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1 DESFIAR A VIOLÊNCIA DE GÊNERO NA HISTORIOGRAFIA DA MULHER

3.5. QUESTÕES CHAVES QUE NORTEARAM AS ENTREVISTAS/NARRATIVAS

As escolhas sobre o que pesquisar sobre a vida de mulheres, principalmente mulheres cujas memórias são subterrâneas, conduziram-me a selecionar determinadas questões por motivo operacional, contudo a partir do trabalho de campo. Enquanto construções emergidas dos conteúdos adquiridos através de segmentos sociais, por exemplo, mulheres trabalhadoras rurais, para darem corpo à pesquisa empírica, fornecem base para apreender tanto as determinações quanto as especificidades expressadas na realidade do conhecimento empírico (MINAYO, 2000).

A proposta para debruçar-me no trabalho de campo teve as seguintes questões chaves: descortinar a violência de gênero contra mulheres trabalhadoras rurais nas cidades destacadas, escuta cuidadosa de suas narrativas e a escuta201 de gestões/manifestações corporais/sentimentais de mulheres, histórias narradas na primeira pessoa e, certamente, identificação a partir das rememórias, da violência simbólica (BOURDIEU, 2014) inerente ao patriarcado, por compreender que sua sutileza contribui para o agravamento das feridas invisíveis, além do quadro de saúde neurológica de mulheres, acometidas por “[…] doença de nervos como fruto de tensão conjugal […]” (GROSSI, 1994, p. 477), como bem enfatiza Carolina Maria [entrevistada]: Se botá na separação e porguntá as mulé qual é a doença delas? É a doença, é o sofrimento de marido! Traidor! É de, de acho quê, de cada 100 mulé

duas é traída! 2 que não é traída! Os homes apronta, viu?

Figura 20: Pés de abóbora, Pau Ferro - Muritiba-BA

201 Refiro-me às minhas observações assistemáticas desencadeadas pelo comportamento das mulheres no ato de

FONTE: Arquivo da autora (2018)

FONTE: Arquivo da autora (2018)

Figura 22: Trabalhadora rural no processo de adubação, Pau Ferro - Muritiba-BA

FONTE: Arquivo da autora (2017)

Mas, afinal, quem são estas mulheres – na condição de “vítimas” e “personagens da violência? São mães, avós, filhas, ‘companheiras’ por serem capazes de aguentar opressões masculinas e continuarem ao lado de seus agressores, tanto no cuidado doméstico quanto desenvolvendo atividades relacionadas ao cultivo da terra para garantia da sobrevivência familiar e, embora usem sua força de trabalho, esta não é remunerada.

As violências contra estas mulheres se materializam de numerosas formas, quer sejam na invisibilidade quanto ao seu direito a não ser oprimida, violentada, quer seja como produtora e reprodutora de bens e serviços na dinâmica sociofamiliar.

4 MOSAICO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO INTERGERACIONAL

[...] Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas eram tantas lágrimas, que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face. [...]. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum (CONCEIÇÃO EVARISTO, 2016, p. 18-19).

Este capítulo desenha o mosaico da violência manifestada na vida de Tereza de Benguela. Sua escrita aconteceu no momento em que eu era tomada pelo sentimento de perda/luto de uma das mulheres, mãe de mais de cem pessoas, suas mãos possibilitaram a chegada de crianças para comporem suas famílias. A parteira Tereza de Benguela202 recebeu

esse pseudônimo devido ao seu ofício, faleceu aos 89 anos. Essa mulher muito contribuiu com sua narrativa e, inclusive, é de sua autoria a frase “Sou dona do meu próprio nariz”. Era uma das convidadas para assistir minha defesa, o convite já havia sido feito. Não estará, materialmente, mas me lembrarei de sua humildade, simplicidade e lucidez no ato de evocar sua história de vida. Tereza trouxe consigo o amor maternal de Mamãe Caiala203, símbolo da fertilidade e de maternidade acolhedora, espécie de mãe/avó da vida, cujo ofício de partejar imprime reconhecimento e respeito na comunidade204.

Por outro lado, tenho mania de não acreditar em acaso. Isto posto, refiro-me à busca205 de um insight, estalo para escrever este capítulo, que busquei na obra da romancista, poetisa e contista Conceição Evaristo206, escritora negra, referência na literatura, que aborda experiências cotidianas de mulheres negras, fonte empírica e acadêmica à minha escrita. Dentre os livros de sua autoria, deparei-me com Olhos d´água (2016) e Histórias de leves enganos e parecenças (2016).

202 A autobiografia de Tereza de Benguela [foi parteira] consta no capítulo 2.

203 Inquice correspondente à Iemanjá dos Nagôs. Inquice ou bacuro ou calundu dos negros do Congo

correspondente a Iemanjá (SILVA, 1998). Conhecida como Iemanjá, é a dona das águas do mar, mãe de todos os filhos-peixe. Tem seios fartos e simboliza a maternidade acolhedora. […] (WERNEK, 2010).

204 “Na maioria das vezes, elas adquirem suas aptidões realizando partos por conta própria ou após aprender o

ofício com outras parteiras. O aprendizado, portanto, ocorre na prática, num contexto de falta de assistência às mulheres da comunidade em que a parteira atua. Em sua maioria, as parteiras são movidas por um desejo de servir, por um sentimento de solidariedade, pela necessidade de trabalhar...” (NASCIMENTO et al., 2009, p. 322).

205 A leitura do material em destaque aconteceu um dia antes do falecimento da entrevistada.

206 Mineira, mestra em Literatura Brasileira - PUC-Rio, Doutora em Literatura Comparada pela Federal

Fluminense; nascida em uma favela da zona sul de Belo Horizonte. Em 1990 inicia sua trajetória literária tendo como foco inspirador para sua escrevivência cotidianos de afro-brasileiros e afro-brasileiras, contudo é a condição de étnica e de gênero o sal de suas narrativas.

Na primeira obra a autora narra contos-personagens evocados pelas falas das protagonistas no exercício de rememorar a materialização de seu dia a dia, na tarefa de desfiar

experiências inerentes ao continuum histórico escravagista brasileiro, a

objetificação/coisificação de homens e mulheres, compulsoriamente, nos seus quartos de despejo207, lugares socioespaciais demarcados pelo capital, geralmente, à população afro-

brasileira. Em seus conteúdos, vimos autorretratos símiles aos das mulheres que compõem o mosaico sobre violência de gênero aqui pesquisada.

Seu prefácio é desenhado graficamente: “Minha mãe sempre costurou a vida com fios de ferro208”. E, nas primeiras palavras do prefácio, mais um fragmento: “A gente

combinamos de não morrer”. Recortes frasais, exatamente, de um dos contos que escolhi para

o tal insight. A narrativa do conto: A gente combinamos de não morrer209 esboça a violência cotidiana de bairros populares, adolescentes desassistidos pelo Estado, mães que choram ao lado dos corpos caídos de seus filhos e filhas. Estudos pela metade, atrativos efêmeros, necessidade de consumo do mundo irreal respondem pelo descompromisso com a educação formal e, sumarizando, os escritos guardam relação estreita com o imaginário social reservado a jovens afro-brasileiros/as.