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O agendamento

No documento lucienefatimatofoli (páginas 192-196)

5 AS CRÔNICAS RODRIGUIANAS NA CURVA DE MÖBIUS: O

5.3 A INSTITUIÇÃO COMO LEGITIMADORA DO AGENTE E SUA OBRA

5.4.4 O agendamento

Decorrente do conjunto de Estudos de Comunicação, conhecido como

Communication Research que surge nos Estados Unidos entre as décadas de 1960

e 1970, a agenda-setting ou teoria dos efeitos a longo prazo vai focar no poder que os meios de comunicação têm em estabelecer uma agenda de assuntos para o público. Um dos principais pesquisadores da hipótese, Shaw (1979, p. 96), citado por Wolf (2003, p. 143), esclarece que:

[...] em consequência da ação dos jornais, da televisão e dos outros meios de informação, o público é ciente ou ignora, dá atenção ou descuida, enfatiza ou negligencia elementos específicos dos cenários públicos. As pessoas tendem a incluir ou excluir dos próprios conhecimentos o que a mídia inclui ou exclui do próprio conteúdo. Além disso, o público tende a conferir ao que ele inclui uma importância que reflete de perto a ênfase atribuída pelos meios de comunicação de massa aos acontecimentos, aos problemas, às pessoas.

Wolf (2003) esclarece que a agenda-setting não parte do princípio de que a mídia determine o ponto de vista do público, mas, a partir daquilo que mostra como sendo a realidade, dos assuntos que publica diariamente, vai elencar fatos a respeito daquilo que se pode discutir e ter uma opinião: “A reivindicação básica da teoria agenda-setting é que a compreensão das pessoas em relação à grande parte da realidade social seja copiada da mídia”. (SHAW, 1979, p. 101, tradução nossa)71. Além disso, outra questão importante relacionada à hipótese do agendamento está diretamente ligada à teoria dos newsmaking. Segundo Wolf (2003), da mesma forma que as rotinas produtivas e os critérios de relevância adotados na definição do que é e na produção de notícias “formam o quadro institucional e profissional dentro do qual a noticiabilidade dos eventos é percebida pelos jornalistas” (WOLF, 2003, p. 145), a ênfase e a recorrência constante a certos assuntos são capazes de formar uma espécie de moldura capaz de enquadrar e dar sentido àquilo que observamos. Como acentua Shaw (1979, p. 103), citado por Wolf: “[...] os meios de comunicação de massa fornecem algo que é mais do que simplesmente um certo número de notícias. Eles fornecem também as categorias que os destinatários podem facilmente situá-las de modo significativo”. (2003, p. 145).

71 Texto original: “For the basic claim of agenda-setting theory is that people’s understanding of much of social reality is copied from the media.”

Diante dessas constatações, conseguimos observar dois aspectos importantes no que se refere à incidência da agenda-setting sobre a produção das crônicas rodriguianas. O primeiro deles, sobre o qual já falamos suficientemente, no capítulo 3 e neste, é o fato de que Nelson Rodrigues vai criar, ele próprio, uma realidade de época, nesse caso dos anos de 1967 a 1974, período das memórias e confissões analisadas aqui, recortada por alguns temas-chave, principalmente política e comportamento. No que se refere ao primeiro aspecto, que ocupa, como já demonstramos, a maior parte da cronística do nosso corpus, é possível verificar como Nelson agenda a questão da esquerda católica. O fato é tão flagrante que as personalidades mais presentes em O óbvio ululante (1993), O reacionário (1995) e

A cabra vadia (2001), conforme apêndice D, são justamente dois representantes da

instituição: Dom Hélder Câmara, bispo de Recife e Olinda, e o intelectual e escritor Alceu de Amoroso Lima, o Dr. Alceu. O primeiro aparece em 44 e o segundo em 42 das 242 crônicas analisadas aqui. Conhecidos por serem seus desafetos preferidos e defenderem as ideias de esquerda, eram questionados e ridicularizados por Nelson Rodrigues. Nas dezenas de crônicas onde eram citados, o autor não lhes poupava críticas.

