morenas, pardas, embora, se levarmos em conta o quesito cor, a maioria das entrevistadas tem a melanina acentuada e, de acordo com a forma classificatória adotada pelo IBGE, pode-se defini-las como mulheres pretas. Contudo cabe destacar que “reconhecer-se numa identidade supõe, portanto, responder afirmativamente a uma interpelação e estabelecer um sentido de pertencimento a um grupo social de referência” (GOMES, 2005, p. 42).

A renda familiar origina-se de aposentadorias, pensão por morte, 3 delas são

viúvas, porém não recebem esse benefício109; Bolsa-Família, emprego formal e

informal/doméstico, cujos valores alternam entre menos de 1 a 2 salários mínimos. Com relação à questão laboral, uma delas é ex-vereadora e hoje servidora municipal, há aquelas que trabalharam ou trabalham na agricultura familiar e/ou patronal [modalidade de trabalho sazonal em empresas exploradoras de terras do Recôncavo que contratam pessoas para trabalho temporário na lavoura do fumo]. Seus rendimentos originam-se de aposentadorias/FUNRURAL, pensão por morte, salário mínimo ou inferior a este valor, mas há também quem dependa financeiramente do marido ou ainda aquelas que realizam afazeres domésticos e trabalham em pequenas roças familiares. Há mulheres que são provedoras principais de suas despesas domésticas e sustento familiar.

108 Geralmente, famílias pobres, para sobreviverem incubem a filhas e filhos responsabilidades dos afazeres

domésticos, a exemplo do cuidado com irmãs/ãos de menor idade (DUQUE-ARRAZOLA, 1997).

109 Na sua fala, Luiza Mahín narrou que o marido se aposentou ainda solteiro e, então, ela não recebe; Tereza de

Quanto ao estado civil, são mulheres viúvas ou viúvas de marido vivo110, 1 delas, apesar de casada, está há mais de 20 anos sem conviver com o marido111; outra é solteira, mas há também mulheres divorciadas, em união estável informal ou relação de namoro; encontro nas narrativas relações desfeitas, refeitas112, mulheres com histórico de sucessivas uniões conjugais. Com relação à prole, 2 entrevistadas não são mães, as demais têm entre 2 a 12 filhos/filhas, e somente uma mora sozinha.

As condições socioeconômicas das pesquisadas são similares, haja vista suas fontes de renda. Na sua maioria, são mulheres-mães com histórico de apenas um relacionamento conjugal, uma delas teve dois relacionamentos, advindo daí duas gestações, as demais tiveram até 10 gestações; somente uma delas é solteira, mora sozinha e não é mãe. Residem geralmente em companhia de filhos e filhas que ainda não constituíram família, netos e netas, mas há aquela que mora com a mãe e um filho ou quem resida com a filha, a neta e o genro. Suas residências são, especificamente, em terrenos extensos onde filhos e filhas moram com suas famílias. Todas são da religião católica e, geralmente, assumem cargos de liderança nas respectivas igrejas de suas comunidades.

Durante as narrativas, as entrevistadas rememoraram suas histórias de modo factual, iniciaram suas falas a partir de fases em descompasso com o roteiro estabelecido. Driblaram criativamente a temática dolorosa da pesquisa, ao evocarem, por exemplo, o momento atual, ou ‘apagavam’ lembranças cujas feridas ainda se encontravam em cicatrização. Assim, o ato de narrarem, lidarem com a temporalidade, não significa que a memória trouxesse na íntegra a vida dessas mulheres. Afinal, a memória é caprichosa e seletiva113 (TAVARES, 2008).

110 Segundo AB’SÁBER (1999), em períodos de seca prolongada a falta de emprego permanente resulta na

migração de homens adultos para os centros urbano-industriais e dá origem ao fenômeno dasviúvas de marido vivo. “Com uma frequência maldita surge a figura sofredora das viúvas de marido vivo. No começo, os que migraram, enviam uma pequena ajuda em dinheiro, pelo correio, para suas distantes famílias, dentro de suas limitadas possibilidades. Logo, porém, por diversas razões, cessa essa generosidade; fato que se deve à gradual integração no ritmo alucinante das grandes metrópoles, ou ao orçamento apertado do trabalho braçal em fazendas, indústrias ou serviços: nichos de trabalho, todos administrados com pragmatismo e grande insensibilidade humana...” (AB’SÁBER, 1999, p. 32). Ver, também, Silva e Menezes, 2010.

