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1 DESFIAR A VIOLÊNCIA DE GÊNERO NA HISTORIOGRAFIA DA MULHER

4.2 BRICOLAGEM: PARA COLAR E PENSAR PEÇA POR PEÇA

Tereza de Benguela219, 86 anos, mulher negra aposentada pelo FUNRURAL,

moradora na comunidade rural Preciosa, cidade de Alegria220. Filha mais velha de seus pais, disse-me que sua mãe pariu muitos filhos/as, contudo apenas três sobreviveram. Sua infância foi sortida de violações, a começar pelos estudos, que foram interrompidos por questões passíveis de reparações. Assumiu maternagem ao auxiliar sua mãe e sua avó materna. Trabalhou na roça desde os 8 anos e seu pai a fazia, precocemente, desempenhar atividades laborais. Como castigo, caso não atendesse as suas exigências, ficava com fome até concluir os serviços que lhe foram impostos.

Teve sucessivas uniões afetivas, entretanto sempre assumiu a provisão familiar. Enfrentou situações de violência intergeracional na família (sua mãe, ela e a filha, acometida

219 Nome fictício da entrevistada. 220 Nome fictício.

pelo feminicídio). Sua casa é humilde por não dispor de recursos financeiros para melhorias habitacionais, sua saúde é fragilizada, sendo mais grave sua pouca visão. Mesmo assim, é responsável pela criação e manutenção de 2 netas e 2 netos deixados por sua filha falecida, como ocorre com muitas idosas, conforme aponta Britto da Motta (2011, p. 18): “Em realidade, as idosas são arrimos de família também como cuidadoras de casa e de netos, [...]”.

No início da entrevista, Tereza começou a narrar sobre seu ofício de parteira, em seguida, seu primeiro relacionamento e, depois, o trabalho nas roças alheias. Posteriormente, se identificou e elencou momentos sequenciais, todavia seus discursos nem sempre correspondiam à lógica cronológica, como explica Bourdieu:

[...]. O relato, seja ele biográfico ou autobiográfico, como o do investigado que ‘se entrega’ a um investigador, propõe acontecimentos que, sem terem se desenrolado sempre em sua estrita sucessão cronológica (quem já coligiu histórias de vida sabe que os investigados perdem constantemente o fio da estrita sucessão do calendário), tendem ou pretendem organizar-se em sequências ordenadas segundo relações inteligíveis... (2006, p. 184).

Sua narrativa percorre “[...] uma verdadeira viagem de volta a situações distantes da memória [...]” (SILVA, 2010, p. 23); por vezes, as recordações sobre sua vida conjugal eram mescladas por encontros e desencontros, união desfeita e refeita e, no processo de rememorar, a memória “apagava” lembranças do companheiro com que conviveu nos últimos anos. Posteriormente à entrevista, Tereza teceu comentários a respeito desse homem, mas sem ‘mergulhar’ nas lembranças, preferindo preservar as zonas de sombra, silêncios e ‘não-ditos’, optando por enfatizar outras circunstâncias e aspectos (POLLAK,1989).

A entrevista de Tereza de Benguela foi extensa. Sentindo-se sujeita política pelo ato de contar-se, a entrevistada desobedeceu até mesmo o seu horário de almoço, haja vista a extensão de sua fala para além das 13 horas. E, neste sentido, dar voz a quem tem história de vida eivada pela recorrência de dissimetria de gênero, à qual Tereza experienciou em seus mundos privado e público.

Ouvir as histórias e acompanhar as idas e vindas no tempo cronológico determinado por Tereza certamente demandou cuidado para montar, peça por peça, tal qual um quebra-cabeça, que pouco a pouco foi me revelando a sua história. Sua infância, a partir dos 6 anos de idade, foi marcada por episódios de violação de direitos humanos, quando seu direito a ser alfabetizada foi cerceado, diante de uma lição que não soube dar (o ‘furo no olho do ABC’) e de um bilhete da professora para seu pai castigá-la. Em momentos simultâneos ela recordou o instrumento ‘castigador’, a palmatória, para quando mexesse na panela, mas,

também, o direito de se alimentar negado pela figura paterna como sanção quando não dava conta das tarefas na lavoura no tempo determinado. No entanto afirma relevar a postura paterna, já que a ensinou a trabalhar com a enxada.

Só fui um dia pra escola. Nesse dia que foi. E não dei a lição toda, ele chegou em casa bateu numa mão e na outra e agora você vai me pagar na enxada, ia pra roça. [...] Eu me arrependo hoje de ter furado o ABC (risos). Me arrependi por hoje eu não sei onde estou.

