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O ROMANCE TRAVESTIDO DE FEMININO

No documento lucienefatimatofoli (páginas 37-43)

2 NELSON RODRIGUES: UM HOMEM DE MIL FAC(S)ES

2.3 O ROMANCE TRAVESTIDO DE FEMININO

Myrna e Suzana Flag foram dois pseudônimos que Nelson Rodrigues usou para assinar parte de sua obra em romance, que guarda uma estrutura folhetinesca. De Suzana Flag, temos: Meu destino é pecar (1944), Minha vida (1946), Escravas

do amor (1946), Núpcias de fogo (1948) e O homem proibido (1951); de Myrna: Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo (1949), A mulher que amou demais (1949) e A mentira (1953). Assinados pelo próprio autor, vamos encontrar Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados 12 aos 18 – v. 1

(1960), Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados depois dos 30 – v. 2 (1960) e O casamento (1966). Dessa vez, usando jornais e revistas como suportes para a maioria de seus romances, que foram publicados em forma de folhetins, Nelson conheceu a consagração do público, elevando a tiragem desses veículos e dos livros que foram editados depois a milhares de exemplares.

Segundo Marlyse Meyer (2005), o folhetim surge dentro da imprensa de massa como forma de entreter os leitores menos interessados nas notícias mais sérias. As histórias, publicadas aos capítulos, dividiam o espaço com qualquer tipo de frivolidade. Na década de 1830, entretanto, passa a fazer sucesso e torna-se responsável pelo aumento das vendas e estabilidade de muitos periódicos. Poucos anos depois, sendo assinados por nomes como Alexandre Dumas, Ponson du Terrail, Eugène Sue e Honoré Balzac, entre outros, o novo gênero ganha sua configuração definitiva:

O passo definitivo é dado quando Girardin, utilizando o que já vinha sendo feito para os periódicos, decide publicar ficção em pedaços. Está criado o mágico chamariz “continua no próximo número” e o feuilleton-roman O

Lazarillo de Tormes foi o primeiro a receber esse tratamento, em 1836, e,

logo no fim do mesmo ano, Girardin encomenda especialmente a um autor, Balzac, uma novela para sair em série, La vieille fille. (MEYER, 2005, p. 31).

Meyer (2005) vai dividir a história dos folhetins em três fases, cada um com suas características. A primeira delas, de 1836 a 1856, está ligada à organização das classes trabalhadoras. Um dos exemplos dessa época é Lês mystères de

Paris (Os mistérios de Paris), de Eugène Sue, publicado no Journal des Dèbats,

tempo, Sue se tornou porta-voz dos humilhados e menos favorecidos, sugerindo uma série de reformas e impregnando os periódicos com ideais de socialismo.

Os folhetins, expurgados das páginas dos jornais franceses às vésperas do golpe do 18 Brumário9, ressurgiram em sua segunda fase no ano de 1851. Nessa época de grandes conturbações políticas, econômicas e sociais em toda França, surgia uma nova classe média, mais baixa, que, diferentemente do proletariado, era constituída por profissionais alfabetizados e independentes, a quem os novos folhetins eram direcionados. Esvaziados de conteúdo social, tinham caráter conservador e pequeno burguês.

A terceira fase, de 1871 a 1914, vai ser marcada pelas histórias que contam dramas da vida. A burguesia triunfava enquanto os operários eram oprimidos e massacrados. A produção folhetinesca dessa fase, ainda menosprezada pelos críticos literários, seria conhecida como romance popular. Segundo Meyer (2005, p. 219), tinha um caráter extremamente conservador e propunha modelos burgueses como aspiração de vida. Outra característica desse período são as narrativas amparadas pelos faits divers, uma espécie de notícia de cunho eminentemente sensacionalista. Temas como a maternidade, a loucura, a traição, o incesto e o casamento eram recorrentes. Além de narrarem o cotidiano, os folhetins adquiriram o status de conselheiro e passaram a ditar formas de pensar e agir.