No caso do bispo, a hipótese do agendamento se torna ainda mais interessante, já que, além de recorrer com frequência à autoridade eclesiástica e à sua ligação com as esquerdas, é possível perceber no discurso rodriguiano exatamente o enquadramento a que se refere Wolf (2003), uma vez que tanto o escritor quanto o veículo em que trabalhava tratam o assunto pelo mesmo viés, ou seja, pela oposição àquilo que D. Hélder poderia representar: a influência do comunismo na atuação da igreja católica. Para Nelson, o padre era um grande blefe, interessado apenas na sua autopromoção e fazia questão de se referir àquilo que, segundo ele, o religioso tomava como sua grande bandeira de luta: a fome no Nordeste. Isso porque, durante uma entrevista na TV, para não responder a uma pergunta desconcertante, D. Hélder tenta mudar de assunto. Perguntado sobre o que achava sobre “o amor livre”, cria uma comoção e um suspense em rede nacional:

Oitocentos mil espectadores se entreolham. Que diria aquele sábio que também era um santo? (Eu disse santo. Mas alguns espíritos estreitamente positivos acham o Arcebispo Vermelho um filhote do Demônio.)

Eis o que respondeu d. Hélder Câmara, naquela noite inesquecível. Dando pulinhos, disse: - "Pra que falar de amor livre, se o Nordeste passa fome?".

Houve um tumulto entre os telespectadores, que não sei se foi de deslumbramento ou de frustração. Pois bem. Desta vez, a habilidade do Arcebispo Vermelho saiu-lhe pela culatra. (RODRIGUES, 1995, p. 320).

A crônica “O filhote do demônio”, publicada em 3 de outubro de 1973, e outras anteriores, refletem exatamente o mesmo ponto de vista de um artigo / editorial de primeira página, assinado por Roberto Marinho, em 27 de abril de 1968, onde criticava justamente a postura de D. Hélder em relação ao nordeste. Apesar de tecer vários elogios ao padre, agradecer-lhe a amizade e deixar clara sua interferência junto ao presidente Castelo Branco para desfazer a atmosfera de incompreensão que envolvia o arcebispo e os militares, Marinho questiona:

Compreendo seus sentimentos veementes diante das injustiças que ainda marcam certos aspectos da vida nessa parte [nordeste] do Brasil. Estarão, todavia, tais manifestações [...] em sua forma ou estilo ou em sua intensidade, temperadas por aquela dose de prudência que é legítimo esperar de um pastor tão carregado de responsabilidades perante não só a Igreja, mas toda a Nação? Não teriam sido algumas delas tão inoportunas e até mesmo aberrantes que justificassem os perfis deformados que têm sido desenhados de sua figura? (MARINHO, 1968, p. 1).

Não sabemos se um dos perfis deformados do arcebispo estaria sendo desenhado por Nelson Rodrigues, mas o fato é que o editorial do dono de O Globo deixa clara a imagem pública que vinha sendo divulgada do bispo de Recife e Olinda, reafirmando, de alguma forma, o que era possível com o agendamento do assunto e o enquadramento que lhe era dado. Encarado pelo cronista como militante da esquerda brasileira que lutava para desestabilizar a ditadura militar, constituía-se, portanto, num antagonista político de Nelson e de alguma maneira do próprio jornal

O Globo. Num levantamento que fizemos no acervo do diário carioca no ano de

1968, contamos 259 matérias que citam o arcebispo de alguma forma. Dentre essas, 68 são colunas assinadas por Nelson Rodrigues, o que, na nossa opinião, valida a hipótese do agendamento na produção das crônicas rodriguianas deste corpus.

Diante de todo o contexto que traçamos anteriormente, usando as quatro teorias do Jornalismo que, no nosso entendimento, são capazes de explicar também, por uma questão de homologia estrutural entre os campos (BOURDIEU, 1996a), o processo de produção das crônicas rodriguianas de memória e confissão analisadas aqui, seguimos para concluir o raciocínio aqui implementado. Se Nelson agia como um gatekeeper, selecionando os assuntos que seriam enfocados em suas colunas; se esses assuntos, conforme demonstramos, eram abordados a partir

de um mesmo ponto de vista pela organização para qual o autor trabalhava e pelo o veículo em que eram divulgadas, no caso, em O Globo; se em ambos os casos – do cronista e do jornal – há uma recorrência aos mesmos temas com enfoques coincidentes que se reforçam, partimos para as considerações finais desta tese, onde além de retomarmos as perguntas que deram origem à nossa pesquisa, vamos cuidar para que Nelson Rodrigues conclua o percurso da curva de Möbius.

No documento lucienefatimatofoli (páginas 192-196)