Ele mandou eu ir para escola com um bocado de menino, quando cheguei lá eu não dei a lição toda à professora. [...] Acho que era 6 anos [...]. Ela queria que desse a lição toda, mas eu não dei, ela chegou me pegou e me chamou assim: – Tereza. Eu disse: – Senhora. – Venha cá. Eu tinha furado os olhos (risos) (da “letra”221). [...] É a letra. A professora disse assim: – Você vai ficar de castigo quando chegar em casa, botou no papel: ficar de castigo. Eu disse: – Castigo. – Sim, porque você não deu a lição. Eu disse: – Como iria chegar e saber, sem saber o que estava fazendo? Quando dei o ABC pequenininho, aí ele olhou e o ABC estava furado. Ele disse: – Venha cá, e me pegou, deu 6 bolos nessa e aqui. Tinha uma palmatoriazinha que era pra dar na mão. Que era para a gente não bulir com nada, naquele tempo, não pegar nada nem dos outros e nem a panela que tivesse no girau de baixo, do girau que botava as carnes no tacho. Era pra gente não bulir se não apanhava, tinha aquela palmatoriazinha e a gente apanhou, eu apanhei. Ele deu 6 aqui e aqui (mostrou as mãos) [...]. Me deu uma surra. Porque derramei um sustão de saco. Eu vim da venda correndo, com sustão se saco na cuia, não tinha saco antigamente não, foi numa cuia. Vim correndo que não era pra demorar. Quando cheguei no batente da porta eu caí, ela me pegou deu uma surra, mas também não me bateu mais não. [...] Na roça, quando não terminava o trabalho, o castigo era não comer, só comia depois. [...] mas minha mãe fazia isso, olhava onde ele estava e vinha com uma coisinha na mão e botava na mão da gente. Ia pra casa da minha vó, ajudar minha vó, fazer comida para ela. Fazer mingau; só era ela e outra irmã, eu já estava grandinha e dava para fazer mingau e eu fazia. [...] uns 10 ou 12 anos, nessa base.

Ao contrário das lembranças paternas, associadas à dor e à fome, Tereza guarda consigo o amor materno, sua proteção, principalmente quando transgredia a determinação do pai, e, comovida pela forma brutal como ele agia, dava sempre uma “coisinha” escondida para a filha comer. Essa narrativa sucedeu sua fala quando lembrou de seus filhos e filhas. Quiçá, pode estar inter-relacionada com a diferença de criação geracional. Enquanto Tereza foi criada por seus pais, suas filhas e filhos experienciaram o processo de organização- desorganização-reorganização familiar (CARVALHO, 2007), ou seja, oscilações entre ausência e presença de figura paterna.

As releituras evocadas por Tereza, vividas na infância e rememoradas no presente, traduzem a história dentro da outra, como pontua Bosi (2003, p. 23): “Existe, dentro da

história cronológica, outra história mais densa de substância memorativa no fluxo do tempo”. Nora (1993) nomeia-a de memória evolutiva por estar viva em seu pleno movimento dialético, bem como na sintonia entre lembrança e esquecimento, ela é alheia à sucessiva descontinuidade de lembranças, além de ser também contemporânea. É esse perfil da memória responsável pelas narrativas da entrevistada em tempo real.

Ao analisar as narrativas evocadas por Tereza verifiquei que elas expressam gritos guardados das experiências iniciadas na infância, quando lhe roubam o direito aos estudos, assim como impuseram a adultez precoce e a sobrecarga no cuidado e manutenção familiar. E mesmo sendo o nosso primeiro contato abriu as portas de sua vida e se pôs a rememorar acontecimentos, neste caso, a memória familiar, ao lembrar da convivência com seus pais, avó e seus irmãos, individual ao contar-se, e memória social quando recordou os partos que realizou nas comunidades quando solicitada para esse ofício. Outra memória social refere-se à sua vinda a Salvador para trabalhar como empregada doméstica. O re-viver e o re-significar dessas lembranças contribuem para que Tereza, assim como outras mulheres pesquisadas, “[...] se percebam como sujeitos da história [...]” (PARENTE, 2007). Como reforçam suas narrativas: infância roubada, trabalho precoce, maternagem e adultez precoces (direitos vilipendiados).