Hereditário da França, o romance-folhetim no Brasil também teria lugar garantido. Desdobrando-se em radionovelas, a partir da década de 1940, e em novelas, com a chegada da televisão10, em 1950, era produto de consumo certo na comunicação de massa. Segundo Meyer, embora revitalizado pelos meios tecnológicos de difusão, ainda repetia artifícios estruturais, onde se reencontrava “a série, o fragmento, o tempo suspenso que reengata o tempo linear de uma narrativa estilhaçada em tramas múltiplas, enganchadas no tronco principal, compondo uma

9 O 18 Brumário foi o golpe que levou o jovem general Napoleão Bonaparte ao poder, apoiado pela

burguesia. O golpe aconteceu 10 anos depois da Revolução Francesa, em 1799.

10 É necessário se registrar, aqui, que Nelson Rodrigues também foi autor de novelas. A estreia foi em 1963, com “A morta sem espelho”, primeira telenovela brasileira. Foi uma encomenda de Walter Clark, da TV Rio. Nela, somavam-se adultérios e insinuava-se o incesto. Censurada, passou das oito para as dez da noite. Mas o horário não ajudou e dois meses depois, a novela saiu do ar. No mesmo

ano, assinou sob o pseudônimo de Verônica Blake, “Pouco amor não é amor”. Escreveu ainda

“Sonho de amor”, uma adaptação de O tronco do ipê, de José de Alencar. Sua última novela para a

TV, “O desconhecido”, com direção de Fernando Tôrres, só foi liberada graças ao poder de

convencimento de Walter Clark. Nessa época, 1964, os militares já estavam no poder e a censura ficava por conta deles.

‘urdidura aliciante’ [...]” (MEYER, 2005, p. 387), tudo sempre amparado pelos temas recorrentes e presentes nos faits divers.

Admirador dessa literatura folhetinesca, conforme confessa em várias de suas crônicas, com referências constantes a Dumas, Dostoievski e Ponson du Terrail, entre outros, a estrutura de composição dos romances de Nelson Rodrigues, de maneira geral, obedeceria à lógica da comunicação de massa, com o estabelecimento de ganchos e ligação entre as partes. Mesmo dividido em capítulos, o desfecho de cada um guardava uma tensão que preparava o terreno para uma situação posterior.

A temática era a mesma dos romances populares e arrolava as obsessões do autor, muitas vezes repetidas nos contos e nas peças. Nas obras que assina como Suzana Flag, havia uma exacerbação das paixões que fazia desfilar os incestos, o adultério, a homossexualidade, os suicídios e as identidades obscuras. A beleza estava sempre ligada ao perigo e à atração irresistível enquanto a virtude era relacionada aos tipos comuns, que sofriam e eram alvo das tramas maliciosas ou das tentações.

Exemplo típico da produção folhetinesca de Nelson Rodrigues, ainda sob o pseudônimo feminino de Suzana Flag, é O homem proibido, que acabou se tornando novela em 1982. O enredo gira em torno de Joyce, um misto de vítima e vilã, cuja mãe se mata e o pai desaparece, deixando-a aos cuidados dos tios, pai de Sônia, com quem ela vai disputar o amor do mesmo homem: Paulo, um médico. Sônia e Paulo se apaixonam, mas sofrem uma série de infortúnios e intrigas causada por Joyce, que quer separar o casal. Uma situação que vai parecer irremediável quando o médico, num acidente de automóvel, provoca a cegueira de Joyce e a culpa faz com que ele se afaste de Sônia, a mulher amada. Ambos só voltam a se entender depois de vários capítulos, quando um outro personagem, Carlos, descobre que a cegueira da vítima-vilã é reversível. Mesmo quando tudo parece resolvido, Joyce volta a separar o casal, que só se une no último capítulo, quando Sônia perdoa a prima e casa-se com Paulo no mesmo dia em que Joyce se une a Carlos.

O romance se revela uma reiteração da temática rodriguiana: a família, o amor, a traição, a inveja, a insinuação de incesto, de homossexualidade, o destino

como fatalidade, a cegueira11. O comportamento de Joyce, duplo de vítima e algoz, já teria sido determinado pela herança genética. A mãe, Dona Senhorinha, mulher feliz, bonita, encantada com a própria imagem, acabara se suicidando inexplicavelmente. O marido, no velório, pronuncia uma única frase que deixa entrever a dúvida sobre o caráter da mulher: a de que ninguém se matava sem motivo. A relação de Joyce com a prima Sônia, sete anos mais velha e que assume, na verdade a criação da menina abandonada, é um universo de maternidade incestuosa, mais uma vez apenas insinuada por Nelson. A obsessão de Joyce por Paulo, principalmente depois de saber do seu amor pela prima, é outra marca da obra de Nelson: a disputa feminina pelos homens, fortemente presente, por exemplo, em Vestido de noiva, onde as irmãs Lúcia e Alaíde disputam o amor de Pedro.