111 A entrevistada, embora saiba que o marido convive com outra mulher em São Paulo, tem esperança de ele

retornar para continuar a vida matrimonial.

112 Famílias compostas, descompostas e recompostas ou [feitas] desfeitas e refeitas (SARTI, 2007) atuam na

trama conjugal metamorfoseada e contrariam o imaginário social da não ruptura nos ciclos de desenvolvimento sociofamiliar.

113 De acordo com Tavares (2008, p. 35), “as lembranças pessoais são reconstituídas sob as bases de um presente

que é social, ou seja, são submetidas a uma seleção; esquece-se de determinados aspectos, amplia-se outros a embelezar a narrativa, em consonância com o momento presente e com as circunstâncias, lugares e pessoas com quem a memória será reavivada. As lembranças ganham novas formas no presente, ainda que falem do passado, isto é, a narrativa consiste em recriação de uma história que, vivificada com outros matizes, desata as tramas da memória”.

Não obstante as memórias individuais e coletivas, narradas, gravadas, transcritas e seus conteúdos trabalhados criticamente para elaboração de minha pesquisa, essas histórias de vida femininas têm, sob a perspectiva feminista, explicitado de modo contundente similitudes na reprodução binária baseada no imaginário social. Mulheres foram ‘domesticadas’ desde pequenas para o cuidado com irmãos e irmãs menores de idade, assim como desenvolver afazeres domésticos, geralmente auxiliadas pelas filhas e filhos, dificilmente havia participação dos maridos. Já na roça, eram elas ajudantes sem remuneração dos pais e maridos, desenvolviam atividade econômica rural de agricultura familiar114 e produção de

gêneros para comercialização.

No exercício de rememorarem, reconstruírem suas histórias singulares, a divisão sexual do trabalho é indiscutível uma releitura feminina relacionada ao 'mundo próprio às mulheres’ (BRITO, 1994), que envolve uma memória familiar, afetiva e maternal, e, a partir dessa confluência, “[...] as lembranças das mulheres preservam temas integrados num domínio no qual o afetivo e o individual são fundamentais, [...]” (PISCITELLI, 1992, p. 160). Neste sentido, circunscritas ao lugar social que lhes foi demarcado nesses espaços rurais, suas lembranças se expressam em releituras, sem atender à estrita ordem do calendário cotidiano. Sem pretenderem ser exaustivas, suas narrativas se propõem

[…] a explicar sua vida para nós, se comprometendo, assim, com a manutenção da estreita conexão entre a história que conta e aquilo que uma investigação objetiva poderia descobrir. [...] quando lemos uma autobiografia, estamos sempre conscientes de que o autor só nos está contando uma parte da história, que selecionou seu material de modo a apresentá-lo com o retrato de si que preferiria que tivéssemos e que pode ter ignorado o que poderia ser trivial ou desagradável para ele, embora de grande interesse para nós (BECKER, 1999, p. 102).

Nesse sentido, para compor a descrição das entrevistadas adotei como critério a categoria intergeracional, isto é, realizei entrevistas, em momentos distintos, com mães e filhas oprimidas pela violência de gênero. E, para tanto, indago: Quem são as guerreiras e heroínas ontem e hoje115?

Apresento, simbolicamente e na escrita, breve perfil dessas mulheres.

114 A Lei 11.326/2006 concebe agricultor familiar aquele trabalhador rural que desenvolver suas atividades

laborais e atende aos critérios de utilizar, especialmente, mão de obra de membros da família, possuir áreas de terra como preconize essa lei e usufruir com a comercialização de gênero, proveniente dessa trabalho, o mínimo de renda familiar. A produção de alimentos, primeiramente, para subsistência familiar.