A minha infância trabalhei tanto nas roças dos outros [...]. Eu ia trabalhar com meu pai. Meu pai ia trabalhar de ganho, eu aí com enxada. Com os 8 anos que eu ia arrancar lâmina e capinar na roça dos outros e quando trabalhava na roça dele mesmo que deixava uma tarefinha, dez caminho de margulho, não sabia cavar cova, [...]. O castigo era não comer, só comia depois222.

No ciclo da maternagem:

[...] quando eu ficasse com o menino se ela saísse, ficava com 2 meninos ou 3 aí. Brincava com menino no meio da casa até ela chegar. Ia carregar água na fonte com pote na cabeça e acendendo o fogo na panela pó feijão cozinhar. Eu ajudava a acender o fogo, mas não destampava a panela, ela botava água e não deixava a gente destampar porque podia virar, era um fogão enfiado os paus, era um pau lá e outro cá e um no meio. Era pra brincar aqui enquanto ela fosse e quando ela chegasse a gente ia fazer o que tava fazendo. Agora ela ia ficar olhando os filhos, fazendo comida quando ela chegar dar eles e a gente comer também. [...] Ia pra casa da minha vó, ajudar minha vó. Fazer comida para ela, fazer mingau, só era ela e outra irmã, eu já estava grandinha e dava para fazer mingau e eu fazia. Acho que uns 10 ou 12 anos, nessa base.

As meninas, geralmente pobres, aprendem desde idade precoce as prendas domésticas e são elas auxiliares de suas mães e/ou avós. Esse processo da maternagem, como ressalta Tavares (2010) em sua pesquisa sobre tramas e enredos eróticos de mulheres pertencentes a classes populares de Aracaju-SE. A autora, na sua reflexão, descortina a colossal miséria no ‘mundo’ dessas mulheres no percurso de suas vidas. Sua análise também revela a questão de gênero, estruturante na divisão sexual do trabalho doméstico. Neste sentido,

A ausência de infância encontra-se marcada por um curto espaço de tempo na escola, por falta de ‘orientação’, ‘cabeça fraca para o estudo’ ou porque, desde meninas, seu ‘objetivo’ era ajudar nas tarefas domésticas. [...] A dinâmica familiar, desde muito cedo, é estruturada em papéis e responsabilidades distintas, que dão contorno à imagem de virilidade, associada à liberdade e autonomia, enquanto a imagem de feminilidade é vinculada à maternagem, ao dever, reprodução do grupo doméstico. Para o menino, há um universo a ser explorado fora de casa, para a menina, o mundo se encerra no espaço privado e qualquer inversão de valores produz uma feminização ou virilização, indicativas de desordem, desvio no processo de construção de suas identidades sociais (TAVARES, 2010, p. 127-128).

Decerto, eventos como doenças peculiares à infância, festas tradicionais foram vividos por Tereza, entretanto a memória é seletiva e dá voz às escolhas no tempo e no espaço, que se traduzem em suas narrativas.

Sobre a permanência na escola, esta se mostra um ambiente hostil e excludente, embora expresse o arrependimento por não ter persistido e por ser analfabeta, e mais uma vez prefira relevar, pois sua memória a salva de apuros, já que consegue ir e vir sem dificuldades aos lugares, do mesmo modo que faz ao mencionar o trabalho precoce, que a ensinou a lidar com a enxada, preferindo destacar momentos prazerosos, as danças, cantigas e o samba:

Eu não fiquei mais não, menina. Botou de castigo e todo dia ia pra roça com enxada. Só fui um dia pra escola. Nesse dia que foi. E não dei a lição toda, ele chegou em casa bateu numa mão e na outra e agora você vai me pagar na enxada, ia pra roça. Ia trabalhar. Eu me arrependo hoje de ter furado o ABC (risos). Me arrependi porque hoje eu não sei onde estou. Eu sei andar, eu indo mais você um dia, em qualquer lugar pode me deixar que outro dia eu já vou. Acho que eu tenho um dom.

[...] se ela saísse, ficava com 2 meninos ou 3; [...] Ia carregar água na fonte com pote na cabeça e acendendo o fogo na panela pó feijão cozinhar. Eu ajudava a acender o fogo, mas não destampava a panela. Mas foi bom, sabe, porque me ensinou a trabalhar de enxada.

Eu fui criada em muitas coisas boas também, tinha presépio naquele tempo, que hoje não tem mais, a gente cantava, hoje não sei nem mais um pé da cantiga do presépio mais. Tudo isso. A única coisa que não fiz, me desculpe

a palavra, foi roubar. Mas tudo isso eu fiz: cantar roda, sambar, dançar, tudo fiz, só não roubar.