Já no romance em que narra sua suposta “biografia”, Minha vida, Suzana Flag faz um longo relato de si. Declarava ser filha de um canadense e de uma francesa e que enlouquecia os homens:

Uns olham, apenas; outros me sopram galanteios horríveis, mas já estou acostumada, graças a Deus; há os que me seguem; e um espanhol, uma vez, de boina, disse, num gesto amplo de toureiro: “Bendita sea tu madre!". Lembrei-me de minha mãe que morreu me amaldiçoando e senti um arrepio, como se recebesse, nas faces, o hálito da morte. [...] Tenho vinte e poucos anos e devo dizer, não sem uma certa ingenuidade, que vivi muito mais, que tive experiências, aventuras, que mulheres feitas não têm. [...] “Esta é a história de minha vida, esta é a história de Suzana Flag”... Mas é preciso advertir: vou contar tudo, vou apresentar os fatos tais como aconteceram, sem uma fantasia que os atenue. Isso quer dizer que o meu romance será pobre de alegria; poderia se chamar sumariamente: “Romance triste de Suzana Flag”. (FLAG, 2003, p. 9-10).

Assim como os outros folhetins de Nelson Rodrigues, inclusive aqueles que assinava sob o pseudônimo de Myrna, a suposta biografia de Suzana Flag também se utilizava do mesmo repertório temático que caracterizava a trama rodriguiana: o suicídio dos pais, o noivado com Jorge, amante de sua mãe e filho bastardo de sua avó, o casamento com o tio de criação e a tentativa de rapto por um aleijado.

Por que, afinal, Nelson Rodrigues assinava com pseudônimos femininos? Em sua tradição brasileira, o gênero folhetinesco é emergente do romantismo e dirige-

11 A cegueira é uma das obsessões de Nelson. Ele relata que, quando criança vivia deslumbrado pelos cegos que apareciam em sua rua. Em muitos de seus contos, e até no teatro, um passarinho é sempre vítima de alguém, ficando cego. Na vida real, em função da tuberculose, Nelson chegou a ficar cego temporariamente.

se, sobretudo, ao público feminino. Numa entrevista à revista Manchete, em agosto de 1977, Nelson Rodrigues revela a Leo Schaflman o motivo da escolha:

Nelson Rodrigues – O folhetim é um jogo de concessão e eu só fazia, aliás, só faço concessão nos meus folhetins. A concessão folhetinesca não é, a meu ver, um defeito, porque é preciso num dado momento que o autor se lembre – digamos assim – dos idiotas, dos sujeitos que não atingem um certo plano de inteligência, e aí vem o folhetim. Folhetinesco, de outro lado, foi Dostoievski, foi Tolstoi. Todo autor é folhetinesco, compreendeu:

Leo Schaflman – Então quando você fazia concessão colocava o

pseudônimo feminino?

Nelson Rodrigues – Sim, nome de mulher, porque aquilo não era

exatamente o que eu faria, se fosse o autor declarado. Eu escrevi o Asfalto Selvagem, um folhetim diário. Esse era muito mais eu, porque trazia o meu nome, a minha responsabilidade, embora eu não tivesse tempo para trabalhar o texto. Assim, minhas qualidades e meus defeitos estavam lá. (RODRIGUES, 2004a, p. 279-281).

Já nos romances assinados por Nelson Rodrigues, o estilo é mais contido. A linguagem se aproxima bastante daquela que ele vai empregar nos contos: frases de efeito e metáforas surpreendentes. Ele repete nos romances expedientes que emprega em suas colunas, além da aproximação do universo do receptor a partir da alusão a fatos da realidade. Em Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados 12 aos 18 anos, a primeira frase já situa o leitor: “Era em Vaz Lobo”. Em seguida, lança o receptor ao mundo da informação, particularmente da reportagem policial, onde são recorrentes os clichês de tragédia usados por Nelson, conforme a eles já se referiu Lopes (2007): a traição, o suicídio, a morte e o destino como fatalidade.