Observa-se que o processo de significação e ressignificação vivo na memória de Tereza de Benguela redescobre momentos doces em meio aos momentos difíceis. Os ônus e os bônus por ser mulher, pobre e morar na roça. Outro aspecto relevante na história de vida da entrevistada correlaciona-se com sua trajetória de conjugalidade, caracterizada por sucessivos encontros e desencontros, descontentamentos, frustrações e desilusões.

O primeiro namoro estava trabalhando. Tava com 18 anos, já tava namorando. Levei um bocado de tempo. Mas naquele tempo a gente não tinha juízo, larguei ele lá e vim embora pra roça. Isso é uma coisa que foi passado (refere-se ao primeiro namorado). A menina morreu.

Não fui casada, mas fiquei viúva. Eu trabalhava pela roça dos outros e depois eu conheci esse homem, tive esses filhos todos, 6 filhos. Então quando ele morreu, bem, o mundo pra mim terminou. Sobre essas coisas terminou.

Na casa dele e eu na minha. Na minha só foi pai dela aí que ficou mais eu. Ele foi embora. Ele deixou e essa menina, ele arrumou outra namorada e casou, deixou eu pra ter menino. [...].

E nem descontrolar a vida de uma mulher casada [...], isso eu pedi a Deus e venci. Porque via minha mãe sofrer eu pedia a Deus encarecidamente eu via. Eu dizia assim: mas Deus, eu quero que o Senhor me deixe de verdade. Uma coisa que tava falando com ele. Aconteça o que acontecer comigo, mas eu tomar um bolo de pirão de um homem casado pra eu comer e a mulher ficar lá chorando eu disse não, Deus não vai me mostrar isso nunca, não fiz e estou aqui com essa idade.

Durante essa fala da entrevistada observei, atentamente, sua fisionomia, contudo manteve-se distante, melancólica, com o olhar cabisbaixo. O homem com quem se relacionou e ficou grávida rompeu a relação alegando compromisso com outra mulher. Ela encorajou-se naquele momento, mas certamente sofreu, afinal, já havia experienciado, em outras relações conjugais, a permanência efêmera de homens, pais de filhos e filhas. As traições sofridas tanto pela mãe como por ela fazem com que seja enfática ao afirmar que não é capaz de se relacionar com homens comprometidos, não aceita que mulheres sejam submetidas pela opressão/humilhação como ela teve que conviver. Sofrimentos não faltaram em sua vida, a começar por sua mãe, ela e, posteriormente, a filha assassinada.

Dar voz a Tereza de Benguela para narrar a violência na vida de sua filha foi como se esta estivesse presente durante a entrevista, dada a riqueza de detalhes lembrados, contrariando certas representações no imaginário social acerca do envelhecimento, que incapacitam a pessoa idosa do ato de contar. Conforme ela veementemente ressaltou: “O

corpo tá moído, o corpo tá velho, desmanchado, aí o povo diz: “É, fulana já tá véia, não pode conversar [...] deixa eu falar, disse que não sei falar porque eu era velha pra conversar”.

Com efeito, Debert (1986, p. 151), ao mencionar sua pesquisa sobre a velhice, ressalta: “Relatar determinados fatos e situações era, para as mulheres velhas que entrevistamos, [...], uma forma de desarticular certas visões sobre a velhice que elas supunham que nós tínhamos”.

Ao evocar seu lugar de fala a entrevistada agencia-se e garante esse lugar de fala, e não de sujeito-suposto-saber ou infante (GONZALEZ, 1988). Seu discurso se aproxima das epistemologias feministas do ponto de vista (standpoint) ou Perspectivistas que, pautadas nos ideais marxistas, sustentam a ideia singular de conceber o mundo diferente de seus próprios problemas e soluções (HARDING, 2011).

Tereza – embora com sua trajetória de vida marcada por matrizes macroestruturais de opressão, como gênero, raça, classe social, família monoparental, etarismo etc. – fez suas escolhas ao invés de permanecer no continuum ciclo de subordinação/submissão e, consequentemente, da opressão de gênero perpetrada pelo macho, seguiu, na sua condição de mulher negra solitária (CARNEIRO, 2002). Ao ingressar na religião evangélica foi questionada sobre a possibilidade de reconstituir ‘laços matrimoniais’ e, taxativa, responde: “Aí passei pra igreja de crente. Lá o crente me perguntou: Irmã, prefere casar? Eu disse não, já fui casada e já sei o que é marido e não quero mais”.