Seu Felipe, sujeito caladão, sempre de cara amarrada, era sócio de uma loja de jóias na cidade. Traído e abandonado, tomou corrosivo violento. Morreu junto ao rádio que estava ligado para o programa do Jóquei, na “Jornal do Brasil”. Enquanto ele estrebuchava no chão, o Teófilo de Vasconcelos anunciava, ao microfone: “Foi dada a saída! ” Pois bem: atiraram o homem num caixão de alumínio e o rabecão levou o corpo para o Instituto Médico Legal. De lá veio para uma capelinha junto ao Pronto Socorro. (NELSON, 1980, p. 7).

A narrativa é rápida, em ritmo cinematográfico, o que logo remete às produções dramatúrgicas do autor e mostram o seu domínio da literatura de massa. A presença do ambiente jornalístico é uma constante, onde muitas vezes profissionais e intelectuais são tratados de forma irônica, como em seu teatro e suas crônicas. A temática permanece a mesma, sempre se referindo aos temas já explorados em seu teatro e comuns aos faits divers, que Nelson usava para as

reportagens no início de sua carreira como jornalista. Dessa forma, o romance folhetinesco de Nelson Rodrigues é uma rede que estabelece um painel exacerbado de costumes, com todos os desvios possíveis, ao mesmo tempo em que impinge um julgamento moral, também característica confessa do autor.

Embora tenham sido sucesso de venda e de público, tornando-se, inclusive, filmes, novelas e minisséries, os folhetins de Nelson Rodrigues ainda permanecem sem grandes reflexões na academia. Na pesquisa que empreendemos sobre a fortuna crítica acerca dos romances de folhetim, encontramos duas pesquisas que merecem destaque12. Na primeira delas, a dissertação de mestrado defendida junto à Universidade de São Paulo (USP), em 2008, intitulada Os folhetins de Nelson

Rodrigues: um universo de obsessões em fatias parcimoniosas, a autora Sandra

Maria Pastro se ressente também da pouca pesquisa em torno ao tema. Segundo ela, os folhetins foram deixados à sombra pela crítica e sugere que os mesmos recebam mais atenção, uma vez que, apesar de dotados de uma valoração diferenciada: “[...] esses folhetins [...] carregam em suas estruturas significativa importância para a compreensão da totalidade do período histórico em geral e para a compreensão da trajetória de Nelson Rodrigues em particular”. (PASTRO, 2008, p.216).

A segunda pesquisa, mais recente, Nelson Rodrigues e a hipérbole do

banal, foi tese de doutoramento defendida por Agnes Danielle Rissardo, pelo

Programa de Pós-graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2011. Embora não trate exclusivamente dos folhetins rodriguianos, a autora pesquisa, também neles, a poética do excesso, um legado que o autor traz da confluência do trágico, da técnica folhetinesca e melodramática e do Jornalismo calcado nos faits divers:

O legado folhetinesco é, portanto, visível no conjunto da obra ficcional de Nelson Rodrigues e contribui para enriquecê-la na medida em que tensiona os elementos eruditos presentes em sua própria narrativa. Ao restaurar e defender o universo melodramático em sua prosa, o autor se lança corajosamente na contramão do gosto moldado por uma elite que frequentemente ridiculariza em sua obra.

Dessa forma, a narrativa rodriguiana será pontuada pelos chavões da técnica folhetinesca e melodramática, tais como a redundância, a pista

12 É necessário frisar que, certamente, existem outras pesquisas importantes que dizem respeito à obra rodriguiana. Entretanto, as mesmas podem não estar disponíveis na internet ou nos repositórios oficiais que foram consultados nesta pesquisa e que dizem respeito particularmente à Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Capes.

falsa, as revelações surpreendentes e as reviravoltas súbitas, recursos herdados não apenas dos romances-folhetins, mas também da intimidade de Nelson com o fait divers. (RISSARDO, 2011, p. 169).

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