Ser a dona de seu nariz representa para Tereza tomar decisões sobre seu destino ao retornar para o cuidado da prole, pois deixou o trabalho de doméstica em Salvador devido a ser explorada em sua mão de obra. As intempéries cotidianas não encontravam em Tereza inabilidade para enfrentá-las e driblá-las. Por ser destemida, Tereza estava sempre disposta a vencer, reinventar o ser mulher na sociedade que a oprimia na sua condição social. Persistiu e coloriu sua caminhada encorajada por uma fé ‘invisível’, como narra a seguir:

Sim. Por que, eu nunca botei um pano na cabeça pra ir para casa dos outros. Eu trabalhava, eu tinha minha roça... quando eu dei pra ir ganhar pá roça dos outros quer dizer que eu sabia o que estava fazendo! Trabalhei muito, criei meus filhos todos, 12, o pai trabalhava, era pouco, mas trabalhei e criei todo mundo. E nunca eles foram pedir um punhado de farinha, que tinha minha roça, minha mandioca. Um dia de sexta-feira ou quinta arrancava mandioca, fazia farinha e domingo ia à feira vender, quando fiquei tomando conta do menino. Um dia me aborreci aqui, larguei ele mesmo, fui para Salvador caçar emprego. Lá me empreguei.

Bem, trabalhei com D. C., era gringa aborrecida, mas depois que ela não quis pagar o meu dinheiro que achei ruim. Eu trabalhava, fazia tudo certo, ela falou quando botou eu fazer, lavar os pratos e ajudar seu H. que era um trabalhador. Tinha galinha, eu abanava o fogo, ajudava ele a acender, que

era de carvão na época. Eu lavava 60 pratos de manhã. Levei três meses e vim embora, comecei a chorar por causa dos meninos.

Com saudades das crianças. Não queria pagar todo, eu disse não, a senhora tem que pagar todo, trabalhei os dias todos.

Na vinda para Salvador trazia na ‘mala’ o desejo de uma vida melhor para sua família, principalmente filhos e filhas. Mas, desapontada com a precarização e exploração de seu trabalho, mal remunerado e com atrasos de pagamento, desiludiu-se, teve seu sonho de melhoria de vida frustrado, que, aliado ao amor materno e saudade dos filhos, a fez retornar para o seu ‘lugar’.

Na casa de Tereza o ciclo da maternagem familiar era aprendido, primeiro ela, que aprendeu com a própria mãe e depois transmitiu para suas filhas: “Eu saía de manhã para trabalhar e quem ficava em casa era a mais velha, quase que tomava conta deles. A velha era Lindaura, mas quem tomava conta era Neném, chamada Maura, a do meio; que sempre dava surra nos meninos”.

A maternagem, porém, não se restringe aos familiares, se estende ao ofício de parteira, conforme explica: “[...] dei à luz, vida pra mais de cem crianças [...]. Tomei curso em Santo Antônio de Jesus, com Dr. Darso [...]”. Essa profissão de parteira, aprendida pela necessidade de auxiliar no nascimento de crianças, fez de Tereza de Benguela a parteira das comunidades vizinhas, principalmente pelo não acesso dessas mulheres às políticas pública de saúde.

O parto e nascimento domiciliar, assistidos por parteiras tradicionais, ainda é muito comum, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, sobretudo nas áreas rurais, ribeirinhas, de floresta, de difícil acesso e em populações tradicionais quilombolas e indígenas. No Brasil, no qual parcela significativa das mulheres ainda não tem assegurado o direito à assistência ao parto, há que se reconhecer o papel das parteiras para a Saúde Pública como alternativa de assistência à saúde das mulheres e ao parto, tendo em vista que o conhecimento dessas mulheres associado ao saber biomédico pode contribuir para a redução da mortalidade materna no país (SANTOS, 2016, s/p).

E, com orgulho na voz e brilho nos olhos (emocionada), rememorava o ofício de parteira, colorindo seu passado e embelezando os tropeços, dificuldades enfrentadas na sua trajetória de vida. Tereza revive esse momento e o faz tal qual denunciam os versos de Mário Quintana (1997): "O passado é uma invenção do presente. Por isso é tão bonito sempre, ainda quando foi uma lástima. A memória tem uma bela caixa de lápis de cor”.